Editorial

Um Governo a especular

O Governo chegou tarde, como é costume, ao problema associado ao aumento de preços alimentares e como não tem respostas, decidiu apontar o dedo.

O Governo anda, sistematicamente, atrás do prejuízo, decide (ou anuncia decisões, o que é coisa diferente) quando percebe que tem em mãos um problema económico ou social, ou os dois somados, e por isso não resiste a tentar encontrar bodes expiatórios para expiar as suas próprias omissões. É o que se está a passar na reação do Governo, e particularmente dos ministérios da Economia e da Agricultura, sobre o aumento acelerado dos preços dos bens alimentares, claramente acima da inflação média do país. Qual é o problema? Em vez de ajudar, o Governo está a especular sobre as razões destes aumentos.

Lembram-se quando o primeiro-ministro e o ministro das Finanças (e o governador do Banco de Portugal, Mário Centeno) nos garantiam que a subida dos preços era temporária e seria corrigida no segundo semestre de 2022? Como é óbvio, as respostas surgiram tarde, como estão a surgir agora em relação aos preços dos alimentos. O Governo volta a anunciar um Observatório dos preços (uma medida importante) que estava anunciado para arrancar em outubro do ano passado.

Na semana passada, o Governo transformou a grande distribuição no culpado disto tudo. Atirou uns números sobre aumento das margens brutas de um ano para o outro em produtos específicos, sem clarificar conceitos ou sequer a fonte desta informação, ou melhor, desta desinformação. Anunciou mais inspeções e a palavra de que estava a avaliar o que é mesmo um problema para o rendimentos de milhões de portugueses.

Na verdade, o Governo não decidiu nada, mas foi obrigado a dizer alguma coisa, e como não tinha nada para dizer, apontou o dedo. Os números, esses, dizem o contrário do que o Governo sugere, como se pode constata da notícia do ECO publicada hoje e que pode ler aqui. Um exemplo:

  • O Continente fechou os primeiros nove meses de 2022 com uma margem EBITDA subjacente (margem de lucro) de 9,31%, face a 9,90% no mesmo período do ano anterior. Significa que, entre janeiro e setembro de 2022, por cada 100 euros de vendas realizadas, a Sonae lucrou 9,3 euros, menos 6% que no mesmo período de 2021. Entre 2019 e 2021, a margem de lucro da Sonae MC (que agrega o Continente) foi de 9,9%. O mesmo sucede com a margem bruta (rácio entre vendas e custo das vendas de mercadorias), se bem que numa proporção mais reduzida: segundo as contas da Sonae MC, a margem bruta nos primeiros nove meses de 2022 foi de 41,9%, que compara com 42% no mesmo período de 2021 e 42% em 2019. Significa que por cada 100 euros de compras realizadas entre janeiro e setembro de 2022, o grupo Sonae faturou 41,9 euros.Outros números: O índice de preços do lado da produção agrícola aumentou 33,6 pontos percentuais (de 2,3% para 35,9%), do lado da indústria alimentar aumentou 18,4 pontos percentuais (evoluiu de 13,3% para 31,7%) e o índice de preços dos produtos alimentares na distribuição/retalho alimentar aumentou 16,2 pontos percentuais (passou de 3,7% para 19,9%), sempre inferior ao da indústria alimentar em cerca de 10 pontos percentuais. Portanto, os preços estão a acelerar em todas as fases do cadeia de valor. A seca, a energia, os fertilizantes, os custos das cadeias logísticas, a guerra no celeiro da Europa, tudo contribuiu para o aumento dos preços, assim como o aumento dos custos salariais, por exemplo. Há abusos, sinais de especulação? Inspecione-se, ponham-se equipas na rua.

Claro, o Governo não resiste a sugerir que poderá fixar os preços máximos de forma administrativa, porque sabe que a grande distribuição é, como as empresas de energia ou a banca, um setor mal amado, impopular, mas esse seria meio caminho andado para retirar produtos do mercado e pressionar ainda mais os preços no curto e médio prazo.

Além das inspeções e fiscalizações, sobretudo para monitorizar a relação de forças entre a grande distribuição e os pequenos produtores, o Governo deve promover a transparência e a informação sobre a formação de preços, deve fazer nos alimentos o que está a ser feito nos combustíveis, por exemplo, e as ferramentas digitais que permitem fazer isso sem grandes problemas. A transparência da informação também funciona como um travão a tentações de abusos nos preços, da grande e da pequena distribuição. O Governo tem outro instrumento, a Autoridade da Concorrência, para promover o mercado e concorrência nas várias fases da cadeia de valor dos produtos alimentares.

Neste contexto, o Governo vai ter de apoiar as famílias mais carenciadas, seja com vales-alimentação ou outro qualquer subsídio temporário que permita suavizar o esforço financeiro de quem já está a perder rendimentos há um ano, como fez, aliás, em 2022.

Finalmente, o Governo tem um poderoso instrumento à sua disposição: O Governo pode baixar o IVA dos bens alimentares, nem que seja por um período limitado no tempo, como fez por exemplo o governo espanhol. Há o risco de apropriação dessa margem, sim, mas para isso é que servem as inspeções da ASAE.

Isto é, o Governo pode e deve fazer várias coisas, poderia sentar-se à mesa com os representantes dos setores, a produção e a distribuição, para promover boas práticas e mais informação aos consumidores, um consumo mais sustentável também, mas para isso não pode estar a apontar o dedo às segundas e procurar parcerias às sextas (ou criar impostos extraordinários…). Só não pode nem deve interferir nos mercados e tentar manipular a formação dos preços de forma administrativa, isso seria apenas outra forma de especulação.

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