Onde está a Economia de Defesa portuguesa?
O estudo de 2021 “Economia de Defesa em Portugal” refere a existência de 350 empresas agregadas na Base Tecnológica e Industrial de Defesa nacional. Mas este número é enganador.
Nas últimas semanas a Economia de Defesa em Portugal teve uma série de desenvolvimentos com algum relevo. Está em discussão pública a proposta de Lei de Programação Militar, que prevê os investimentos a realizar pelo Estado português nos próximos 12 anos, e foi aprovada a estratégia de desenvolvimento da Base Tecnológica e Industrial de Defesa (BTID). Em simultâneo realizaram-se os AED Days, evento organizado pelo cluster de Aeronáutica, Espaço e Defesa.
A sua relevância resulta dos acontecimentos na Ucrânia, que despertaram os países europeus do torpor em que se encontravam pela anestesia provocada pela guerra fria, pela queda do muro de Berlim e pela utopia da “paz perpétua” na Europa unida. Uma função essencial de soberania foi menosprezada ao longo de décadas por países que possuíam os meios necessários para assumir as suas responsabilidades, mas optaram por não o fazer.
Foram muitos os sectores da sociedade que lutaram pelo desinvestimento na defesa com o argumento demagógico de que seria dinheiro desperdiçado e que o que se devia era promover a paz e não a guerra. Isto apesar de a Europa viver continuamente numa paz que se manteve por causa dos investimentos militares realizados pelos Estados Unidos.
Com estas ideias “românticas”, desvalorizou-se a necessidade de se investir em defesa e, em Portugal, “destruiu-se” parte significativa da indústria que existia. Isso foi evidente no pós-25 de Abril quando complexos ideológicos que ainda hoje se fazem sentir reforçaram aquelas ideias. Desta ilusão e do desinvestimento resultou que Portugal nem consegue produzir munições para o armamento e equipamento de que dispõe, estando totalmente dependente do exterior.
Para que se possa inverter esta situação é preciso primeiro conhecer o que é, hoje, a Economia de Defesa portuguesa. O estudo de 2021 “Economia de Defesa em Portugal” refere a existência de 350 empresas agregadas na Base Tecnológica e Industrial de Defesa nacional. Mas este número é enganador porque a sua grande maioria trabalha quase exclusivamente para fins civis e apenas quando surge uma oportunidade tenta readaptar os seus produtos e serviços para serem vendidos às forças armadas. A regra é que a defesa tem um peso diminuto – em alguns anos mesmo nulo – nos negócios destas empresas.
O mesmo se passa com alguns centros de investigação que desenvolvem trabalho que pode ter aplicações militares. Se exceptuarmos os centros dos ramos das forças armadas, todos os outros desenvolvem investigação com fins civis que, subsidiariamente, pode ter aplicação militar em funções como a vigilância do território ou a recolha de informação.
Esta mistura entre actividades civis e militares, que no meio da defesa se designa por duplo uso, está em Portugal claramente enviesada para as aplicações puramente civis, e as empresas portuguesas em que os fins militares são centrais nos seus negócios são muito poucas.
Em termos práticos, isto mostra que o Ministério da Defesa não sabe quanto é que a Defesa “pesa” na economia portuguesa. Este desconhecimento ficou bem evidente no colóquio realizado esta semana no parlamento sobre Economia de defesa e a Lei de Programação Militar, em que não foram apresentados quaisquer números sobre a sua relevância.
A estimativa mais credível, que se refere a 2019, indicava que as actividades económicas desenvolvidas em Portugal na área da defesa representavam 1,1% do valor acrescentado bruto nacional. Deste valor, 72%, ou 0,8 p.p., resultava de actuação directa do Estado (essencialmente, consumo e investimento realizados pelo Ministério da Defesa/Forças Armadas).
Ou seja, as empresas nacionais que actuam na Defesa apenas representavam 0,3% da economia portuguesa (575 milhões € em valor acrescentado numa economia com VAB de 186.000 milhões €). Contudo, mesmo este valor ainda é exagerado por conter actividade puramente civil, mas que, por usar inputs ou tecnologias comuns, se confunde com negócios de natureza militar.
Conhecer o valor real da economia de defesa é muito importante para se perceber os potenciais efeitos da Lei de Programação Militar (LPM) que o governo anunciou recentemente, e que prevê um investimento de 5,5 mil milhões € durante os próximos 12 anos e um retorno de 33% para a economia nacional.
O problema dos discursos “embelezados” é que cria ilusões. Se considerarmos os números reais da LPM, vemos que a parte relevante é a do quadriénio 2023-2026, que estará em vigor até à próxima revisão, e onde estão previstas despesas de 1,9 mil milhões €. Destes, 624 milhões serão para os serviços centrais do Ministério da Defesa, restando 300 milhões anuais para investimento. Não é muito já que o investimento público em 2022 foi de 5,9 mil milhões €.
A leviandade propagandística com que se tratam os números é tal que o comunicado do Conselho de Ministros refere que “O montante global de investimento … representa um crescimento de 17,5% face à lei em vigor. O crescimento mais expressivo verifica-se no primeiro quadriénio (mais 17%)…”. Ou seja, o Ministério da Defesa nem percebe que se o crescimento total fosse de 17,5% e o do primeiro quadriénio apenas de 17% se tornaria matematicamente impossível que o crescimento mais expressivo se verificasse no primeiro quadriénio.
A leviandade propagandística com que se tratam os números é tal que o comunicado do Conselho de Ministros refere que “O montante global de investimento … representa um crescimento de 17,5% face à lei em vigor. O crescimento mais expressivo verifica-se no primeiro quadriénio (mais 17%)…”. Ou seja, o Ministério da Defesa nem percebe que se o crescimento total fosse de 17,5% e o do primeiro quadriénio apenas de 17% se tornaria matematicamente impossível que o crescimento mais expressivo se verificasse no primeiro quadriénio.
Claro que isso não é um problema porque a ilusão também não esclarece que investimentos serão realmente concretizados. A prática é anunciar investimentos para os jornais e adiar “sine die” a sua concretização, como acontece com os novos Navios Patrulha Oceânicos por que a Marinha já aguarda há alguns anos.
Esta prática de anunciar sem concretizar é uma das “políticas públicas” mais conseguidas dos governos de António Costa. No caso da defesa foi ainda “enriquecida” com a novidade de terem de ser os militares a arranjar uma parte do dinheiro. Se não o arranjarem, o valor do investimento será menor e os equipamentos necessários não existirão. Nada de novo, portanto.
A propaganda esqueceu-se também de explicar o que é que significa o retorno de 33% e como é que esse valor foi encontrado. Se os investimentos fossem todos aplicados em produção desenvolvida localmente, o retorno para os negócios das empresas portuguesas equivaleria a 100 milhões € anuais. Mas isso não vai acontecer porque Portugal não tem capacidade para produzir os equipamentos que contêm maior valor acrescentado, tendo de os importar.
No investimento, a propensão marginal a importar em Portugal é superior a 0,4, mas este valor é uma média para toda a economia. Na área da defesa o valor é significativamente mais elevado, ou seja, o valor das importações nos equipamentos ultrapassa em muito a produção desenvolvida localmente. Se considerarmos uma propensão marginal a importar de 0,8, o valor para as empresas seria de 20 milhões e o retorno de 5% (despesa anual de 400 milhões na LPM).
A verdade é que as despesas de investimento já atribuídas são destinadas a comprar material importado ou estarão sujeitas a concursos públicos internacionais geridos pela NATO, em que qualquer fornecedor pode ser escolhido. Ou seja, o Ministério de Defesa não pode fazer ideia do quanto será o retorno para a economia portuguesa. Pode fazer de “adivinho”, que é o que parece estar a fazer, mas sem credibilidade. Convinha, por isso, que esclarecesse o que é que fundamenta o valor de 33% e o que é que ele representa em termos absolutos.
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