Incêndios: “O que temos no território são torneiras do gás acesas”
Henrique Pereira dos Santos, arquiteto paisagista, defende uma estratégia totalmente diferente no combate e prevenção de incêndios. "Os fogos não se apagam com água. Isso é uma parvoeira."
O arquiteto paisagista Henrique Pereira dos Santos, autor da obra Portugal: Paisagem Rural, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, defende uma estratégia totalmente diferente na gestão das florestas e dos incêndios no país. Em declarações ao ECO, o especialista garante: “Estas tragédias são uma mera questão de tempo até se repetirem se mantivermos a mesma doutrina que temos no combate aos fogos.”
Preferindo não comentar em detalhe o grande incêndio que deflagra desde sábado, Pereira dos Santos afirmou: “Há condições naturais para a existência de muitos, muitos fogos em Portugal. É uma inevitabilidade e é um elemento natural.” Questionado sobre o que deve ser feito, apontou para a “gestão de combustíveis” nas florestas portuguesas.
“É completamente irrelevante saber como é que começa o fogo. O problema central é porque é que ele não para. E não para porque há continuidade de combustíveis. A quantidade de combustíveis que está no terreno é de tal maneira grande que é absolutamente impossível combatê-lo diretamente sem primeiro fazer a redução de combustíveis”, explicou. “É a única maneira de parar fogos e os fogos não se apagam com água. Isso é uma parvoeira que existe em Portugal”, rematou.
Há condições naturais para a existência de muitos, muitos fogos em Portugal. É uma inevitabilidade e é um elemento natural.
‘Portugal sem fogos’ é “uma mentira trágica”
Henrique Pereira dos Santos também criticou duramente a gestão de fogo que é feita, nomeadamente o slogan ‘Portugal sem fogos depende de todos’. “Estas tragédias [como a de Pedrógão Grande] nascem da ideia de que pode existir um Portugal sem fogos. É uma mentira trágica. Não existe isso”, criticou.
“A opção não é a de ter fogos ou não ter fogos. A opção é entre ter fogos como queremos ou como não queremos. O que significa queimar no inverno, pagar aos pastores para andarem com gado, utilizar essas faixas de redução de combustíveis e, depois, ter uma estrutura profissional de combate, que está lá o ano inteiro, que esteve envolvida nessa redução de combustíveis e que sabe quais são as linhas onde é possível parar o fogo”, apontou o especialista.
E acrescentou: “É como se nós tivéssemos em casa a ideia de deixar os bicos do gás acesos e dizer ‘meninos, agora ninguém risca um fósforo ou ninguém faz uma faísca’. Ninguém faz isso em casa. Toda a gente sabe que, de uma maneira ou de outra, há de haver uma faísca. O que nós temos no nosso território são as torneiras do gás acesas.”
A opção não é a de ter fogos ou não ter fogos. A opção é entre ter fogos como queremos ou como não queremos.
Um fogo assim? “Ninguém o para”
O arquiteto paisagista referiu, desta feita, que sem essa estratégia de gestão de combustíveis ninguém é capaz de parar um incêndio como o que matou pelo menos 58 pessoas no distrito de Leiria. “Ninguém o para. Podem mandar vir os Kamov que quiserem, mais os Canadairs. O que quiserem. Não é possível combater diretamente um fogo com a carga de combustível que está no terreno”, sublinhou.
“Isto é verdade no pinhal interior. Como ardeu em 2003-2005 — portanto, passaram 12 a 14 anos –, é o suficiente para haver acumulação de mato. E como durante os últimos 12 a 14 anos não ardeu grande coisa, exatamente porque tinha ardido muito em 2003-2005, as pessoas acharam que tinham resolvido o problema. Isso não é verdade”, recordou também em conversa com o ECO.
Assim, em linhas gerais, na opinião de Pereira dos Santos, há duas “questões centrais”. Por um lado, “uma questão de doutrina”. “A ideia de que é possível a supressão de fogo é uma ideia estúpida, errada e trágica”, disse. Do outro lado está a “integração entre combate e prevenção” que, na visão do arquiteto, “implica a profissionalização de bombeiros”.
"É como se nós tivéssemos em casa a ideia de deixar os bicos do gás acesos e dizer ‘meninos, agora ninguém risca um fósforo ou ninguém faz uma faísca’. Ninguém faz isso em casa. Toda a gente sabe que, de uma maneira ou de outra, há de haver uma faísca.”
“Há uma responsabilidade da Administração Interna”
Henrique Pereira dos Santos terminou, apontando o dedo à Administração Interna e até ao presidente da Liga dos Bombeiros. “Há uma responsabilidade da Administração Interna e obviamente das autarquias, porque isto tem na base uma aliança entre os corpos de bombeiros e as autarquias para manter esta situação, que recusam qualquer tipo de profissionalização, que recusam qualquer integração entre combate e prevenção. Aí há uma responsabilidade claríssima do poder autárquico e dos órgãos de bombeiros”, indicou.
“Quando há um secretário de Estado da Administração Interna que resolve dizer que ‘o fogo é imprevisível, o que há é uns académicos que têm umas teorias sobre isso’, é evidente que tem responsabilidade. Porque está a dizer que descarta o conhecimento que existe sobre a gestão de fogo porque acha que o problema é imprevisível. É a mesma coisa que a Assunção Cristas andar a rezar a Nossa Senhora por causa da seca“, criticou também.
E concluiu: “O senhor presidente da liga dos bombeiros há 30 anos que anda a dizer disparates sobre fogos e a manter esta situação e a lutar desesperadamente por esta situação em que os corpos de bombeiros vivem à conta do Estado.”
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Incêndios: “O que temos no território são torneiras do gás acesas”
{{ noCommentsLabel }}