Marcelo contrariou Costa ao promulgar apoios sociais. É episódio “banal”, mas que sinaliza maior “autonomia”

Promulgação de apoios sociais contra vontade do Governo é episódio pouco significativo, mas pode representar maior autonomia e mesmo uma "reinterpretação da função presidencial", dizem politólogos.

O Presidente da República promulgou os apoios sociais aprovados no Parlamento à revelia do PS, depois de o Governo ter tentado impedir as mudanças, por argumentar que violavam a norma travão, que impede a Assembleia da República de aumentar a despesa orçamentada. O que é que este passo significa na relação entre Marcelo e Costa? Para os politólogos ouvidos pelo ECO, é um episódio “banal”, mas mostra sinais de que o Presidente vai assumir uma postura mais “autónoma” e “reguladora do sistema político”. Poderá ainda representar uma “reinterpretação da função presidencial”.

Para o politólogo José Adelino Maltez, “tanto a relação entre Governo e Presidente quanto entre Governo e Parlamento, é o banal da separação de poderes”, diz, ao ECO. A situação é assim natural, já que “o Governo chora sempre a dizer que está a lutar contra a dívida e Parlamentos dão sempre tudo, de vez em quando há uma coligação negativa”, aponta.

Neste contexto, há ainda a agravante de ser durante uma pandemia, que “alterou completamente os planos da pólvora”. Mas, mesmo “com a chegada de um tempo novo, é o eterno bailado entre poderes separados e interdependentes”, reitera. Para além disso, o politólogo relativiza a questão da lei travão, apontando que é algo “muito flexível”, pelo que “estamos a jogar com metáforas” nas questões financeiras.

“Temos de situar isto no quanto é, portanto é fazer considerações relativas”, nomeadamente por exemplo ao “dividir auxílios a TAP por esta verba, quantas vezes dá”, salienta. Os estudos do Governo apontavam para que a mudança nas medidas de apoio social representa cerca de 38 milhões de euros por mês.

António Costa Pinto também reitera que, “enquanto episódio, não representará nada de especial, tendo em vista o escasso impacto orçamental e conjuntura de apoio generalizado à economia”, ao ECO. É uma “medida pontual e não tem impacto a longo prazo”, ou seja, não põe em causa os próximos orçamentos, “tem impacto imediato e singular”, sinaliza o politólogo.

O Presidente “limitou-se no fundamental a dizer a Governo que pode tomar ele iniciativa de recorrer ao Tribunal Constitucional e sendo Governo minoritário terá que fazer mais esforço para evitar coligações negativas”, dando assim a nota de que “compromissos parlamentares são fundamentais”, explica Costa Pinto.

Adelino Maltez aponta que a promulgação “tem a sua justificação”, sendo que o Presidente “sabe fazer muito bem justificações e Governo sabe fazer fintas a processo”. Na nota, Marcelo admite que os diplomas “implicam potenciais aumentos de despesas ou reduções de receitas”, mas sublinha que são “de montantes não definidos à partida, até porque largamente dependentes de circunstâncias que só a evolução da pandemia permite concretizar”.

O Presidente aponta ainda que cabe ao Governo a decisão de suscitar um “pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade”, apelando no entanto para entendimentos políticos que impeçam alguma crise.

Apesar de a situação em si não ser significativa, também “expressa que, numa conjuntura de segunda fase do último mandato deste Governo, que é minoritário”, o Presidente “tem não só mais poder como mais poder regulador”, nota Costa Pinto. “Será essa a natureza da relação entre Presidente e Governo, tem a ver com a natureza da conjuntura política, o Presidente ficará cada vez mais autónomo em relação ao Governo”.

Isto não quer, contudo, “dizer que o Presidente possa ser ator de crise”. Já o primeiro-ministro salientou, esta segunda-feira, em reação à mensagem de Marcelo Rebelo de Sousa, na promulgação dos apoios, que alertava para a necessidade de entendimentos para evitar uma “crise”, que não acredita “que haja qualquer crise política no horizonte”.

Assim, nesta fase em que o Governo vai “a caminho de esgotamento do segunda mandato, é natural que o Presidente cada vez mais seja regulador do sistema político”. Um Chefe de Estado que, embora continue a manter a “estabilidade governamental, se manifeste mais autónomo” face ao Executivo, sublinha Costa Pinto.

Já para Pedro Adão e Silva, este episódio pode mesmo corresponder a uma “reinterpretação da função presidencial neste momento”, segundo aponta ao ECO. Esta função é de garantir o cumprimento da Constituição, nomeadamente a separação de poderes, mas a situação “sugere que o Presidente quer juntar função a ser um contra poder”.

Isto porque a promulgação dos apoios “implica uma interpretação diferente desde logo de norma travão”, que o “próprio Presidente na nota dá conta disso”. Desta forma, Marcelo, “na tensão entre garantir cumprimento da constituição e funcionar como contrapoder, desta feita, escolheu a segunda opção”, reitera o analista político.

Para Adão e Silva, a decisão “tem várias consequências, uma sobre prioridade ao rigor orçamental”, nota. Mas “talvez a principal consequência é dificuldades que cria a Portugal, abrindo precedente, a governos minoritários”, aponta, questionando como é possível “governar em minoria sem assistência da norma travão”.

O politólogo sublinha ainda que poderá existir nesta decisão uma questão “de má consciência e pecado original”, devido à “ideia de que podíamos começar a legislatura sem ideia de compromisso” para apoio ao Governo. Já a “má consciência” deriva de ser “tarde que o Presidente alertou para o problema”, considera.

Como Costa Pinto também destacou, o Presidente “apelou também a que, no fundo, o Governo tente negociar mais no Parlamento justamente a legislação de exceção”, sendo que a viabilidade “é exercício obrigatório que terá de fazer para o Orçamento”. O apelo de Marcelo foi à “negociação com parceiros de Parlamento, que asseguram viabilidade”, numa situação “sem acordos estáveis de governação”, concluiu Adão e Silva.

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