O que têm em comum Churchill e Singapura sobre o futuro da alimentação?
Os desafios para a agricultura celular continuam a ser enormes e estão longe do fim, mas uma mão portuguesa abriu uma janela em Singapura e a grande revolução alimentar está à nossa porta.
Neste preciso mês de dezembro, mas algures em 1931, a The Strand Magazine publicava o artigo – The Fifty Years Hence – no qual o seu autor, Winston Churchill, vaticinava “We shall escape the absurdity of growing a whole chicken in order to eat the breast or wing, by growing these parts separately under a suitable medium.”
Este futuro da alimentação, ou parte dele, preconizado por Churchill, chegou-nos precisamente num mês de dezembro, mais concretamente no passado dia 2, quando Singapura veio a tornar-se no primeiro mercado a aprovar a comercialização de carne produzida em laboratório, no caso concreto cell-cultured chicken, sem necessidade nem recurso ao abate de uma galinha.
O hiato de 89 anos – da adivinhação à concretização desta tecnologia emergente – não retira qualquer mérito, pelo contrário. A entrada de produtos de agricultura celular em Singapura, e muito provavelmente a outros mercados num futuro próximo, é um marco muito relevante e marcará seguramente, na minha opinião, uma das mais profundas transformações do sistema alimentar nas próximas décadas, em particular na reconfiguração da produção, transformação e formato de oferta deste tipo de produtos.
“Frankenburger” e o crescente apetite
A investigação precursora deste tipo de produtos, foi suportada pelo governo holandês que financiou o projeto “in vitro meat”, de 2005 a 2009. Em 2013, já suportado por investimento privado, era dado a provar ao mundo, pela mão do investigador Mark Post, o primeiro e o mais caro hambúrguer de carne bovina da história, produzido num laboratório da Universidade de Maastricht.
Os desafios, àquele que foi apelidado de Frankenburguer, eram enormes e o time to market expectável para se ter um produto economicamente viável, um processo produtivo escalável, um perfil organolético semelhante ao de um hambúrguer tradicional, ultrapassar a inicial repulsa dos consumidores, bem como todos os processos e requisitos pelas entidades reguladoras, seria sempre superior a 20 anos, de acordo com o investigador.
Seguramente, a projeção de Mark Post não estava a ser otimista, nem sequer entrou em linha de conta com a transformação, verificada nos últimos anos, dos hábitos e preferências alimentares de muitos consumidores, que passaram a colocar uma maior consciência social e ambiental na decisão de compra.
E, foi assim, que em apenas 7 anos se tem verificado um crescente apetite, por análogos à carne, e neste caso em concreto por produtos animais de agricultura celular, enquanto um sistema de produção mais sustentável, que se estima liderem o mercado de carnes nas próximas décadas.
Israel, Europa e, particularmente os Estados Unidos, reconhecidos por estarem na vanguarda da tecnologia alimentar, compõem o conjunto de países que incubaram dezenas de startups a atuarem nesta área, e colocaram muitos milhões na investigação e no desenvolvimento desses projetos, que é como quem diz colocaram toda a carne no assador.
A GOOD Meat, marca da empresa californiana Eat Just, que viu agora reconhecida a segurança alimentar do seu produto e a possibilidade de o comercializar, pela Singapore Food Agency, consegue assim um feito enorme de se posicionar, abrindo o primeiro caminho para se dar início a esta revolução.
A concretização deste importante passo, o de ultrapassar a barreira legal e regulamentar, e a comercialização de produtos animais de agricultura celular, através de um novo método de produção, recorrendo a menos recursos e, por conseguinte, mais sustentável e com menor impacte ambiental, comparativamente à tradicional exploração pecuária, abre uma excelente perspetiva para o futuro.
A obra foi de Espírito Santo – Vítor, seu primeiro nome, português que lidera a equipa de agricultura celular na Norte-Americana e que foi fundamental para o sucesso desta operação. Os desafios para a agricultura celular continuam a ser enormes e estão longe do fim, mas a partir do momento que uma mão portuguesa abriu uma janela em Singapura, a grande revolução alimentar está à nossa porta.
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