Um momento Hamiltoniano?

As estratégias que venham de cima para baixo, com vista à federalização da Europa, estarão condenadas ao fracasso.

Na semana passada, a Alemanha e a França surpreenderam ao terem proposto conjuntamente uma dotação de 500 mil milhões de euros para o novo fundo de recuperação da União Europeia e, mais do que isso, ao terem-no proposto na forma de subvenções não reembolsáveis. A ideia contou de imediato com a aprovação da Comissão Europeia e logo houve quem falasse de um momento Hamiltoniano na Europa. Mas a ideia contou também com a imediata desaprovação dos chamados frugais do Norte. Afinal, como sairá a União Europeia deste embate?

É evidente que a aliança franco-alemã marcou uma posição. Como afirmou Macron, a evolução da Europa não é decidida entre a Alemanha e a França, no entanto, também não há decisão que possa avançar na Europa sem o apoio da Alemanha e da França. Trata-se de uma visão pragmática de Macron. Já o apoio à ideia de um fundo de subvenções, por parte de Merkel, corresponde a uma visão bastante diferente daquela que tem sido a perspectiva germânica nesta matéria. Tal como na crise dos refugiados, Merkel surpreendeu novamente.

Há muitos detalhes que ainda estão em discussão. Em particular, falta especificar os critérios de atribuição dos fundos e também falta perceber se os fundos permitirão pagar despesa corrente ou apenas despesa de investimento. Os países que têm sido mais vocais na defesa de um instrumento desta natureza querem financiar os dois tipos de despesa. Já os frugais apenas pretendem dar cobertura ao financiamento de despesa de investimento e de forma restrita. Os primeiros querem autonomia de gestão. Os segundos pretendem condicionalidade.

Está ainda por esclarecer o próprio financiamento do fundo de recuperação. Já se percebeu que o Banco Central Europeu vai tomar boa parte da dívida emitida pela Comissão Europeia. O BCE pode absorver dívida com maturidade até 30 anos. De resto, entre Lagarde e Von der Leyen reside a outra parceria franco-alemã. Todavia, ainda não se percebeu que tipo de amortização de capital estará associada ao financiamento do fundo. Serão admissíveis, por exemplo, obrigações perpétuas (pagando juros, mas sem amortizações de capital)?

A tipologia de financiamento do fundo de recuperação determinará o custo total do mesmo para os países membros da União Europeia. Assumindo que uma emissão obrigacionista da União Europeia custará 0,5% ao ano, na parte do pagamento dos juros estaremos a considerar 2,5 mil milhões de euros por ano. Tratando-se de um montante equivalente a 1,5% do orçamento anual da União Europeia seria perfeitamente comportável. Bastaria ir ao orçamento da PAC (cerca de 60 mil milhões de euros). Mas se houver amortizações de capital o caso muda de figura.

A avaliar pelas notícias que vão saindo, que dão conta dos planos da Comissão Europeia no sentido de avançar com impostos europeus, o fundo de recuperação envolverá a necessidade de recursos próprios ou, alternativamente, o aumento das contribuições nacionais para o orçamento europeu. Ora, é aqui que surgem as clivagens, porque os impostos continuam a ser matéria de soberania nacional e, também, porque não se vislumbra grande vontade dos países membros em aumentarem as suas contribuições para o orçamento comunitário.

Segundo a imprensa internacional, a Comissão Europeia tem em cima da mesa a criação de um imposto sobre resíduos plásticos, o alargamento do mercado de direitos de emissões de carbono a mais sectores, a imposição de um tributo alfandegário “verde” sobre importações carbono-intensivas provenientes de fora da União Europeia e ainda o imposto digital sobre os gigantes do sector. Tudo somado, segundo estimativas da própria Comissão, a receita destes impostos ou equivalentes seria superior a 20 mil milhões de euros por ano e, portanto, suficiente para acomodar os juros e o reembolso de 500 mil milhões de euros no espaço de 30 anos.

Sem prejuízo da força da posição franco-alemã, continuo céptico quanto ao sucesso final do fundo de recuperação e parece-me errada a preferência por impostos europeus sem antes ser reavaliada a forma como o orçamento comunitário distribui as suas dotações actuais. É verdade que, na ausência de consenso, existe a via da cooperação reforçada entre países. Mas esse caminho acentuaria as divisões numa altura em que muitos veem na Europa riscos de desintegração. Também a instrumentalização do BCE, para financiar o fundo de recuperação, seria ferida de morte caso não houvesse consenso entre todos os seus subscritores de capital.

Na minha opinião, as estratégias que venham de cima para baixo, com vista à federalização da Europa, numa Europa tão díspar, estarão condenadas ao fracasso. Pelo contrário, todas aquelas que assentassem em preferências pan-europeias, como seria provavelmente a ideia do mercado comum da saúde (que avancei num outro artigo aqui no ECO), partindo de baixo para cima, permitiriam federalizar motivações comuns e, a prazo, também (partes dos) orçamentos. Por mais paradoxal que pareça, a discussão sobre o fundo de recuperação, com os seus antagonismos e potencialmente venenosa, poderá bloquear a integração europeia.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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