Plataformas digitais – legislação do trabalho feita por pessoas extraordinárias

  • Margarida Rosenbusch
  • 11:12

A nível pessoal reconheço que a “Lei das Plataformas Digitais” me deu de intervenção em salas de audiência, o que, em certos momentos, fui eu que retribuí de puro cansaço.

Há pessoas verdadeiramente extraordinárias. Serão todas, à sua maneira.

Umas pela gentileza e generosidade que não custa, aparentemente. Outras, pela capacidade que demonstram, mesmo que seja só aos olhos dos outros, em se satisfazer ou, mesmo, resignar perante o que seja que a vida lhes ofereça. Também há aquelas que tudo transformam, gerando oportunidade. Ou as que sendo agraciadas pelo sorriso fácil, contagiam quem opta por colocar-se à sua volta.

Noutras pessoas impressiona a soberba, a arrogância, ou a exigência de respeito que lhes impõe uma sua cabeça. E que geralmente nos impele a querermo-nos reconhecer como diferentes. E depois há aquelas por quem a saudade torna difícil, se não impossível, que se devolvam as lágrimas aos olhos. Essas, serão as extraordinariamente belas.

As Leis também podem ser extraordinárias. E no último ano deixei-me marcar por aquela a que chamam de “Lei das Plataformas Digitais”. À boleia da Agenda para o Trabalho Digno, o legislador optou por definir uma nova presunção de existência de contrato de trabalho. Desta feita dirigindo-a de forma certeira, mas não certa, à relação das plataformas digitais com tantos dos seus utilizadores.

Serão variadíssimas as objeções que podem dirigir-se à referida disposição legal. Uma norma que descura e desvirtua a presunção de contrato de trabalho já anteriormente prevista pela legislação laboral. E que ao fabricar uma presunção de contrato de trabalho à medida das situações que, de forma intencional, pretendeu abarcar, parece desobedecer ao princípio da lei geral e abstrata.

Mas mais extraordinária foi a forma como chegando se impôs e tomou conta daquilo que passou a ser o quotidiano de tantos.

Uma ação inspetiva em massa, promovida por um conjunto considerável de profissionais, com o intuito de identificar possíveis destinatários da referida presunção legal. Tribunais invadidos por uma multiplicidade de ações judiciais destinadas ao reconhecimento da existência de contratos de trabalho. E que na maioria dos casos, por serem processos de natureza “urgente”, passaram à frente de tantos outros processos, ditos “não urgentes”, ainda que também destinados à salvaguarda de pessoas extraordinárias, ciosas de uma justiça célere, que acabou por se ver adiada. E os utilizadores das plataformas posicionando-se como espetadores de quem parece ter-se arrogado o direito a poder definir o seu futuro, veem-se arrastados para disputas em tribunal, à revelia da respetiva vontade.

A aplicação da Lei pelos tribunais também se tem vindo a revelar curiosa. E sendo já conhecidas várias sentenças a nível nacional, com a esmagadora maioria a não reconhecer a existência de contrato de trabalho, pode, por vezes, revelar-se desconcertante – ou, paradoxalmente, um desafio – constatar que perante uma mesma factualidade, possa ser distinta a motivação que corrobora cada uma dessas mesmas decisões.

A nível pessoal reconheço que a “Lei das Plataformas Digitais” me deu de intervenção em salas de audiência, o que, em certos momentos, fui eu que retribuí de puro cansaço. Mas também deixou, e ainda bem, que me tirassem o conforto e a segurança pelo já conhecido, devolvendo-mo na forma de um desafio constante de horas de estudo, preparação e dedicação. Promovendo a discussão e entreajuda de uma equipa, e fazendo ver as diferenças no que respeita à estratégia ou à lucidez entre pares.

Hoje, ao invés de quem diariamente disputa a aplicação da lei, já não me impressiona quem fez a Lei das Plataformas Digitais. Vendo com clareza – e evidente satisfação, até, – que a aplicação da lei, livre da dependência do olhar dos outros ou de quaisquer convicções ou experiências pessoais, largamente se não deixa contaminar por objetivos definidos. Reinando a sensatez, a sabedoria e direi mesmo, a serenidade, quando face uma mesma e única factualidade apresentada em juízo, se vem procedendo à sua aplicação.

É extraordinário, sim, o impacto que uma lei pode ter na vida de tantos.

  • Margarida Rosenbusch
  • Associada sénior de Direito do Trabalho & Fundos de Pensões da CMS Portugal

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