O que pode significar ser Presidente da República

  • João Pedro Castro Mendes
  • 1 Fevereiro 2021

O Presidente da República tem um papel central na arquitetura constitucional portuguesa. Esta devia ter sido a altura para reconhecermos essa centralidade e para compreendermos a sua função.

O Presidente da República é o Chefe de Estado. Representa a República Portuguesa, deve garantir a independência nacional, a unidade do Estado, bem como o regular funcionamento das instituições democráticas. É também, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas. Assim, o Presidente da República deve ser uma pessoa idónea, cuja integridade e honestidade sejam reconhecidas, com capacidade de pensar e decidir de forma autónoma, livre de conflitos de interesses, e com conhecimento, competências e experiência relevantes para a função. O Presidente tem de ser credível e capaz de exercer as suas funções de forma íntegra, independente e fundamentada.

As funções do Presidente da República podem ser apartidárias, mas nem por isso a ideologia do Presidente deixa de ser relevante. Essa ideologia determinará a hierarquia de prioridades do Presidente, o seu foco, e até a forma como encara as suas próprias funções e exerce o seu cargo. Assim, importa aferir e escrutinar a ideologia dos candidatos, não só em abstrato, mas também no concreto, atendendo a casos que vão ocorrendo no dia a dia e que poderiam requerer envolvimento presidencial.

Ao representar a República, o Presidente deve defender os interesses legítimos dos portugueses, incluindo das comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo. Mas esses interesses, a meu ver, não devem ser interpretados de forma restritiva. Todos beneficiamos de uma ordem global assente na paz, nos direitos humanos, no desenvolvimento sustentável e em instituições europeias e globais estáveis e credíveis. Assim, a defesa cabal do interesse nacional na União Europeia e num mundo globalizado implica fazer a defesa da paz e da resolução pacífica de conflitos, dos direitos humanos, do combate às alterações climáticas, da defesa da saúde pública global, da cooperação no combate ao crime internacional e ao terrorismo, da promoção da cibersegurança global, da resolução pacífica das questões relacionadas com as migrações, e de uma globalização inclusiva assente em desenvolvimento global sustentável, tudo alicerçado na diplomacia, no multilateralismo e no reforço das instituições europeias e globais, no sentido de as adaptar aos novos desafios que vivemos.

Ao defender a “independência nacional”, considero que o Presidente não deve ter uma visão míope, egoísta ou protecionista do conceito. A defesa da independência nacional não deve ser um entrave à participação numa União Europeia cada vez mais integrada, nem à afirmação do primado do Direito da União Europeia (nos termos definidos pelo Tribunal de Justiça da União Europeia). Os custos do Brexit e a resposta à pandemia apenas vieram sublinhar as vantagens da integração europeia. Num mundo globalizado, beneficiamos de partilhar a soberania com a soberania de outros Estados europeus.

O Presidente da República, ao garantir a “unidade do Estado”, deve ao mesmo tempo dar prioridade a um debate aberto sobre a necessidade de o descentralizar. A própria Constituição coloca a regionalização em cima da mesa. Mas o debate deve ir mais longe. Deve abranger um verdadeiro debate sobre o mapa autárquico e sobre os poderes e responsabilidades das autarquias locais. É preciso debater a escala dos nossos municípios e freguesias e ponderar se é adequada. É preciso debater a autonomia efetiva do poder local face ao poder central. É preciso debater uma possível maior autonomia dos municípios do ponto de vista do seu financiamento, incluindo a possibilidade de disporem de maior autonomia a nível fiscal, bem como a possibilidade de alargar as áreas de responsabilidade dos municípios e das freguesias. É importante pensar na forma como o Estado central deve auxiliar as zonas mais pobres do país, num contexto de maior descentralização.

Uma função central do Presidente da República é garantir o regular funcionamento das instituições democráticas, ou seja, que instituições democráticas se encontram a cumprir cabalmente as respetivas funções, nos termos constitucionalmente previstos, de forma contínua e resiliente. Assim, o Presidente tem um dever de monitorizar as demais instituições democráticas, intervindo, através do exercício dos seus poderes constitucionalmente previstos, quando considere que esteja em causa o seu regular funcionamento. Por exemplo, em geral, o Presidente da República deve aceitar as nomeações que lhe são propostas. Mas em casos extremos de manifesta falta de adequação para o cargo, poderá negar-se a nomear a pessoa em causa, exigindo a apresentação de outro nome. O Presidente pode também recusar-se a dar posse a um Primeiro Ministro que não lhe garanta condições de sustentabilidade governativa, designadamente através da apresentação de acordos de incidência parlamentar escritos.

O Presidente pode demitir o Governo e o Primeiro Ministro e pode convocar de forma extraordinária e dissolver a Assembleia da República. A presidência de Ramalho Eanes demonstrou que os Governos têm de conseguir maiorias parlamentares para serem viáveis (poderiam ponderar-se salvaguardas adicionais para Governos minoritários, como a moção de censura construtiva). Ainda que o Presidente decida que estão reunidas as condições para demitir o Governo e o Primeiro Ministro, terá de na mesma ter em conta a configuração da Assembleia da República ao nomear um novo Primeiro Ministro, para promover a sustentabilidade do novo Governo. Ao decidir dissolver a Assembleia da República, o Presidente da República deve ponderar se se antecipa que a nova Assembleia da República que resultar das eleições legislativas antecipadas conseguirá ultrapassar as situações de bloqueio e de funcionamento problemático identificadas.

O Presidente declara o estado de sítio e o estado de emergência. Para o fazer, deve identificar uma situação que o justifique, e explicar cabalmente porque é que a situação em causa justifica uma medida tão drástica. De seguida, deve limitar a declaração ao estritamente necessário, bem como ir estabelecendo metas claras que permitam delimitar quais as restrições constitucionais necessárias, qual a justificação para essa limitação, e quais os parâmetros que serão usados para considerar que se ultrapassou a situação que justificou a declaração. Numa situação como a atual, de pandemia, por exemplo, o estado de emergência parece essencial para conferir a necessária certeza às medidas de contenção adotadas para gerir a pandemia. A simples invocação de uma lei poderia gerar dúvidas de inconstitucionalidade, neste contexto, o que poderia adicionar uma crise judiciária à crise sanitária, com os tribunais entupidos e decisões potencialmente contraditórias dos tribunais sobre a (in)constitucionalidade das medidas.

O Presidente pode suscitar a inconstitucionalidade de normas jurídicas junto do Tribunal Constitucional. Quando haja fundadas dúvidas quanto à adequação de certa norma jurídica com a Constituição, deve o Presidente suscitar esta questão junto do Tribunal Constitucional. Quando haja amplo consenso que certa norma padece de inconstitucionalidade, ou quando o Presidente considere que esta existe, deve pedir a declaração de inconstitucionalidade da norma em causa. Para o efeito, deve estar atento ao debate político-jurídico em torno da legislação nova e da legislação velha. Deve também identificar casos de inconstitucionalidade por omissão, suscitando-os junto do Tribunal Constitucional.

O Presidente é, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas. Nesse contexto, nomeia as posições de topo na hierarquia militar. Deve ser uma voz ativa no sentido da valorização das Forças Armadas e da sua integração no sistema da segurança global, no contexto das Nações Unidas. Deve também promover a participação portuguesa na NATO e promover cooperação e a integração da Defesa ao nível da União Europeia, nesse contexto.

Sem prejuízo das suas convicções individuais próprias, compete ao Presidente da República ser o presidente de todos os portugueses. Ao intervir, o Presidente deve, em primeira linha, ser uma fonte de compromissos, de convergências, de união para resolução de problemas estruturais do país. Mas a garantia do regular funcionamento das instituições democráticas pode, em certos momentos, exigir medidas drásticas. Precisamente por ter poderes tão relevantes, para salvaguarda das instituições democráticas, que o Presidente é eleito diretamente pela população e que existem duas voltas. O Presidente tem a legitimidade democrática necessária para, quando o sistema precisar, intervir de forma decisiva, procurando colocar cobro a problemas institucionais que assolem a democracia portuguesa.

Importa que o Presidente seja transparente quantos aos critérios que utilizará para exercer os seus poderes. Por outro lado, os poderes estão lá para ser exercidos, mesmo os mais disruptivos, e todas as funções e poderes do Presidente contam. Quando o Presidente escolhe intervir, a forma como escolhe intervir, o tom adotado, tudo isto conta (em princípio, o Presidente deve escolher intervir em casos específicos, cuja gravidade suscite a necessidade da intervenção do Chefe de Estado). Os critérios utilizados para conceder indultos ou comutar penas também contam (p. ex. razões humanitárias, promoção da reinserção social de pessoas efetivamente reabilitadas, ou, como recentemente, motivos de saúde pública). Quem o Presidente escolhe agraciar no contexto das ordens honoríficas portuguesas tem um impacto simbólico relevante, dado que o faz em nome da República Portuguesa. Assim, as pessoas agraciadas representarão aquilo que a República Portuguesa pretende exaltar, os exemplos individuais que a República Portuguesa considera deverem ser seguidos.

Procurei deixar uma ideia de como um Presidente da República poderia agir, atendendo ao disposto na Constituição e a um conjunto de ideais e valores que defendo. Mas a Presidência da República pode ser exercida de várias maneiras diferentes. Os poderes podem ser interpretados de forma mais ou menos lata, com maior ou menor pendor para intervenção ou para o confronto.

Parece-me elucidativo o juramento de tomada de posse do Presidente da República: “Juro por minha honra desempenhar fielmente as funções em que fico investido e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa.” O Presidente da República é o primeiro garante da ordem constitucional portuguesa. O elenco de poderes do Presidente da República demonstra bem como este juramento não pode ser feito de ânimo leve.

Ao longo da campanha das presidenciais, pouco se discutiram, verdadeiramente, as funções e os poderes do Presidente. O ênfase esteve, claramente, em questões ideológicas (que têm a sua relevância, como referido acima), mas, sobretudo, em matérias da competência do Governo. É pena. A campanha poderia ter servido para, por um lado, esclarecer as pessoas quanto às funções e poderes presidenciais e, por outro, quanto às diferentes visões para o exercício do cargo, em todas as suas vertentes.

O Presidente da República tem um papel central na arquitetura constitucional portuguesa. Esta devia ter sido a altura para reconhecermos essa centralidade e para compreendermos realmente o que pode significar ser Presidente da República.

  • João Pedro Castro Mendes
  • Jurista

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