Os desafios do direito administrativo face ao Covid-19

  • Raquel Carvalho
  • 3 Agosto 2020

O direito administrativo confrontou-se com o seu fundamento: em emergência, o princípio da dignidade da pessoa humana, como alicerce ético, tem de enformar o direito emanado.

A pandemia da Covid-19 sublinhou, por um lado, algumas fragilidades que o Direito Administrativo enfrenta e, por outro lado, o desafio fundamental que o justifica. Nascido sob a égide do Direito Administrativo francês, tem a sua âncora fundamental no princípio da legalidade, tendo-se afirmado, numa primeira fase, como direito unilateral – o que casava bem com um Estado desprovido de dimensões prestacionais. Contudo, a evolução da configuração do Estado e respetivas tarefas, assente em constituições cada vez mais complexas e garantísticas dos direitos fundamentais dos cidadãos, exigiu o alargamento do seu campo de ação.

A pandemia e o direito emergencial que se produziu, à pressa, é direito administrativo, em grande medida: prestacional, proibitivo, protetivo, sancionatório. Acordado subitamente do sono da normalidade, o poder normativo, em desespero, produziu soluções normativas toscas e desenquadradas, assentes em técnica legislativa incipiente – vejam-se, exemplificativamente, os regimes excecionais no âmbito da contratação pública ou no âmbito das regras processuais. Não é que a emergência, como fundamento de decisões administrativas, não fosse conhecida. Era, contudo, um conceito abstrato, relegado para as dimensões do “improvável e circunscrito”.

A pandemia veio mostrar que as situações de emergência não são circunscritas ou de extensão conhecida, exigindo, no entanto, soluções jurídicas ponderadas e abrigadas na Lei e no Direito. Porque tocam dimensões jusfundamentais que carecem de proteção com a robustez de situações de normalidade. Era, por conseguinte, imperioso dar cobertura jurídica às diversificadas medidas sanitárias de proteção do direito fundamental à saúde nos mais diversos setores da sociedade. O poder normativo revelou-se impreparado e frágil. Os seus instrumentos habituais não encaixavam bem nas necessidades prementes e exigentes a que urgia dar resposta. O rumo foi sendo corrigido, ainda que seja avassalador o designado “direito emergencial”. Foi-se aprendendo, fazendo. Mas o preço a pagar só será conhecido quando regressar a normalidade.

No entanto, e simultaneamente, o direito administrativo confrontou-se com o seu fundamento: em emergência, o princípio da dignidade da pessoa humana, como alicerce ético, tem de enformar o direito emanado. O direito administrativo, como concretização da Constituição compromissória, está ao serviço das tarefas prestacionais do Estado e da proteção dos direitos dos cidadãos. Ao reconduzir-se a tal fundamento, revela-se necessário e justificado. Tarefa difícil e exigente, mas que refundará o Direito Administrativo e o seu postulado fundamental (e respetivos instrumentos): a sujeição ao Direito, mesmo em tempos de pandemia. Terá de reequacionar ou redesenhar instrumentos? Talvez… Terá aprendido como ultrapassar as fragilidades evidenciadas? Espero que sim, para que situações de emergência não sejam pretexto para deixar de ser um direito democrático.

  • Raquel Carvalho
  • Professora associada da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa

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