Um discurso e oito bandeiras
Perdidas as referências tradicionais, os extremos crescem na redefinição das novas fronteiras políticas entre amigos e inimigos.
A democracia portuguesa exibe as fissuras de um regime cansado. Com boa vontade, a ideia original e primeira de um Portugal democrático tem vindo a dissipar-se com o tempo de um meio século. Cartazes e insultos são o sintoma que as mudanças políticas importantes são um fenómeno profundo no panorama da aventura nacional. O Portugal democrático parece uma película de verniz aplicado à pressa sobre o velho Portugal autoritário. Com o tempo, o verniz escurece e revela no intervalo das fissuras o Portugal de sempre – O Portugal da ordem e do respeito, o país cinzento conciliado com o orgulho e a ignorância em nome de uma qualquer identidade nacional.
Se o pessoal político mudou em estabilidade desde a normalização democrática, as mudanças políticas parecem ter sido mínimas em função de uma nova mentalidade democrática. O que surge hoje à superfície da política contemporânea é uma aparente divergência entre o país político e o país real que tomaram destinos diferentes. O país político instalou-se numa configuração nacional que surge como a afirmação recorrente e histórica de uma superioridade natural própria de uma elite. O país de cima. O país real acomodou-se a uma configuração nacional que surge como a afirmação recorrente e histórica de uma inferioridade natural própria de um português normal. O país de baixo. O conflito aparece agora nesta fase de indefinição democrática e representa um facto decisivo e preocupante – A política começa a não conseguir representar a sociedade.
O Portugal contemporâneo não tem a consciência de que a política é diariamente marcada por conflitos sociais, étnicos, religiosos, nacionalistas, e que a política portuguesa está a atravessar um período de crise de eficácia e uma fase de crise de legitimidade. A democracia liberal portuguesa tem sido incapaz de compreender este desfasamento entre o país de cima e o país de baixo, mesmo quando é neste desencontro que a eficácia democrática se revela e a legitimidade política ganha contornos de ilegitimidade. Votar de quatro em quatro anos é a visão essencialista da democracia liberal e a representatividade parlamentar um sucedâneo de um princípio geral e abstracto. Pode gerar estabilidade, mas também gera ressentimento quando a alternância funciona no circuito fechado de uma elite e na persistência de uma nação de excluídos.
O que parece estar em causa nestes tempos difíceis é a visão universal, individual e racional que a democracia liberal transporta na acção e na prática. O fetichismo do centro, a ilusão dos consensos, retira à democracia portuguesa a capacidade para incorporar e compreender o fenómeno da violência política verbal no centro da vida social do país. É no espaço da violência política verbal que se definem as identidades políticas em confronto. É no espaço da violência política verbal que se reformulam as categorias centrais à própria concepção de uma vida democrática civilizada – Categorias como a cidadania, a comunidade, a tolerância. Quem define o que é um cidadão define a natureza da comunidade e define o alcance da tolerância. No limite da uniformidade, o pluralismo é uma forma de dissidência que toca a categoria de um crime político. Nesta concepção, a pluralidade é a consciência da uniformidade. Este é talvez o ramo autoritário de uma democracia não liberal.
Neste preciso momento, Portugal está talvez a sofrer um profundo processo de redefinição da sua identidade colectiva e a experimentar o estabelecimento de novas fronteiras políticas. A política está lentamente a abandonar o consenso democrático sobre as regras e os procedimentos e a substituir o debate pelo confronto verbal entre “amigo/ inimigo”. O motor da política não é uma concepção de um progresso colectivo, mas é sobretudo a ideia de um regresso colectivo mediante a definição de uma fronteira entre “nós” e os “outros”.
A direita moderada e clássica tem uma enorme dificuldade em posicionar-se politicamente nesta nova fase da democracia observada enquanto lugar de fronteira e local de exclusão. A esquerda moderada e clássica tem igualmente uma enorme dificuldade em assumir um discurso político a partir de um qualquer lado da fronteira – Este é o motivo da grande regressão à esquerda que absorve a própria esquerda radical perdida nas novas fronteiras. Estas novas fronteiras são definidas pela direita radical que se sente confortável no mundo político que é da sua própria criação. Neste novo mundo político, o “inimigo interno” é a esquerda em geral e o socialismo em particular, mais a corrupção, mais a imigração, mais tudo aquilo que represente na visão política dos nativos uma ameaça à identidade cultural e à soberania nacional dos “verdadeiros portugueses”.
O crescimento da direita radical na Europa resulta da crise de identidade política que afecta a democracia liberal. Perdidas as referências tradicionais, os extremos crescem na redefinição das novas fronteiras políticas entre amigos e inimigos.
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