Presunção de inocência: uma garantia evanescente?
Leia aqui o artigo de opinião do sócio da Cuatrecasas, Paulo de Sá e Cunha, sobre a presunção de inocência.
Acontecimentos recentes têm-me levado a reflectir sobre a interrogação que dá título a estas linhas.
Não pretendo pôr em causa a observância do princípio da presunção de inocência no plano estritamente processual penal, já que não há razão para duvidar que na prática judiciária aquele seja respeitado em todas as suas vertentes. O que está em causa é outra realidade, mais difusa e menos perceptível à observação, mas com múltiplas interacções e manifestações.
Não carece de ser demonstrado que vivemos numa nova era, em que comportamentos outrora tidos por aceitáveis ou, no limite, toleráveis, são hoje objecto de um juízo social de reprovação. Este fenómeno, que naturalmente conforma o critério jurídico-penal de adequação social, tem sido acompanhado de um acentuado reforço de critérios de transparência que, entre outros efeitos, se vem manifestando na erosão de um conjunto de segredos anteriormente merecedores de tutela.
Esta alteração de mundividência tem andado a par da intensa atenção dos media aos temas de justiça e da fulgurante disseminação de notícias através das redes sociais, o que leva a que o segredo de justiça seja absolutamente ineficaz em todos aqueles casos que despertam o interesse do público. Todos os dias vêm a lume novas investigações criminais, realizações de buscas, detenções e um extenso rol de suspeitos e arguidos, cuja identidade é, com frequência, revelada.
É sabido que a exposição pública da condição de arguido conduz invariavelmente à formulação de pré-juízos, orientados no sentido da culpabilidade dos visados (“não há fumo sem fogo…”). Dir-se-á que é uma tendência inevitável, mas de que bole com a presunção de inocência ninguém duvidará.
E há pior. Começam a desenhar-se novas tendências que associam à mera qualidade de arguido consequências penosas, seja num plano institucional seja no das relações privadas. Pense-se na aferição da idoneidade levada a cabo por reguladores (v. g. na actividade bancária e financeira) ou na generalização, nas relações comerciais, da sujeição das contrapartes a questionários de conformidade, em que se indaga acerca da pendência de processos penais contra administradores ou directores. Ou, ainda, nas práticas de prevenção de danos reputacionais, que levam as organizações a afastar do seu seio pessoas sobre as quais recaiam suspeitas de comportamentos delituosos. Em todas estas situações a presunção de inocência é completamente postergada, sacrificada a uma pretensa prossecução de outros interesses, nem sempre de igual dignidade e dimensão axiológica. A este respeito, a condição de arguido, longe de servir os propósitos defensivos que lhe subjazem, constitui para os que a ostentam um verdadeiro estatuto corrosivo, fazendo-se repercutir negativamente antes de uma eventual acusação ou condenação e independentemente destas.
Esta nova orientação, que tenho por inaceitável, levará à progressiva delapidação do princípio da presunção de inocência, restringindo consideravelmente o seu efeito útil, sendo incompreensível que tudo isto decorra ante a complacência da comunidade jurídica e dos advogados em especial.
A propósito destes temas, será recomendável ver o novo filme de Clint Eastwood, “O caso de Richard Jewel”. Sendo revelador das perversidades do sistema de justiça norte-americano (e dos desmandos de alguma comunicação social), não deixa de demonstrar as virtualidades de autorregeneração deste último, que espero sejam comuns às do nosso.
*Paulo de Sá e Cunha é sócio da Cuatrecasas.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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