Dos utentes de “primeira classe” aos do “porão”: Uma viagem por dois centros de saúde

Numa altura em que há cerca de 1,5 milhões de portugueses sem médico de família, o ECO foi conhecer a realidade de dois centros de saúde em Lisboa.

“Há pessoas que viajam em primeira classe, que são as seguidas nas Unidade de Saúde Familiar (USF) modelo B. Há utentes que viajam em turística que não são de USF modelo B, mas têm médico de família nas Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP) e depois há uma grande legião de pessoas que viajam no porão, que não tem médico de família nem conseguem ter uma consulta programada”.

O resumo é feito por um médico, que preferiu não ser identificado e está há cerca de 20 anos no Serviço Nacional de Saúde (SNS), numa alusão ao facto de haver cerca de 1,53 milhões de portugueses sem médico de família, dos quais cerca de um milhão na região de Lisboa e Vale do Tejo.

É o caso da UCSP de Alcântara, que tem 13.374 inscritos, dos quais cerca de 6.900 não têm uma “equipa de família” – médico de família, enfermeiro e secretário clínico – atribuída. Contas feitas, são cerca de metade do total. A unidade foi inaugurada em janeiro, contando com um investimento de 4,6 milhões de euros, mas está ‘a braços’ com a falta de profissionais para responder às necessidades, num altura em que recebem cerca de 20 pedidos por dia para novas inscrições. “Esta é uma freguesia envelhecida, no entanto, com a vinda dos migrantes está a realmente a crescer”, enquadra a administradora hospitalar da ULS de Lisboa Ocidental, que abarca este centro de saúde.

Unidade de Saúde de AlcântaraHugo Amaral/ECO

“No fundo precisaríamos de nove médicos”, ou seja, mais quatro face aos que estão a trabalhar atualmente a tempo completo, admite Nuno Basílio, diretor Clínico dos Cuidados de Saúde Primários da ULS Lisboa Ocidental. Já no que toca à equipa de enfermagem, este centro de saúde conta agora com seis enfermeiros, mas o “ideal era ter um rácio mais ou menos equiparado aos médicos”, acrescenta. Por sua vez, “a nível do secretariado está ligeiramente abaixo” do necessário, sendo por isso necessário contratar “mais um secretário clínico” estima o responsável.

E o défice tem impacto na vida dos utentes. “Infelizmente a minha médica de família está de baixa há uma data de meses, portanto, é quase como se não tivesse”, lamenta Maria da Graça, ao ECO, enquanto espera por ser atendida na UCSP de Alcântara. Ainda assim, a reformada, de 72 anos, e que vive há mais de 30 anos nesta zona, elogia o atendimento e o “esforço” dos profissionais que lhe garantem os cuidados de saúde enquanto não há alternativa.

Para colmatar a falta de profissionais, esta ULS recorre também a prestadores de serviço, horas extraordinárias e tem em curso protocolos de formação dirigidos aos médicos internos que fazem “consultas específicas” nos vários centros de saúde, nomeadamente de doentes crónicos, saúde infantil, saúde materna, entre outros.

“Esperamos que com projetos destes e com infraestruturas destas possamos cativar para que fiquem”, elenca o diretor clínico, que espera que com a transição deste centro de saúde para USF modelo B seja mais fácil captar profissionais dado que esse modelo permite um “retorno financeiro apelativo” para os profissionais de saúde.

Nuno Basílio, diretor Clínico dos Cuidados de Saúde Primários da ULS Lisboa OcidentalHugo Amaral/ECO

 

“Como candidatura foi aceite, mas está dependente de conseguirmos organizar os recursos” e de a equipa atingir os indicadores de desempenho pedidos, acrescenta Nuno Basílio, sinalizando que espera que isso aconteça “ainda este ano”.

Mudança para USF foi “radical”

A partir deste ano, o Governo liderado por António Costa traçou como objetivo a generalização deste modelo, de forma a dar médico de família a mais de 300 mil utentes, dado que, a par da remuneração, a lista de utentes atribuídos a estas equipas é maior do que nas UCSP. Não obstante, já havia centros de saúde a aplicá-los. É o caso da USF da Baixa, que foi inaugurada em 2016 e é visto como um caso de sucesso.

“No nosso caso, a mudança foi radical porque logo que começou a chegar a nova equipa, no espaço de um mês, deixou de haver filas à porta”, conta Martino Gliozzi, coordenador desta unidade, que conta com 10 médicos de medicina geral e familiar (dois dos quais a tempo parcial), 12 médicos internos, oito enfermeiros e seis administrativos para dar resposta a 16.100 utentes inscritos.

Martino Gliozzi, médico coordenador da USF da BaixaHugo Amaral/ECO

Antes disso, o médico coordenava a UCSP de São Nicolau, onde havia “entre quatro mil a cinco mil utentes sem médico de família”. Mas nem tudo é um ‘mar de rosas’, com o coordenador a apontar que para além da organização tem pouca autonomia, nomeadamente de recursos materiais e de contratação. “Eu não consigo gerir nada. Nem posso comprar canetas, nem papel. Olhe, tive que comprar as pilhas deste tensiómetro porque não havia pilhas há dois meses. Não vieram e eu comprei”, afirma, enquanto aponta para o aparelho que mede a tensão, acrescentando ainda que em termos de contratações apenas pode solicitar os pedidos. “Às vezes há resposta, outras vezes não há”, acrescenta, entre risos.

Também Susana Nunes, secretária clínica nesta unidade e que leva “para casa à volta de 1.300 euros” por mês, elogia a transição. “É tudo muito organizado. Normalmente nas UCSP há mais consultas de manhã, não tanto à tarde. Aqui tentamos ser o mais homogéneos possível”. Ainda assim, nesta unidade o tempo máximo de espera para uma consulta de vigilância nesta USF pode ser de até três meses. “Neste momento estamos a marcar para abril, maio ou então para junho/julho”, adianta. Já para a primeira consulta de psicologia pode ser de “4 a 6 meses”, acrescenta o coordenador.

Por outro lado, João Sousa, médico de medicina geral e familiar na USF da Baixa, lamenta que este modelo não tenha sido implementado mais cedo em várias regiões do país. “O modelo quando começou a ser implementado não foi implementado no país todo da mesma maneira. Houve fundos para implementação no Norte, mas não foi possível essa implementação a nível do Sul”, sublinha, notando que “as USF são responsáveis pela formação de cerca de 80% dos nossos especialistas de medicina geral e familiar”.

João Sousa, médico de medicina geral e familiar na USF da BaixaHugo Amaral/ECO

Apesar das USF tipo B serem elogiadas pela generalidade dos profissionais, há sempre espaço para melhorar: “Como o problema político principal é o número de utentes sem médico de família, o que faz o Ministério há décadas é dar médico de família. Mas depois esquece-se do resto, nomeadamente enfermeiros, administrativos, assistentes sociais, psicólogos”, aponta o responsável desta unidade que tem cerca de 20 consultas não programadas por dia.

Aumento dos migrantes e idosos entre os novos desafios

Ao mesmo tempo, com o aumento de migrantes no país há novos desafios para os centros de saúde. “Aqui temos populações asiáticas”, existindo “uma barreira linguística muito grande para muitos deles. Temos também muitas pessoas do subcontinente indiano, particularmente do Bangladesh e Nepal”, enumera o médico João Sousa, defendendo, por isso, a contratação de “mediadores culturais” e tradutores para o SNS.

A opinião é partilhada por Sara Ramos, que sinaliza, no entanto, que “no início a barreira foi mais notória”. “Agora, utilizamos sempre o inglês. Também temos ajuda de algumas traduções online e também temos a linha telefónica de apoio do CNAIM”, acrescenta a enfermeira, enquanto atende uma utente do Bangladesh, de 28 anos, que está grávida de oito meses. Na USF da Baixa cerca de 30% dos inscritos são migrantes, “maioritariamente em idade ativa fértil e também crianças”.

Sara Ramos, enfermeira da USF da Baixa, atende uma utente do Bangladesh Hugo Amaral/ECO

O panorama é igualmente traçado por Nuno Basílio, que adianta que dos mais de 13 mil utentes inscritos na UCSP de Alcântara “há 119 nacionalidades dos 5 continentes dos quais 31% brasileiros, 11% nepaleses e franceses e italianos com 6%, Bangladesh com 5%”.

E há quem venha para Portugal só para receber cuidados no SNS. “Vim fazer a inscrição. Sou angolana e só estou aqui há oito dias”, conta Angelina Cafeca, de 37 anos, que diz ter sido aconselhada “por um médico em Angola” para vir tratar “da saúde”.

Por outro lado, o envelhecimento da população acarreta também novas necessidades. “A geografia de toda a cidade faz com que necessitemos de tuk-tuks para conseguirmos entrar nos bairros históricos e rentabilizar o número de horas de trabalho”, afirma o médico João Sousa, ao ECO. Já a enfermeira Sara Ramos pede “um reforço de transporte para as visitas domiciliárias”.

Apesar das dificuldades e responder às novas necessidades nos cuidados de saúde, as unidades vão-se adaptando. Para além dos serviços ditos “normais” disponíveis nos centros de saúde – como consultas de medicina geral e familiar, consultas de enfermagem ou saúde materna ou infantil – a USF da Baixa tem em curso três projetos: o consigo, a parentalidade positiva e a maternidade ativa. Já a UCSP de Alcântara tem um gabinete de higiene oral, consultas de estomatologia, nutrição e de assistência social. “Temos potencial também para arrancar uma sala de movimento para ter a dinâmica da mobilidade, classes de movimento e reabilitação”, antecipa o diretor clínico.

Utentes aguardam a sua vez numa das salas de espera da USF da BaixaHugo Amaral/ECO

“Muito pouca coisa hoje em dia me mantém aqui”

Com o SNS sob pressão, recursos escassos e as condições de trabalho deterioradas, os profissionais de saúde ouvidos pelo ECO demonstram algum desânimo. “Quando fui para o curso de enfermagem foi para cuidar das pessoas. E vivo hoje em dia muito triste por ver isto chegar aos números. Muito pouca coisa hoje em dia me mantém aqui”, desabafa Sílvia Bernardes, de 58 anos, que conta que já tentou reformar-se antecipadamente.

Enfermeira há 22 anos no público diz que “há quatro anos para cá” tem vindo a pôr a hipótese de ir trabalhar para o privado, dado que não vê “futuro profissional” no SNS. Por isso, diz que é urgente que o próximo Governo volte a equiparar a carreira de enfermagem à de técnico superior e que resolva definitivamente a questão da contagem de pontos para efeitos de progressão.

“Neste ACES, por exemplo, desde 2019 não são colocados os pontos nos nossos processos profissionais. Portanto, a nossa avaliação de desempenho é feita, mas os pontos não estão a ser somados e há muitos colegas com valores em atraso. Eu própria tenho valores em atraso”, denuncia,

Sílvia Bernardes, enfermeira na Unidade de Saúde de Alcântara atende uma utenteHugo Amaral/ECO

Já Ieada de Palma queixa-se da sobrecarga de trabalho. “São muitos utentes para um médico”, diz a médica que tem a seu cargo uma lista de mais de 1.700 utentes, “alguns estrangeiros com dificuldade na linguagem”, o que obriga a “consultas demoradas”. “E culturalmente também é difícil”, acrescenta. O SNS tem “que ser mais atrativo a nível monetário, principalmente, mas também em termos de carga de trabalho. Há muita gente em burnout”, alerta a médica de 41 anos, que admite também que “várias vezes” pensou ir para o privado, mas que continua a acreditar no sistema de saúde público.

Já o médico João Sousa garante que não poderá “a curto prazo” sair do SNS, mas faz a ressalva. “Provavelmente já teria saído se não tivesse USF modelo B. Seria impossível comportar os meus custos de vida em Lisboa com o ordenado-base, que esteve congelado ao contrário da inflação”, remata.

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