Carlos Tavares: Recuperar o tempo perdido

  • ECO
  • 19 Novembro 2016

Carlos Tavares avalia os mitos da economia portuguesa e os caminhos para sair do estado em que o país está. Um ensaio do economista que nos próximos dias deixa a função de presidente da CMVM.

Muito tem sido escrito e dito sobre as causas dos problemas que recorrentemente afligem a economia portuguesa e os respectivos remédios. Nos últimos 30 anos, muitas “modas” passaram pelo discurso de políticos e líderes de opinião, sem que se tenha formado um pensamento consistente e duradouro sobre os caminhos que devem ser persistentemente trilhados com vista ao desenvolvimento no médio prazo.

Sendo que esse objectivo só pode ser realizado com a acção das empresas que operem em Portugal, julgo que para elas é tempo de definir três questões centrais:

  1. Desfazer meia dúzia de “ideias feitas”
  2. Assentar ideias
  3. Definir soluções realistas.

Desfazer “ideias feitas”

Primeira ideia feita: Internacionalizar já!

Tem sido frequente o apontar do caminho da internacionalização (no sentido da expansão da presença física para mercados externos) como solução quase mágica para os problemas das empresas portuguesas. Esta ideia não pode, todavia, esquecer que:

  • Portugal é uma pequena economia aberta inserida na União Europeia e na área do Euro e que esta é, desde logo, a primeira forma de internacionalização;
  • Há o risco dos passos em falso: muitas empresas têm colapsado na sequência de decisões que visam o crescimento brusco, em mercados que não conhecem e sem correspondentes capacidades de gestão e financiamento.

Segunda ideia feita: o bom investimento é nos sectores tecnológicos e nos serviços…os sectores tradicionais têm os dias contados.

Sem prejuízo da importância que têm os novos sectores –- onde alguns casos de sucesso têm emergido, todavia frequentemente de dimensão reduzida –-, haverá que ter presente que Portugal precisa de ter uma base industrial sólida, competitiva e diversificada. Além disso, é ainda nos sectores tradicionais que se localiza parte substancial das nossas vantagens competitivas.

Terceira ideia feita: as empresas têm de apostar tudo nas exportações…

Esta ideia, que é afinal uma outra face da primeira, padece dos mesmos males e traduz uma valorização relativa dos mercados externos face ao mercado interno que não é bem fundamentada. É verdade que o mercado externo dá dimensão e tem exigências que incentivam o rigor e a competitividade. Mas, como veremos adiante, isso não deve ser um exclusivo do mercado externo. E não tem presente que numa pequena economia aberta a tónica deve ser colocada na produção competitiva de bens transacionáveis, independentemente de o seu destino ser o mercado interno ou os externos.

Quarta ideia feita: a banca não quer financiar as empresas e não canaliza os recursos suficientes para a economia…

Esta ideia esquece alguns factos facilmente verificáveis estatisticamente:

  • nos últimos 20 anos, o peso do crédito interno no PIB aumentou de 80% em 1995, para cerca de 174% em 2015 (depois de ter atingido 206% em 2008
  • as empresas portuguesas estão entre as mais endividadas da Europa, com níveis de alavancagem inequivocamente excessivos
  • os rácios de crédito em incumprimento situam-se entre os mais elevados nas comparações internacionais e nos observados no nosso País ao longo de muitos anos.

Quinta ideia feita: “Small is beautiful”: é preciso favorecer as micro e pequenas empresas…

Esta ideia resulta da constatação estatística de que as micro e pequenas empresas asseguram uma parte esmagadora do emprego, mas não tem em conta o seguinte:

  • é assim em todos os países e que a parcela da produção que as nossas MPME asseguram é menor do que o observado em geral
  • temos das mais pequenas MPME no quadro da União Europeiaque a concorrência nos sectores produtores de bens transaccionáveis é feita com fortes empresas dos países concorrentes e que em na indústria as economias de escala são, em geral, uma realidade.

Sexta ideia feita: só a dívida pública é má; só a poupança pública é boa!

Esta ideia – muito presente nas actuais políticas europeias – esquece que o excesso de endividamento com que Portugal se depara tem origem pública e privada, ambos tendo aumentado excessivamente nas últimas décadas. Do mesmo modo, desvaloriza a importância crucial da poupança privada e de maior dotação de capital em benefício exclusivo da restrição dos défices orçamentais.

Assentar ideias

Internacionalização e exportação

A chave dos equilíbrios macroeconómicos para a economia portuguesa está – como estava na hora da adesão à moeda única – no aumento da produtividade (e consequentemente da competitividade), na poupança e no investimento produtivo. Estas variáveis têm tido um comportamento decepcionante nas últimas décadas.

A produtividade do trabalho tem mantido um nível muito distante do dos nossos principais parceiros e concorrentes comerciais. Mas também a produtividade marginal do capital tem divergido significativamente, chegando a assumir valores negativos em alguns períodos recentes, o que coloca grandes questões relativamente à qualidade do investimento realizado e às condições que levaram à sua realização.

A entrada no Euro no final dos anos 90 foi feita com forte divergência de produtividade e rendimento, ficando a partir daí praticamente indisponível a taxa de câmbio para ajustar as respectivas diferenças. O pressuposto de convergência rápida – presente na decisão de adesão à moeda única Europeia – não se concretizou. A produtividade manteve, até aos dias de hoje, praticamente o mesmo “gap” que revelava há 20 anos de cerca de 40% da média dos países que hoje integram a Zona Euro e de perto dos 50% face aos países com melhores níveis de produtividade.

 

No mesmo período, a abertura da europa a leste e o progresso da globalização trouxeram ao mercado novos concorrentes, facto que exigiria um aumento acrescido de produtividade.

Ao mesmo tempo, o Euro implicou um aumento rápido da procura interna, sem correspondente comportamento do lado da oferta. Ou, visto de outra óptica, um aumento do investimento, sem correspondente poupança. As consequências naturais destas situações foram, como seria de esperar, um forte e persistente aumento do défice externo e da dívida externa (pública e privada).

Acresce que, fruto das opções de utilização dos fundos estruturais e dos incentivos de política económica, o investimento foi predominantemente dirigido aos sectores de bens não transacionáveis. Ou seja, não estivemos, em geral, na presença de défices virtuosos (contraídos para criar capacidade competitiva acrescida no futuro), mas de défices que levaram a dívida externa líquida de cerca de 1% do PIB em 1996 para 102% do PIB em 2015, sem reflexos sensíveis, como vimos, na produtividade e na competitividade.

A solução normalmente apontada para a correcção dos défices externos e para o aumento da actividade das empresas é o aumento da exportação. As exportações são, efectivamente, cruciais numa economia aberta, mas é preciso não esquecer que, do ponto de vista do equilíbrio externo, é tão bom exportar como vender para o mercado interno (e, consequentemente, deixar de importar).

Por outro lado, para as empresas dos sectores de bens transacionáveis, é difícil ser forte no mercado dos outros quando não se é no seu próprio mercado. Preciso é que o mercado interno seja um mercado de sã concorrência, de forma que as empresas sejam expostas a um ambiente semelhante ao que encontram nos mercados externos. Por isso a política e a regulação da concorrência têm aqui um papel determinante.

Outro equívoco frequente é o de supor que a variável relevante é o volume exportado, independentemente da riqueza que gera efectivamente para a economia. Ora a grandeza relevante é precisamente o valor acrescentado que se exporta. Não é difícil encontrar exemplos de exportações muito dinâmicas em volume, mas que contribuem apenas marginalmente para o valor acrescentado nacional. Ou até de projectos com valor acrescentado negativo e que foram viabilizados e até apoiados, pela simples razão de que geravam exportações…

É também frequente na nossa situação de “price-taker” no comércio internacional que, em períodos de contenção da procura interna, as empresas do sector trasaccionável tentem compensar essa limitação pela via do aumento das exportações por via da compressão das margens. Esse caminho de sobrevivência é, porém, um caminho de duração limitada e que se prolongado em excesso, acaba por conduzir à saída das empresas do mercado.

A solução reside, assim, no aumento da competitividade da produção do sector transacionável e na retenção de mais valor do que se exporta. O que significa ter capacidade de produção diferenciada, marcas próprias e domínio – ainda que partilhado – dos circuitos de comercialização internacionais.

O Investimento necessário

Do que ficou dito resulta que o investimento necessário é o dirigido aos sectores produtivos (bens transacionáveis) e que assegure taxas de retorno adequadas. Acontece que, por força da conjugação de circunstâncias descritas e das políticas adoptadas, os sectores não transacionáveis foram normalmente os mais rentáveis – o que por si revela um nível de concorrência menor no mercado interno – e os que o investimento privado – coerentemente – seleccionou.

A verdade é que o nosso país tem fortes vantagens relativas nos sectores ditos tradicionais: essencial é que se modernizem, incorporando a inovação tecnológica, como tem, aliás, acontecido no calçado e em certas áreas do têxtil. Mas sendo certo que precisamos de uma base industrial sólida e competitiva, a realidade é que o VAB industrial praticamente estagnou nos últimos 15 anos; e o peso no PIB é baixo e caiu de 12,9% em 2000 para 12,1% em 2015.

Acresce que as empresas dos sectores de bens transacionáveis precisam de escala e dimensão para competir nos mercados doméstico e internacional. Em particular, neste último, a capacidade de resposta em tempo e quantidade é crucial. Portugal tem das PME mais pequenas da União Europeia.

Por isso, pese embora o cuidado que merecem as micro, pequenas e médias empresas, será necessário que – pelo menos no sector transacionável – haja ganhos de dimensão e que surjam empresas com capacidade de competir com as que estão já hoje nos mercados onde queremos estar presentes.

Uma prova clara de que a escolha dos investimentos não foi a adequada reside no facto – também já referido – de a produtividade marginal do capital ter apresentado, em regra, valores baixos e mesmo negativos num período recente (ver gráfico seguinte).

As razões desta situação prendem-se com os incentivos que encaminharam o investimento para os sectores de bens não transacionáveis e com o facto de o baixo custo do capital ter permitido a viabilização de investimentos com taxas de retorno muito baixas.

Tal decorreu de períodos prolongados de taxas de juro reais muito baixas ou mesmo negativas, mas também provavelmente do efeito de redução do custo do capital proporcionado pelas comparticipações dos fundos comunitários em projectos de investimento.

A situação actual de taxas de juro muito baixas decorrentes das políticas monetárias adoptadas desde 2008 não é, deste ponto de vista, favorável a um clima de investimento produtivo estruturante e gerador de competitividade e retorno adequado para as empresas e para o país.

A eficiência e as taxas de juro

O papel da banca no financiamento das empresas

Tal como na maioria dos países da Europa continental, as empresas e o seu investimento repousam largamente sobre o crédito bancário. Ora, a partir de meados da década de 90, a banca em Portugal privilegiou a expansão do crédito – sobretudo aos sectores não transaccionáveis –, como forma de absorver o excesso de capacidade instalada que criou e alimentou ao longo dos anos, fazendo uso de mecanismos de titularização de créditos que cá (como lá fora) permitiram expandir substancialmente o rácio entre o crédito concedido e os capitais próprios dos bancos.

De algum modo, a oferta de crédito (ao consumo, à habitação, aos municípios, etc.) criou a sua própria procura, aumentando fortemente o grau de alavancagem geral da economia. Ao mesmo tempo, o sistema bancário tem estado pouco presente nos serviços às empresas (sobretudo de pequena e média dimensão) e na sua adequada capitalização.

Os resultados deste comportamento são hoje traduzidos:

  1. numa errada afectação macroeconómica de recursos
  2. numa excepcionalmente elevada taxa de crédito em incumprimento
  3. num excesso de alavancagem que reduz drasticamente a capacidade de financiar investimento novo
  4. em taxas de juro baixas que viabilizam investimentos pouco produtivos e muitas vezes não remuneram adequadamente o capital dos bancos
  5. em riscos significativos para o equilíbrio financeiro das empresas de uma (inevitável, embora em prazo indeterminado) subida das taxas de juro.

Este quadro torna evidente a necessidade de encontrar formas alternativas de financiamento estável das empresas, incluindo o significativo reforço dos seus capitais próprios. Esta necessidade é, aliás, patente há muito tempo mas nunca teve resposta adequada por parte do sistema financeiro. O que resultou da ausência de um sector não bancário competitivo e concorrente – mas ao mesmo tempo complementar – da banca comercial quer do lado da captação de recursos quer do das aplicações.

Com efeito, quer o sector da gestão de activos, quer o do capital de risco têm em larga medida estado ligados ao sector bancário e às respectivas estratégias, mais do que a uma captação competitiva das poupanças e ao financiamento não creditício das empresas.

Diga-se que também não temos tido um sector de banca de investimentos dirigido ao segmento das médias empresas que lhes pudesse fornecer aconselhamento financeiro, apoio na definição e concretização de programas de financiamento consistentes e procura de investidores em capitais permanentes desse segmento de empresas.

Esta tem sido, em meu entender, a verdadeira falha de mercado no sistema financeiro português, cujo preenchimento é crucial para que as empresas portuguesas possam corrigir os desequilíbrios financeiros com que se confrontam e encarar um período de investimento produtivo de que a economia portuguesa criticamente necessita.

Dívida e poupança públicas e privadas

Uma constatação necessária para assentar ideias é que o que verdadeiramente releva para os equilíbrios macroeconómicos são a dívida total (pública e privada) e a poupança total (também pública e privada) na economia.

Com efeito, os défices externos resultam da insuficiência da poupança doméstica, seja pública ou privada. Daí que não adiante aumentar a poupança pública (reduzindo os défices orçamentais) se esse aumento for acompanhado de redução igual ou superior da poupança dos particulares e das empresas. O que muitas vezes explica o insucesso de políticas de ajustamento assentes no aumento da tributação que, na prática, acabam por se traduzir frequentemente em substituição de poupança privada por poupança pública.

A verdade é que se tem assistido a uma queda persistente das taxas de poupança do sector privado (chegando a assumir valores negativos no ano em curso) e ao aumento concomitante da respectiva dívida, que já andará pelos 230% do PIB.

Esta situação requer um movimento inequívoco de redução do peso da dívida do sector privado (empresas e particulares), a par do reforço da respectiva taxa de poupança, objectivos que, em meu entender, devem ter a mesma dignidade dos de redução da dívida pública e do défice orçamental.

Este objectivo não é conflituante com o do crescimento económico, bem pelo contrário. Como veremos adiante, o crescimento económico sustentável exige um reforço da capacidade de oferta competitiva que possa responder aos aumentos de procura sem o retorno aos défices externos insustentáveis.

É claro que também se descortina a ideia feita de que só o que é privado é bom. Ora, não há países desenvolvidos e economias competitivas sem uma administração pública forte e eficiente.

As soluções

Eliminar as barreiras ao aumento da produtividade

A questão da produtividade e da competitividade das empresas localizadas em Portugal num quadro da moeda única tem sido, é e será a que condiciona a evolução da economia portuguesa e a sua libertação dos desequilíbrios recorrentes com que se confrontou nos últimos 30 anos.

Neste período, muitos diagnósticos foram feitos, uns mais adequados, outros nem tanto. E, sobretudo, as políticas de ajustamento incidiram primordialmente sobre as questões financeiras, deixando frequentemente para segundo plano as questões relacionadas com a estrutura da economia.

Um dos últimos contributos que deixei no Ministério da Economia foi precisamente um estudo sobre os obstáculos ao desenvolvimento da produtividade e que justificam o grande diferencial que se verifica face aos parceiros da União Europeia. O estudo, designado por Portugal 2010, identificou como principais barreiras da produtividade (por esta ordem):

  • Informalidade
  • Regulamentação/regulação de mercados e produtos
  • Ordenamento/licenciamento
  • Provisão de serviços públicos
  • Regulamentação do trabalho
  • Herança industrial

Sem entrar em detalhe sobre cada uma das barreiras identificadas, vale a pena destacar a grande importância atribuída à informalidade, não necessariamente na habitual óptica do efeito negativo sobre as contas públicas, mas neste caso essencialmente pelo facto de permitir que empresas menos produtivas fora do circuito formal acabem por ganhar vantagem sobre empresas mais produtivas e cumpridoras, podendo mesmo chegar a afastá-las do mercado.

Também merece especial destaque a questão da regulamentação/regulação de mercados e produtos. São reconhecidos os excessos de regulamentação em domínios diversos, embora em muitos casos tais excessos tenham origem no quadro europeu.

Mas também a regulação dos mercados e da concorrência poderá dar um contributo decisivo para a criação de um ambiente mais propício ao desenvolvimento da produtividade. Na regulação e enforcement da concorrência, assume especial relevo a necessidade de actuar sobre os casos de exercício do poder de mercado, em particular nos casos de estruturas monopolistas ou oligolopolistas de produção e distribuição face aos respectivos fornecedores de pequena dimensão.

Quanto às restantes barreiras, reconhecer-se-á que desde o momento da elaboração do estudo alguns progressos foram registados, mas que muito haverá para fazer sobretudo nos domínios da eficiência da Administração Pública e da provisão dos serviços públicos de saúde, justiça e educação (nesta se incluindo a formação profissional).

Recapitalizar/consolidar as empresas (PME e “mid-caps”)

A eliminação das barreiras ao desenvolvimento da produtividade são uma condição necessária, mas não suficiente, à redução significativa dos “gaps” assinalados. O relançamento da convergência só será possível com base num surto de investimento produtivo por parte das empresas produtoras de bens transacionáveis.

Acontece que a actual situação de excesso de endividamento de uma grande parte das empresas portuguesas e de correspondente insuficiência de capitais permanentes não lhes permite encarar o necessário esforço de investimento dirigido à modernização e ao aumento de dimensão. Por isso, aumentar a qualidade dos processos produtivos e de comercialização, recapitalizar e consolidar as empresas (PME e “mid-caps”) assume um caráter absolutamente prioritário.

Essa é, aliás, uma necessidade sentida e reconhecida há muitos anos. No entanto, nada de significativo tem acontecido nessa direcção, em meu entender devido à “falha de mercado” no nosso sistema financeiro, traduzida na já referida indisponibilidade prática de serviços de aconselhamento e concepção de operações de financiamento por capitais permanentes de PME que incluam:

  • Identificação de opções viáveis e eficazes
  • Aconselhamento técnico especializado na elaboração de “informação de crédito”
  • Determinação do Know-how da gestão operacional do negócio
  • Ligação com redes de contactos de potenciais parceiros
  • Coordenação/dinamização de operações de montagem e colocação de títulos de PME e “mid-caps”
  • Dinamização de operações de Fusões e Aquisições.

Esta “falha de mercado” deverá ser preenchida, seja pelo sector público, seja pelo sector privado, sob pena de não se conseguir o encontro entre as necessidades das empresas e os meios de as satisfazer.

Além disso, haverá que recuperar os incentivos de natureza regulatória à manutenção de níveis adequados de capitalização das empresas. Nesse domínio, avultam as alterações sucessivas ao artigo 35ª do Código das Sociedades Comerciais que, depois de ter criado um regime imperativo de níveis mínimos de capitalização das empresas pela alteração que eu próprio propus em 2002, veio a ser reformulado em 2004 com a criação de um regime permissivo da manutenção prolongada de situações de descapitalização e de perpetuação de apresentação de prejuízos pelas empresas.

Este facto revelou-se muito negativo, levando à acumulação insustentável de dívida e prejuízos pelas sociedades não financeiras, com destaque para as empresas públicas. Para além da erosão da base de tributação esta situação implicou também distorção da concorrência e provavelmente o desaparecimento de empresas economicamente viáveis, mas asfixiadas pela dívida.

Incentivar a presença de investidores institucionais no capital das empresas portuguesas (capital de risco, fundos de investimento, fundos de pensões) e o significativo reforço da taxa de poupança

Mais do que a criação de incentivos, trata-se sobretudo da eliminação de desincentivos que ainda subsistem à tomada de participações no capital das empresas portuguesas por parte de investidores institucionais.

O caso porventura mais evidente é o da necessidade urgente de eliminar a discriminação fiscal negativa dos capitais próprios face ao endividamento das empresas. Já foram adoptadas duas medidas fiscais neste sentido, sem que todavia o problema tenha sido resolvido.

Assim, no Orçamento de 2010, foi introduzida a chamada “remuneração convencional dos capitais próprios”, mecanismo que permitia às empresas deduzir em IRC um custo nocional dos aumentos de capital realizados. Esta é uma forma adequada de tratar a questão, todavia praticamente inutilizada pelas restrições então estabelecidas: uma taxa fixa de 3% (claramente inferior quer ao custo da dívida quer do capital próprio) e a limitação do benefício aos aumentos de capital tomados por sociedades de capital de risco e investidores individuais. O resultado foi que o sistema praticamente não teve utilização.

Mais recentemente, foi reduzida a discriminação pela via negativa, ou seja, limitando a possibilidade de dedução dos juros da dívida das empresas como custo fiscal. Acontece que o tecto estabelecido para o endividamento “dedutível” é bastante elevado, limitando o efeito prático da medida.

Retomar a “remuneração convencional do capital” devidamente parametrizada e sem a limitação subjectiva do detentor do capital seria um caminho adequado, com a vantagem de ser tendencialmente neutro em termos fiscais caso o nível fixado da remuneração convencional seja próximo do custo da dívida.

No entanto, dada a urgência da recapitalização das empresas, julgo que se justifica ir mais longe, adoptando como remuneração um valor que traduza o custo dos capitais próprios, determinado de acordo com os princípios da teoria financeira.

Outro caso de abolição de desincentivos diz respeito à eliminação da dupla tributação económica. A conjugação da tributação dos lucros em IRC e dos dividendos em IRS conduz a taxas de tributação efectivas muito elevadas dos resultados das empresas. Essas taxas têm de se confrontar com regimes bem mais generosos em outros países, como por exemplo no caso dos que aplicam uma “flat rate” sobre quaisquer rendimentos.

Acresce que com a liberdade de circulação de capitais, a penalização dos capitais próprios das empresas constitui um incentivo poderoso à deslocalização das respectivas sedes, erodindo assim a base fiscal. É verdade que existe um mecanismo fiscal de redução da dupla tributação. Mas tal mecanismo, para além de não eliminar totalmente a dupla tributação, só tem aplicação em caso de opção pelo englobamento dos dividendos em IRS, não actuando no caso de opção pelas taxas liberatórias.

Tal situação, para além de constituir um desincentivo ao investimento nas empresas, constitui um factor de escolha da não distribuição de dividendos, por razões exclusivamente fiscais e não de racionalidade económica.

Finalmente, será importante incentivar a poupança estável (de médio/longo prazo) através de discriminação positiva da respectiva tributação. Um incentivo desse tipo já existe para os produtos financeiros de seguros, cujo rendimento é tributado a taxas que decrescem com o alongamento do prazo de detenção. Não há razão para que um mecanismo desse tipo não seja aplicado a outras formas de aplicação da poupança (vg depósitos a prazo e fundos de investimento).

Também a dedução à matéria colectável em IRS das contribuições voluntárias para fundos de pensões – existente em outros países –é um incentivo poderoso à poupança longa. Ele traduz-se não numa isenção de tributação mas num diferimento, na medida em que os rendimentos serão tributados no momento da sua distribuição na situação de reforma. Uma vez mais, trata-se de arbitrar entre poupança pública ou privada, sendo qualquer delas relevante e necessária.

Epílogo

Se é importante ter as ideias bem assentes sobre os caminhos para o crescimento seguro e equilibrado da economia portuguesa alicerçado na capacidade competitiva e no desenvolvimento das empresas, igualmente importante será saber como e por quem serão aquelas ideias concretizadas.

As políticas correctas são essenciais para criar as condições e os incentivos adequados à adopção pelas empresas das escolhas e decisões compatíveis com os objectivos de crescimento macroeconómico. Mas elas não serão certamente suficientes na ausência de um claro desenvolvimento das capacidades de gestão empresarial e de uma dotação bem mais significativa de empreendedores e tomadores de risco. E nesta área, a possibilidade de intervenção das políticas públicas é muito mais limitada.

É claro que um sistema educativo (em todos os graus) que, para além da aquisição de conhecimentos científicos e tecnológicos de inegável importância, igualmente favoreça a criação de valores como o trabalho, o mérito e a ética é uma condição primordial para que o país disponha de adequado capital humano (pressupondo que depois é capaz de o reter…).

Além disso, o Estado deverá dar o exemplo – quer pelo comportamento da Administração Pública (incluindo a Justiça), quer pela regulamentação que cria – de respeito pela hierarquia do mérito e de eliminação da subsidiação discriminatória e de rendas injustificadas. Mas, acima de tudo, será indispensável um claro reforço do espírito empresarial e do número de bons empresários que existem e que estejam disponíveis para tomar novas iniciativas e riscos.

Preciso é também que a política económica – sobretudo a fiscal – lhes reconheça o direito a reter uma parte suficiente dos proveitos gerados por essas iniciativas e que recompense adequadamente a assumpção dos riscos. Neste quadro, é essencial uma mais vasta classe de gestores que, para além das qualidades profissionais e éticas, respeitem a necessária distinção entre as funções de capital e de gestão.

As funções de empresário, de capitalista e de gestor são distintas e raramente se encontram pessoas que reúnam as três qualidades. Do que também decorre a necessidade de adopção de modelos de governação apropriados e adaptados às características e dimensão das empresas. Sem nunca esquecer que a questão essencial é a da qualidade das pessoas, onde ao fim e ao cabo desemboca tudo aquilo que foi dito ao longo destas linhas.

Fonte: O ensaio de Carlos Tavares foi publicado na revista “O Economista” de setembro

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