Transposição da DAC 6: o retrato de uma delação fiscal obrigatória
Na transposição da DAC 6 para o ordenamento jurídico doméstico pedia-se ao legislador nacional que, pelo menos, se quedasse modestamente ao nível do estritamente exigido pela Diretiva.
O combate à evasão e à fraude fiscais bem como à redução da base tributável e ao desvio da tributação para jurisdições convenientes, continua a ser uma das preocupações da comunidade fiscal internacional e polo agregador de iniciativas legislativas ou de mera soft law, a nível global. A erosão das receitas fiscais estima-se em muitas centenas de milhares de milhões de euros e é uma das principais causas da pressão fiscal que os países desenvolvidos se veem obrigados a exercer sobre os seus cidadãos e empresas para manterem o nível de receitas necessário para a sustentação do welfare state.
Animadas do objetivo comum de promover a lealdade fiscal e prevenir a evasão e a fraude fiscais, são muitas as organizações que procuram definir regras de conduta, harmonizar procedimentos entre Estados e, em geral, contrariar as práticas com objetivos de diminuição ou deslocação artificiais das bases tributáveis.
A OCDE mantém uma posição liderante neste combate e no seu seio têm vindo a ser trabalhadas ao longo dos anos múltiplas ações de que se destaca o plano de ação impulsionado pelo G20 denominado “Addressing Base Erosion and Profit Shifting” (conhecido pelo acrónimo BEPS). Uma das ações contempladas no projeto BEPS, a ação 12, refere-se à implementação de medidas obrigatórias de troca de informações com relevância fiscal as quais passaram das convenções de dupla tributação, para os acordos de troca de informações, e, mais recentemente para a convenção multilateral de assistência administrativa, com os seus sucedâneos, o acordo de entidades competentes e a norma comum de comunicação. Ainda neste esforço de conferir transparência às práticas fiscais insere-se a Ação 13 do mesmo plano de ação respeitante ao relatório país-a-país visando as empresas multinacionais, assim como, no âmbito da Ação 5, relativa às práticas fiscais prejudiciais, a exigência de troca de informações fiscais (tax rulings) e de acordos relativos a preços de transferência (APA)
Também a Europa, para além do vasto acervo de instrumentos legislativos de direito derivado que tem aprovado, nomeadamente em matéria de branqueamento de capitais, ainda antes da iniciativa BEPS da OCDE, havia também traçado linhas normativas de grande relevância para o combate à fraude e evasão fiscais através da implementação de mecanismos de transparência capazes de dissuadir e combater o planeamento fiscal agressivo e a deslocação das bases tributáveis. Destaca-se, no que aqui importa, a Diretiva 2011/16/EU relativa à cooperação administrativa no domínio da fiscalidade (conhecida pelo acrónimo DAC de Directive on Administrative Cooperation), a qual foi sendo sucessivamente alterada até à última dessas alterações a ser aprovada, a DAC 6 (Diretiva (UE) 2018/822 do Conselho, de 25 de maio de 2018).
As alterações introduzidas por esta última diretiva têm grande alcance no combate à fraude e evasão fiscais na medida em que estabelecem a obrigatoriedade de reporte às autoridades fiscais dos Estados-Membros, e destes entre si, de esquemas ou mecanismos (arrangements) que visem ou de que resultem vantagens fiscais.
Este vasto conjunto normativo de fonte internacional tem vindo a ser transposto para a legislação doméstica vinculando simultaneamente o Estado português ao cumprimento dos deveres de informação neles contidos e, reciprocamente, vinculando os outros Estados ao cumprimento dos mesmos deveres vis-à-vis o Estado português. Quanto à referida DAC 6, que modifica e renova o quadro de transparência nas operações transfronteiriças que resultava já da citada Diretiva de Cooperação Administrativa e das sucessivas revisões e atualizações, foi transposta para a legislação doméstica através da Lei n.º 26/2020, de 21 de julho. Devido aos efeitos da pandemia da doença COVID-19, o Decreto-Lei n.º 53/2020, de 11 de agosto, diferiu para 2021, o cumprimento das primeiras obrigações declarativas a realizar no âmbito da aplicação da mencionada Lei.
Para além do debate a nível europeu, por ora meramente doutrinário e iniciático, sobre o desrespeito pela DAC 6 do direito primário da União Europeia e das liberdades fundamentais, a transposição da DAC 6 para o ordenamento jurídico português tem sido marcada nesta fase pela discussão de duas opções do legislador: por um lado, o alargamento da obrigatoriedade de comunicação aos mecanismos exclusivamente domésticos, e, por outro, o modelo de derrogação do sigilo profissional a que se encontram sujeitos alguns intermediários.
O pioneirismo do primeiro aspeto é apenas aparente já que o ordenamento jurídico português obrigava desde 2008 que os ‘esquemas’ de planeamento fiscal fossem comunicados à administração tributária. Trata-se do Decreto-Lei n.º 29/2008, de 25 de fevereiro, ainda em vigor, que, não obstante o alarido com que foi publicitado, acabaria praticamente como letra morta dando lugar a pouco mais de uma dúzia de comunicações conhecidas em 12 anos de vigência! Aliás, alguns factos de enorme gravidade no plano da fraude e evasão fiscal ocorreram na vigência daquele diploma sem que, ao que se saiba, este tenha sido o imediato ou sequer mediato gatilho da investigação.
E percebe-se a inutilidade de uma obrigação de comunicação como a que é exigida para os mecanismos domésticos perante a circunstância de as operações intra muros serem já suscetíveis de ser analisadas e conhecidas pela administração tributária. Com efeito, são muito amplas as fontes de informação à sua disposição em relação a operações estritamente domésticas, muitas dessas informações que são já um enorme fardo para os agentes económicos e que é obrigação estrita da administração tributária analisar e perseguir. Agravar os deveres de informação apenas porque através das suas estruturas o Estado não consegue interpretar e perseguir os vastíssimos dados de que já dispõe, é transferir para os agentes económicos obrigações e custos que competem ao próprio Estado, que para esse efeito se deve apetrechar e organizar, se é que ainda não o está. Aliás, não será por acaso que os demais Estados-Membros, com as exceções da Polónia (ainda assim estabelecendo plafonds para a aplicação aos mecanismos internos) e do Reino Unido (que já aplicava mecanismos internos de comunicação obrigatória), não adotam as medidas de comunicação nacionais adicionais de natureza semelhante como admitido no preâmbulo da Diretiva, ainda que restritas à utilização do próprio Estado-Membro onde forem tomadas (cf. ponto 10 do Preâmbulo).
Está por avaliar se a ‘colagem’ às comunicações de mecanismos transfronteiriços dos mecanismos internos que agora se prevê na Lei 26/2020, permitirá atingir o nível de cumprimento voluntário que esteve ausente na aplicação do ainda vigente Decreto-Lei n.º 29/2008. Mas, no final do dia, a oportunidade ou inoportunidade desta ‘reabilitação’ do regime referido, acaba por ser uma questão de política legislativa.
O segundo ponto da polémica refere-se à sobreposição da lei nova às normas que instituem e protegem o sigilo em algumas profissões, com destaque para o dever de sigilo profissional dos advogados expressamente contemplado na lei (cf. artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela Lei n.º 145/2015, de 9 de setembro). Com efeito, ao impor aos intermediários, onde se incluem os advogados e outras atividades profissionais sobre as quais recaem obrigações de sigilo, uma obrigação subsidiária de comunicação aplicável se e quando o contribuinte relevante não fizer ele próprio a comunicação do mecanismo interno ou transfronteiriço, o legislador derroga expressamente o dever de sigilo profissional. Esta derrogação é manifestamente intolerável por ofender as fundações do dever de segredo que, em particular, no caso dos advogados, têm assento na Constituição (cf. artigo 208º) e nos princípios do Estado de Direito. A ser admitida esta ofensa ao dever de sigilo dos advogados e às garantias constitucionais que o rodeiam, estaria encontrada a forma de a administração tributária conseguir de modo espontâneo, informação a que só nos estreitos limites da lei e com controlo judicial prévio pode obter (cf. artigo 75º do Estatuto da Ordem dos Advogados).
A estes pontos evidentes de polémica sobre o novo regime de comunicação decorrente da transposição da DAC 6 junta-se um outro que se prende com a obrigação de comunicação de mecanismos transfronteiriços (e apenas estes) que tenham ocorrido desde 25 de junho de 2018. É bem conhecida a sensibilidade da aplicação retroativa de normas tributárias, quer no plano da Constituição (cf. artigo 103º/4) como da Lei Geral Tributária (artigo 12º). Conscientes das limitações da aplicação do princípio da irretroatividade das normas tributárias à nova obrigação de comunicação de mecanismos transfronteiriços, não pode deixar de se assinalar a falta de proporcionalidade de tal medida ao impor aos contribuintes relevantes e intermediários que, em relação a informação que poderão não estar obrigados genericamente a conservar, procedam eles próprios à retrospetiva de operações que realizaram ou que acompanharam para as comunicarem. E não o fazendo sujeitam-se à aplicação de coimas as quais, podendo não ser qualificadas como retroativas, não deixam de ser injustas ao imporem um dever de vigilância sobre operações realizadas antes, ou mesmo muito antes, da efetividade da nova obrigação.
Começámos por referir a importância do combate fraude e da evasão fiscais tendo em vista o equilíbrio das prestações tributárias as quais acabam por recair de forma agravada sobre as empresas e os indivíduos que cumprem regularmente as suas obrigações tributárias. Desde uma perspetiva liberal de funcionamento dos mercados e da concorrência não é fácil aceitar imposições do tipo das que a DAC 6 estabelece as quais interferem no direito de os agentes económicos conformarem livremente as suas operações dentro dos limites que a lei lhes confere. Com efeito, no contexto de hiper-regulação que caracteriza a generalidade dos sistemas fiscais dos países desenvolvidos, onde proliferam mecanismos de controlo automático de rendimentos e de obrigações, cláusulas abertas conferindo poderes quase discricionários às administrações tributárias (v.g. as cláusulas gerais antiabuso), regimes sancionatórios que amiúde elevam as infrações tributárias ao nível dos crimes contra a pessoa humana, instrumentos de investigação fortemente invasivos (v.g. o acesso à informação bancária ou a comunicação de ativos financeiros), é manifestamente excessivo submeter os agentes económicos ao dever de exporem os seus próprios modelos de negócio, orientados por critérios de eficiência de que não está, obviamente, arredada a eficiência fiscal.
Compete às administrações tributárias, com a panóplia de ferramentas e as vastas informações que têm ao seu dispor, fazerem o seu trabalho, sem que tenham de ser as empresas e os empresários a delatarem-se a si próprios ou a impor a outros o dever de o fazerem colocando em causa negócios e relações de confiança sem as quais aqueles não existem.
Por isto, na transposição da DAC 6 para o ordenamento jurídico doméstico pedia-se ao legislador nacional que, pelo menos, se quedasse modestamente ao nível do estritamente exigido pela Diretiva e não que, indo além disso, emproasse impondo ainda maiores ónus às empresas e empresários e aos seus consultores e advogados.
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