Regulação e (des)informação: o que é que o coronavírus tem a ver com isto?

  • Nádia da Costa Ribeiro
  • 8 Abril 2020

Legisladores e reguladores têm um grave problema por tratar: a desinformação gerada pelo tratamento de dados que entidades movidas por interesses desconhecidos têm lançado para o domínio público.

Num mundo pós-Cambridge Analytics, em que o Brexit se tornou uma realidade e o populismo político se afirma como status quo, é hoje ponto assente que os dados são mais do que conjuntos de informação sem relevância. Os dados adquiriram um valor incomensurável e a 4.ª revolução industrial centra-se sobretudo na digitalização da economia e em fenómenos como big data e data analytics.

Um dos reflexos desta Economia dos Dados é o facto de plataformas over the top, como a Netflix, Spotify ou Disney+, disporem de recursos que lhes permitem prever e antecipar os conteúdos que nós, utilizadores, queremos consumir. Os dados que fornecemos permitem-lhes traçar o nosso perfil de consumo, quer para uso próprio, quer para comercialização a terceiros, promovendo uma prática de monetização dos dados. Muitos modelos de negócio têm sido construídos em torno do tratamento destes dados, levando a opinião pública a assumir que o indivíduo e a monetização dos seus dados pessoais (qualquer “informação relativa a uma pessoa viva, identificada ou identificável”, na aceção da lei) se teriam tornado no principal produto transacionado pelos gigantes tecnológicos.

Não nos iludamos, pois existem muitos outros com valor económico real. E a Internet trouxe consigo a possibilidade de os dados serem gerados e lançados na cadeia de valor a uma velocidade vertiginosa.

Os dados são matéria bruta que, transformada e tratada, gera conhecimento. Há que perceber se este processo transformador apresenta distorções que necessitam de intervenção regulatória. Casos como Cambridge Analytics dizem-nos que sim.

Uma parte do problema tem solução, porque o tratamento dos dados pessoais é hoje objeto de forte proteção e intervenção. Integrando-os no núcleo da esfera da reserva da vida privada de um indivíduo, são imprescindíveis à dignidade da pessoa humana e merecem uma elevada proteção jurídica. Mas não podemos falar de uma harmonização desta proteção, pois, comparando com o quadro vigente nos Estados-Membros da UE, muitos ordenamentos não conferem uma tutela com a mesma intensidade (pense-se nos EUA e no Patriot Act) ou a mesma densificação normativa, como em muitos países africanos em que, ou não existe legislação acerca desta matéria, ou ainda está em fase de elaboração ou aprovação.

Mais, quando pensamos nas fake news que já lemos desde o início do surto do coronavírus, chegamos à conclusão de que legisladores e reguladores têm um grave problema por tratar: a desinformação gerada pelo tratamento de dados que entidades movidas por interesses desconhecidos têm lançado para o domínio público e que pode causar efeitos desastrosos como pânico, xenofobia e mesmo atuações suscetíveis de pôr em causa o nosso bem-estar físico à escala global.

Estaremos reféns dos produtores de conteúdos online anónimos? Em princípio não, porque hoje já existem mecanismos regulatórios em vários setores nos quais os Reguladores se podem inspirar.

Primeiramente há que estabelecer mecanismos de controlo de qualidade dos dados; segundo, analisar o mercado das plataformas agregadoras de conteúdos digitais e as suas circunstâncias de funcionamento para detetar eventuais distorções; terceiro, é necessário saber se existem assimetrias de informação entre quem gera os dados e quem os recolhe para o seu tratamento e, entre estes e quem consome a informação produzida, e como as mitigar; quarto, é preciso saber se há necessidade de implementar mecanismos de controlo do fluxo dos dados, em particular transfronteiriço, quando as regras jurídicas são dispares no tratamento deste tema.

Os principais desafios serão a territorialidade (a informação é trocada no âmbito da conectividade internacional, “terra de ninguém” a nível regulatório) e encontrar o equilíbrio para que o mercado continue a funcionar sem que ponha em causa a emergência e a efervescência da Economia dos Dados – tão essencial para o desenvolvimento de mercados como os africanos, nos quais as startups começam a ter notoriedade e onde os dados podem assumir o papel de potenciadores económicos na próxima década.

*Nádia da Costa Ribeiro é Of Counsel da Broseta Advogados.

  • Nádia da Costa Ribeiro
  • Of Counsel da Broseta Advogados

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