BRANDS' ADVOCATUS Uma não novidade antecipada – jogos de fortuna ou azar em Portugal

  • ECO + MLGTS
  • 31 Julho 2017

Dúvidas prendem-se com eventual violação dos princípios e liberdades económicas definidos no quadro da União Europeia, materializadas na liberdade de estabelecimento e na livre prestação de serviços.

A 3 de abril de 2017, o Supremo Tribunal de Justiça português apresentou um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), no âmbito do processo que opõe a Sportingbet PLC e Internet Opportunity Entertainment Ltd à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Sporting Club de Braga e Sporting Clube de Braga – Futebol, SAD [Processo C-166/17].

Em causa está a (des)conformidade da legislação portuguesa relativa aos designados jogos sociais do Estado e aos demais jogos de fortuna ou azar com o Direito da União Europeia e, em especial, com as liberdades de estabelecimento e de prestação de serviços. Com este pedido, o Supremo Tribunal de Justiça pretende ver esclarecida a dúvida levantada quanto à compatibilidade das disposições legais nacionais que reservam o direito de explorar jogos de fortuna ou azar ao Estado. Como se sabe, só o Estado tem a possibilidade de atribuição da respetiva concessão a pessoas coletivas privadas, tendo concedido a organização e exploração dos jogos sociais do Estado em suporte eletrónico à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, em regime de exclusividade. As dúvidas prendem-se, assim, com a eventual violação dos princípios e liberdades económicas definidos no quadro da União Europeia, que se materializam, por exemplo, na liberdade de estabelecimento e na livre prestação de serviços.

O tema não é, porém, novo. O TJUE teve oportunidade de se pronunciar sobre certos aspetos da legislação portuguesa em vigor já em 2009 [Processo C-42/07, Liga Portuguesa de Futebol Profissional e Bwin International], a propósito de uma oposição entre a Liga Portuguesa de Futebol Profissional e a Bwin International. Na altura, a matéria em discórdia dizia respeito, precisamente, ao direito de exclusivo de exploração dos jogos sociais em suporte eletrónico atribuído à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Em concreto, o TJUE decidiu que, no que dizia respeito à comercialização em Portugal de jogos de fortuna ou azar através da Internet, o princípio da liberdade de prestação de serviços não impedia que a legislação de um Estado-Membro proibisse que operadores com sede noutros Estados-Membros, onde prestavam serviços análogos, oferecessem jogos de fortuna ou azar através da Internet, no território do referido Estado-Membro. Ou seja, o simples facto de a Bwin International atuar legitimamente no mercado britânico, por exemplo, não a tornava automaticamente um operador em Portugal: tinha de se submeter ao processo de concessão ou atribuição de licença definido pelo Estado português.

Como exaustivamente sustentou o TJUE, é assim inquestionável que a legislação vigente constitui uma restrição à livre prestação de serviços, de acordo com o atual artigo 56.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. No entanto, reconhecendo a ausência de uma harmonização sobre uma matéria em que são claras as divergências de ordem moral, religiosa e cultural entre Estados-Membros, o TJUE admite que os Estados-Membros fixem os objetivos da sua política em matéria de jogos de fortuna ou azar e definam, com precisão, o nível de proteção pretendido. Tal implica aceitar que estes possam impor um sistema de proteção, por exemplo o monopólio ou a dependência de autorização, que configura uma verdadeira restrição à livre prestação de serviços ou, se for o caso, à liberdade de estabelecimento. No entanto, mantém uma obrigação de proporcionalidade: as restrições impostas pela legislação nacional deverão ser adequadas e necessárias a garantir a realização dos objetivos invocados pelo Estado-Membro, para que estes possam ser alcançados de uma forma coerente e sistemática, sem que da sua aplicação resultem situações discriminatórias. Este é um aspeto frequentemente salientado em relação ao Direito da União Europeia, neste contexto, com a possibilidade de introdução de limitações àquelas liberdades, desde que devidamente fundamentadas, designadamente por razões imperiosas de interesse geral, como são a ordem pública, a segurança pública ou a saúde pública. Isto significa que um Estado pode optar por um sistema mais protetor e restritivo que os demais Estados-Membros no que concerne ao regime jurídico aplicável aos jogos de fortuna ou azar, desde que o fundamente e que essa motivação seja atendível.

Na senda da jurisprudência mais recente sobre esta matéria, caracterizada por considerações sempre constantes sobre o tema mas uniformes, tudo indica que o TJUE irá mais uma vez firmar a sua convicção sobre a possibilidade de imposição de restrições àquelas liberdades, considerando legítima a opção política de um Estado-Membro que confia o exclusivo da exploração de jogos de fortuna ou azar a uma entidade, independentemente do meio utilizado, na medida em que estas restrições observem o princípio da proporcionalidade, nas suas várias vertentes, e tenham por fundamento, por exemplo, o combate à criminalidade e a proteção dos consumidores destes jogos contra fraudes e crimes cometidas pelos operadores. Aliás, foram estes os argumentos invocados pelo Estado Português para fundamentar o regime jurídico instituído que esteve na base do acórdão proferido em 2009.

Por fim, ainda que o pedido que motiva o presente artigo não tenha sido formulado nesse sentido, importa notar que foi, entretanto, aprovado o Regime Jurídico dos Jogos e Apostas Online. Recordamos que este diploma exclui do seu âmbito de aplicação os concursos de apostas mútuas e os jogos sociais do Estado, cuja exploração se encontra atribuída à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

Com a aprovação deste regime em 2015 estabeleceu-se a proibição de exploração e prática de jogos e apostas online não regulamentados e reservou-se, sem surpresa, o direito de exploração ao Estado, com a possibilidade de atribuição da exploração, mediante licença, a pessoas coletivas privadas. A exploração de jogos e apostas online por operadores reconhecidos por outros Estados-Membros ficou também dependente da atribuição de licença pela entidade competente (o Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, integrado no Instituto do Turismo de Portugal), não sendo reconhecida validade às licenças ou outros títulos habilitantes atribuídos por outros Estados. Com o presente pedido de decisão, é expectável que o TJUE corrobore aquele que vem sendo o seu entendimento quanto à matéria, no sentido da admissibilidade da reserva do direito de explorar de jogos de fortuna ou azar, independentemente da plataforma utilizada, que pode ser atribuído por via de uma concessão ou licença, sujeita à observância de determinados requisitos definidos na lei. As exigências são aplicadas de igual maneira a operadores nacionais e estrangeiros, e resultam da necessidade de garantir a prossecução dos legítimos objetivos que deverão ter estado na origem deste regime marcadamente protecionista, mas que representa uma solução admissível tendo em conta a singularidade do setor em questão e da importância de todos os interesses envolvidos. Não será assim grande novidade se o TJUE vier novamente dizer que o setor do jogo online não é objeto de harmonização comunitária, tendo em conta as características próprias deste regime.

Artigo desenvolvido por Bernardo Azevedo, João Afonso e Madalena Mendes, advogados da MLGTS.

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