Manuel Carvalho, Lurdes Sousa, Belarmino Tomás e Encarnação e Francisco Videira. Cinco portugueses que foram para Angola à procura de uma vida melhor e que, anos depois se viram obrigados a regressar.
“Chamava-se Mártir São Sebastião, mas, como começou a meter água no dia 16 de setembro, mudei-lhe o nome para Santa Eufémia”. ‘Ele’ era o barco que trouxe Manuel Carvalho de Luanda até Portimão, em setembro de 1974. Santa Eufémia, a padroeira da sua terra. Acredita que foi a santa que lhe deu força para fazer as cerca de 5.000 milhas náuticas que separam os dois países. E aos outros 600 mil portugueses que tiveram de abandonar Angola?
Na segunda metade do século XX, muitos foram aqueles que rumaram a sul para encontrar uma vida melhor. Manuel Carvalho, Lurdes Sousa, Belarmino Tomás e Encarnação e Francisco Videira foram apenas cinco dos que viram nas províncias ultramarinas um sítio para construir vida. Com a carta de chamada na mala — documento indispensável para os portugueses que queriam ir para as colónias — e os familiares à espera em Angola, partiram de navio ou avião, muitos deles para regressar poucos anos depois.
De Henrique de Carvalho a Lobito
Manuel foi com 11 anos para Luanda. Trabalhou com os tios, passou brevemente pelo Exército, mas foi na atividade piscatória que começou a singrar. Agora, 58 anos depois, afirma ter sido mais que uma passagem: “Foi lá que comecei a trabalhar e, graças a Deus, a vida começou a dar. Ganhei amor àquilo.” Em Portugal deixou Rosa Maria.
Conheceram-se na escola primária, começaram a namorar por carta e viriam a casar depois da independência de Angola. Entre eventos, Lurdes, irmã de Rosa Maria, partiu para Angola, instalando-se com o marido e os dois filhos a 70 quilómetros de Malanje ou, como a própria diz, “no mato”.
"Foi lá que comecei a trabalhar e graças a Deus a vida começou a dar. Ganhei amor àquilo.”
“Quando saí daqui não sabia o que ia encontrar, chorei muito”, afirma Lurdes, cunhada de Manuel. “A minha mãe escrevia-me e eu dizia que estava sempre tudo bem, que tinha ido aqui e ali. Mas cá dentro…”, confessa Lurdes. Era proprietária, em conjunto com o marido, de uma mercearia.
O comércio estabelecia-se assim como uma das atividades que empregava mais portugueses, em conjunto com a construção e a indústria. Belarmino mudou-se em 1969 da Serra da Estrela para Lobito e, ainda que tenha “feito a tropa por lá”, como conta, firmou-se no comércio de bicicletas. Lembra uma cidade cheia de atividade, com as salinas, a indústria da cana-de-açúcar e da seca de peixe a concorrer com a agricultura. “Eram terras férteis, davam batatas três vezes por ano”, recorda.
Também do comércio mas, na cidade de Henrique de Carvalho — agora cidade de Saurimo –, se sustentavam Encarnação e Francisco Videira. Já casado, Francisco passou dois anos a servir o Exército no Congo, tendo-se depois mudado para Angola. Encarnação e a filha mais velha vão depois para a cidade onde viriam a nascer mais dois membros da família, um em 1973, outro em 1975.
“Ainda estive a trabalhar na loja com o meu marido, mas punha a mão na balança para os clientes pagarem menos, por isso fiquei só a tratar dos meus filhos”, conta, entre risos, Encarnação. Até que se deu o 25 de abril e, com ele, a descolonização.
Nem o alto mar assustou os que queriam voltar
O clima de guerra e insegurança adensou-se com as lutas entre movimentos revolucionários a espalharem-se para as ruas. As populações passaram a viver num campo de tiro constante, com as condições de vida a degradarem-se a cada dia que passava. “Passou a haver escassez de tudo, havia dificuldades na alimentação, na saúde, nos transportes, falta de segurança”, enumera Belarmino.
"Passou a haver escassez de tudo, havia dificuldades na alimentação, na saúde, nos transportes, falta de segurança.”
As divisas em circulação na altura, os angolares e os escudos, perderam valor. Nos bancos, as poupanças viraram pó. Na rua, era quase impossível trocar dinheiro, com a maioria das pessoas a recorrer às matérias-primas, o ouro e os diamantes, para tentar resgatar alguma coisa. Foi o caso de Francisco, que ainda conseguiu trocar dinheiro por algumas peças de ouro.
Pouco a pouco, os portugueses começaram a abandonar o país, temendo consequências maiores. Manuel fez parte das primeiras levadas de retornados, ainda em 1974. Afirma ter sido um dos últimos a abandonar a venda do peixe nos musseques, mas a decisão, que até então tinha sido atrasada, foi tomada depois de se ter apercebido do perigo iminente: “Num espaço de 1.500 metros vi cinco ou seis pretos ali mortos à beira da estrada e aí comecei a pensar em vir embora”.
"Num espaço de 1.500 metros vi cinco ou seis pretos ali mortos à beira da estrada e aí comecei a pensar em vir embora.”
Com uma casa, uma carrinha, um barco e três camiões, alguma coisa tinha de ficar para trás no regresso. O “Mártir São Sebastião”, comprado uns dias antes da revolução de abril, não seria o sacrificado. Sem qualquer experiência de navegação em alto mar, partiu ao leme no dia 11 de setembro, com um assistente de 74 anos e outro barco para só parar em Las Palmas, quando o combustível faltou.
“Chegámos no dia do assalto à embaixada espanhola. Queriam dólares ou pesetas para pagar o gasóleo e nós só tínhamos angolares”, retrata Manuel. “Uns dias depois chegou um arrastão português e vendeu-nos gasóleo. Paguei-lhes quando cheguei a Portugal.” Na ilha espanhola completou o depósito com os 18.000 litros de gasóleo que foram necessários para fazer a viagem.
Atrás, já tinha parado por causa da infiltração de água. “A bomba em vez de puxar a água estava a metê-la para dentro”, continua o distribuidor de peixe, agora distribuidor de fruta. “Fui chamar o outro sujeito para ajudar mas, vez de vir, começou a arranjar a mala dele para ir para o outro barco. Mas eu não o ia deixar”. Depois de o ter arranjado, deixou a promessa de mudar o nome.
"Mandaram dois barcos de guerra ao nosso encontro, um ficou connosco, outro foi procurar mais barcos.”
No últimos dias do percurso, o Governo português soube, através das comunicações por rádio, que a singela frota estava a caminho. “Mandaram dois barcos de guerra ao nosso encontro, um ficou connosco, outro foi procurar mais barcos.” Portimão viu-os chegar a 4 de outubro de 1974, 23 dias depois da partida.
“Era o meu filho ao colo e o saco das munições às costas”
Em 1975 proclamava-se a independência de Angola e, no hospital da cidade, Encarnação dava à luz o seu filho mais novo: “Estava no hospital e sentia os tiros. Ele nasceu no meio da guerra”. Hoje, o rebento, já com 42 anos, queixa-se de não ter fotografias dos seus primeiros anos de vida.
“Para cá foi já sobre a guerra, compramos o bilhete para virmos de avião e já não havia avião nenhum, estava tudo cheio”, recorda Francisco. “Deram-me o lugar para eu vir mais os meus dois filhos, depois veio ele”, conclui Encarnação. Chegaram à terra de onde tinham saído sete anos antes, sem nada. “Só trouxemos o IRS para meter em Portugal”, ironiza Francisco. Voltaram para casa dos pais e tentaram recomeçar a vida.
"Estava no hospital e sentia os tiros. Ele nasceu no meio da guerra.”
Lurdes, que tinha enviado a sua filha mais velha para casa dos pais logo após o 25 de abril, conta que o Governo português tinha distribuído armas pelas famílias para elas se poderem defender e que, mais vezes do que gostaria, tinha de andar de casa para casa para fugir dos assaltos. Nessas alturas, “era o filho ao colo, o saco das munições às costas e o meu marido com a arma.”
Saíram de Luanda no dia em que o filho fazia cinco anos. “Andava só a pedir o bolo, mas nesse ano nem teve bolo”, lembra Lurdes. Chegou a Lisboa, onde ficou durante algum tempo, tendo-se mudado depois para Santarém.
Repatriados, deslocados ou retornados?
Dos cinco, apenas Belarmino ficou em Angola depois da independência. Afirma que, se tivesse vindo logo, teria passado mais dificuldades. “Nos seis anos antes arranjei dinheiro para me casar e casei um mês antes da independência”, conta. Com a saída dos portugueses, muitas das indústrias de Lobito fecharam. No que diz respeito à segurança, garante que os primeiros anos foram mais difíceis, “mas começou a melhorar ao fim de cinco, seis anos”. Voltou para Portugal devido a problemas familiares, mas com ideia de ainda voltar ao país onde passou 17 anos. Quando se estabeleceu no país, com uma poupança que tinha juntado — visto que as transferências bancárias para Portugal foram retomadas — e com a casa que construiu, deixar tudo deixou de ser opção.
Para além do país, em comum têm a maneira como os primeiros anos foram passando, marcados por um lado pelas dificuldades financeiras, por outro pelos entraves à integração. “Eram muitos dias em que não faltava pão na mesa”, garante Rosa Maria. “Eu comprava três papos-secos por dia porque não podia comprar mais, mas eu não comia para ele comer porque era ele que trabalhava e ele não comia porque o deixava para mim.”
As pressões externas pareciam custar mais que a fome. A princípio, foram apelidados de repatriados, regressados, deslocados ou refugiados, mas o nome que ficou foi o de retornados. A carga social que o acompanha é tão grande, ou maior, que a carga emocional que trouxeram de lá. “Não era o nome, era a maneira como falavam, parecia que éramos uma praga”, nota Lurdes, que garante que sempre que era possível, escondia o passado. O cunhado assume com indiferença que ouvia e calava.
"Quando estava grávida ia ao obstetra, mas até tinha medo, porque eram só senhoras de bem a falar mal dos retornados e eu era casada com um retornado. Eu entrava calada e saía muda.”
Ainda que não tenha estado em Angola, Rosa Maria também sentiu na pele o preconceito: “Quando estava grávida ia ao obstetra, mas até tinha medo, porque eram só senhoras de bem a falar mal dos retornados e eu era casada com um retornado”, recorda. “Eu entrava calada e saía muda.”
E, se se costuma dizer que os mais novos nem conseguem perceber o que acontece à sua volta, a inocência própria da idade não deixa que alguns momentos passem ao lado. “A minha afilhada veio pequena e, depois de oito dias de espera no aeroporto de Luanda, mais a viagem de comboio de Lisboa, veio muito cansada”, relata Rosa Maria. “Chegou e dormiu durante horas. Quando a fui acordar disse-me: ‘Ó madrinha, dormi tão bem que nem senti os tiros’“.
Os filhos seguiram os passos dos pais
Encarnação e Francisco voltaram a sair do país, desta vez rumo à Suíça. Aí ficaram mais 27 anos antes de regressarem para a terra que os viu nascer. A Henrique de Carvalho não voltou: “Nunca mais lá fui, era só Suíça-Portugal, Portugal-Suíça”, confessa Encarnação. “Mas se tivesse de visitar outro país, era a Angola que eu queria ir”.
Os três filhos, por sua vez, não voltaram a Portugal, tendo encontrado na Suíça aquilo de que os pais foram à procura em Angola. Imigrados estão também dois dos três filhos do Manuel e Rosa Maria, um em Angola, outro em Inglaterra. Enquanto o primeiro, segundo Manuel “teve estômago e coração frio” para ir para a terra que criou o pai, o segundo vive agora a incerteza do Brexit, sem saber se tem de regressar a casa.
Enfrentada com a possibilidade de voltar, Lurdes diz que “já lá estive tempo suficiente”. “O meu filho costuma-me dizer: ‘Ó mãe, temos de voltar, lá não tinhas essas dores nas pernas’. Eu não digo nada”. Hoje, os cinco relembram um país que os acolheu bem, que lhes deu muitas alegrias e onde todos viviam lado a lado, sem receios ou preconceitos. “Não havia lá maldade nenhum. Foi o diabo da guerra”, lamenta Encarnação.
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A maré que trouxe os portugueses de Angola em 1975
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