Uma ETAR, uma Câmara e 80 empresas de curtumes em risco

Solução encontrada pelo município de Alcanena para a ETAR pode pôr em risco 3.500 postos de trabalho e o funcionamento de 80 empresas, diz presidente da Associação dos Industriais de Curtumes.

Os industriais de curtumes do concelho de Alcanena estão preocupados com o futuro do setor e consideram que a autarquia esta a pôr em causa a competitividade da indústria tendo em conta o resgate do contrato de concessão da exploração da Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) de Alcanena, por parte da Câmara Municipal.

Segundo o secretário-geral da Associação Portuguesa dos Industriais de Curtumes (APIC), Gonçalo Santos, o objetivo da autarquia é transitar a gestão da ETAR industrial de Alcanena (AUSTRA) para a recém-criada empresa municipal AQUANENA, que pretende que esta ETAR passe a ser apenas para uso doméstico. “Isto está a gerar uma grande preocupação junto dos industriais de curtume do concelho, uma vez que deixam de ter uma unidade onde possam tratar as águas e resíduos provenientes das suas fábricas, o poderá pôr em causa toda a indústria, local e nacional, e consequentemente a sustentabilidade da região”, refere em declarações ao ECO.

A fileira do couro em Portugal, direta e indiretamente, exporta mais de 95% da sua produção e com o resgate do contrato da concessão da ETAR podem estar em causa cerca de 3.500 empregos diretos e indiretos apenas na indústria do couro, sem contar com o setor do calçado nacional que continua, “apesar da forte internacionalização, a ser o principal cliente” desta indústria, que “poderá perder suporte competitivo em Portugal” conclui.

São cerca de 80 empresas que dependem diretamente do Sistema de Alcanena, que não inclui apenas a ETAR, mas também os aterros de lamas e resíduos sólidos e unidade de reciclagem de crómio.

Gonçalo Santos

Secretário-geral da Associação Portuguesa dos Industriais de Curtumes (APIC)

Gonçalo Santos explico ao ECO que existe o receio por parte dos industriais do curtume, que a mudança da entidade reguladora e a classificação da ETAR (transição do uso industrial o uso doméstico doméstico), venha a implicar que cada fábrica tenha o seu próprio sistema de tratamento. “Todas as empresas que descarregam os efluentes no sistema terão de construir as suas próprias ETAR e isso representa um avultado investimento e nem todas as empresas têm condições financeiras para o fazer, tendo que encerrar pois não terão como descarregar os efluentes”. Acrescentando ainda que “as empresas que têm capacidade para o fazer, poderão enfrentar problemas de licenciamento, dada a complexidade do processo em geral, e em particular para a indústria de curtumes”, refere o secretário-geral da APIC.

O responsável receia também que o encerramento dessas empresas leve à redução do volume de efluentes a entrar na ETAR o que tornaria a atual ETAR “num elefante branco”. Explica que se a ETAR for apenas de uso doméstico, segundo os critérios da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR) a ETAR serviria uma população de 400 mil pessoas para um concelho que tem cerca de 14 mil, das quais entre nove e onze mil são servidas por esta ETAR.

Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) de Alcanena.

Câmara quer gestão municipal do saneamento básico

Gonçalo Santos aponta ainda a incapacidade financeira, técnica e administrativa da Câmara Municipal de Alcanena ou da empresa municipal para gerir a ETAR e efetuar os investimentos exigidos pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) colocam em causa a futura emissão da licença de descarga para a ETAR. “Os industriais sabem da dificuldade da gestão da ETAR e sabem que a câmara ou empresa municipal não tem perfil, nem capacidade de financiamento para gerir a ETAR e fazer as obras exigidas a curto prazo pela APA”, afirma o secretário-geral da Associação Portuguesa dos Industriais de Curtumes.

O resgate do contrato da concessão da ETAR industrial de Alcanena teve por base um parecer da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), sobre a impossibilidade de associações de utilizadores serem entidades gestoras, disse à Lusa a presidente da Câmara de Alcanena, Fernanda Asseiceira. A autarca socialista de Alcanena referiu que os industriais têm vindo a “dificultar o processo” por não quererem “abdicar de uma posição de controlo”. Alertando que município “tem toda a legitimidade para exercer uma competência que é sua”. Atualmente a Estação de Tratamento de Águas Residuais de Alcanena está ao encargo da Austra.

O ECO tentou obter mais esclarecimento por parte da Câmara Municipal de Alcanena, mas os contactados não quiserem responder às questões enviadas.

Estamos em sérios riscos. Daqui a 120 dias não temos autorização para descargas.

Gonçalo Santos

Secretário-geral da Associação Portuguesa dos Industriais de Curtumes (APIC)

Para o dirigente da APIC existem razões para os industriais do curtume estarem preocupados e dá o exemplo da obra na ETAR exigida pela Agência Portuguesa do Ambiente num prazo de 180 dias, de forma a cumprir os valores de emissão para o meio hídrico (de que dependem as licenças de descarga e a consequente declaração de conformidade ambiental).

Gonçalo Santos relembra que a Austra já tem o financiamento aprovado para as obras na Estação de Tratamento de Águas Residuais e não terá de fazer concurso público para as lançar. Voltando a referir que a “a Câmara Municipal de Alcanena ou a empresa municipal não reúnem qualquer destas condições, estando limitadas no endividamento – a empresa municipal é uma empresa recente sem histórico bancário, as autarquias tem dificuldades acrescidas no endividamento e qualquer uma das duas terá de lançar um concurso público para a obra que tem um custo estimado de cerca de 800 mil euros”, alerta Gonçalo Santos.

Caso a obra não avance as empresas ficam impedidas de fazer a descarga dos efluentes. O secretário-geral da APIC alerta com preocupação que a data está a aproximar-se cada vez mais. “O prazo termina em menos de 120 dias dado que mais de 60 dias já decorreram desde a comunicação da APA com as condições de emissão da nova licença”. Acresce ainda que as obras deveriam ser executadas durante o mês de agosto — durante a paragem da industria de curtumes. Caso as obras não sejam concluídas nesse prazo, a ETAR entrará numa situação de incumprimento ambiental e a entidade gestora não poderá emitir declarações de cumprimento ambiental solicitadas pelos clientes e em consequência pelas empresas de curtumes”, refere.

Da TAP à Gucci, da Volvo à Balenciaga. Alcanena trabalha com grandes marcas

Gonçalo Santos, secretário-geral da Associação Portuguesa dos Industriais de Curtumes, frisa a importância do setor que exporta diretamente mais de 40% da sua produção. Os industriais de curtumes exportam grande parte da sua produção para grandes marcas de moda e do setor automóvel. Por exemplo, hoje são os industriais de Alcanena que fornecem os estofos dos novos aviões Airbus da TAP.

Volvo, Volkswagen, Porsche, Renault, Gucci, TAP, grupo Kering, Balenciaga, entre outras, são algumas das marcas internacionais que trabalham com os industriais do concelho de Alcanena e que exigem garantias de cumprimento ambiental. “Hoje em dia, todas as marcas estão focadas nos temas ambientais, na sustentabilidade, e na economia circular e querem garantias de cumprimento ambiental, caso contrário irão comprar em Espanha ou Itália, que são os nossos principais concorrentes e garantem as mesmas condições”, alerta Gonçalo Santos.

Se não existir cumprimento ambiental, não há clientes, não há encomendas e ,certamente, não serão necessárias empresas nem trabalhadores. Será o fim de uma indústria com mais de 200 anos.

Gonçalo Santos

Secretário-geral da Associação Portuguesa dos Industriais de Curtumes

O secretário-geral da Associação Portuguesa dos Industriais de Curtumes afirmou ao ECO que a solução encontrada pelo município de Alcanena pode pôr em risco estes contratos, caso a nova entidade gestora da ETAR não cumprir com as exigências ambientais impostas pelas marcas.

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