Como a defesa de Salgado justifica uma absolvição em 191 páginas

A contestação da defesa de Ricardo Salgado explica quais as razões jurídicas pelas quais não faz sentido um julgamento pelas três transferências que o levaram a julgamento.

A defesa de Ricardo Salgado descreve — ao longo de quase 200 páginas — quais as razões para considerar o seu cliente inocente dos três crimes de abuso de confiança pelos quais foi pronunciado pelo juiz Ivo Rosa, a 9 de abril.

Na contestação, que foi entregue a Francisco Henriques, o juiz do julgamento, na passada quarta-feira e que obrigou o magistrado a adiar a primeira sessão de julgamento de 7 para 14 de Junho e, uma segunda vez, de 14 de junho para 6 de julho, Francisco Proença de Carvalho e Adriano Squilacce consideram que “falha o pressuposto básico do crime de abuso de confiança: a realização de uma conduta do agente que consista no domínio do facto de fazer a coisa entrar no seu domínio”.

A contestação alega que havia várias pessoas — não só Ricardo Salgado — que davam ordens na ES Enterprises e que também receberam dinheiro e empréstimos e que isto não estava concentrado só no arguido. Entre essas pessoas que constavam da lista de assinaturas autorizadas a realizar movimentos está Jean-Luc Schneider, José Castella, Francisco Machado da Cruz e Roland Cottier

A defesa alega ainda que Ricardo Salgado devolveu o dinheiro — metade do valor do empréstimo (ou seja, cerca de dois milhões de euros) em outubro de 2012. “A própria pronúncia reconhece que dos quatro milhões de euros transferidos da ES Enterprises, através da Savoices, reembolsou dois milhões de euros a 31 de outubro de 2012”.

Bem como o facto do ex-líder do BES ter injetado cinco milhões no ES Control: “No final de 2013, no âmbito da reestruturação perspetivada para o GES, estava inicialmente um aumento de capital na ES Control, que tanto quanto se sabe não chegou a ser concluído mas o arguido depositou cinco milhões na conta da ES Control, com vista a serem transferidos para a ESI Overseas”, pode ler-se na contestação. “Isto demonstra que o arguido não se quis apropriar indevidamente do valor de quatro milhões de euros transferido pela Enterprises para a Savoices em outubro de 2011.

Em julgamento está em apreciação o facto de Salgado ter utilizado a ES Enterprises para transferir cerca de quatro milhões de euros para a Savoices, uma empresa offshore da qual o ex-líder do BES era o beneficiário e que tinha conta noutro banco suíço. Um segundo alegado crime está relacionado com transferências que a ES Enterprises fez para Henrique Granadeiro, tendo o ex-líder da PT transferido depois mais cerca de quatro milhões de euros para uma conta no banco Lombard Odier aberta em nome de uma sociedade offshore chamada Begolino, que pertence a Ricardo Salgado e à sua mulher Maria João Bastos. No terceiro, estarão em causa cerca de dois milhões e 750 mil euros que tiveram origem no Banco Espírito Santo (BES) Angola, que passaram por uma conta do empresário Hélder Bataglia e acabaram na Savoices de Ricardo Salgado.

Mas, vamos por partes.

Antes de explicar quais os motivos técnico-jurídicos para que, na opinião da defesa, o ex-líder do BES não deveria ser julgado por três dos 21 crimes que constavam na acusação do Ministério Público, o que é mesmo esse crime de abuso de confiança e o que prevê a lei? “Quem ilegitimamente se apropriar de coisa móvel ou animal que lhe tenha sido entregue por título não translativo da propriedade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”. Se for um “valor consideravelmente elevado, o agente é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos”. Que é o caso, segundo a justiça portuguesa. Salgado arrisca-se, assim, a ser condenado a uma pena que pode ir de 3 anos a 24 anos de prisão.

E o que é que, alegadamente, o ex-líder do BES e um dos mais influentes banqueiros portugueses até 2014, se terá apropriado indevidamente? Num caso, Salgado terá utilizado a ES Enterprises para transferir cerca de 4 milhões de euros para a Savoices, uma empresa offshore da qual o ex-líder do BES era o beneficiário e que tinha conta noutro banco suíço. Um segundo alegado crime está relacionado com transferências que a ES Enterprises fez para Henrique Granadeiro, tendo o ex-líder da PT transferido depois mais cerca de 4 milhões de euros para uma conta no banco Lombard Odier aberta em nome de uma sociedade offshore chamada Begolino, que pertence a Ricardo Salgado e à sua mulher Maria João Bastos. No terceiro, estará em causa cerca de 2 milhões e 750 mil euros que tiveram origem no Banco Espírito Santo (BES) Angola, que passaram por uma conta do empresário Hélder Bataglia e acabaram na Savoices de Ricardo Salgado.

Perante este contexto, como é que a defesa explica (em várias páginas) que o arguido deveria ser absolvido destes mesmos crimes? O ECO fez, de forma resumida, a lista desses mesmos argumentos.

  • O ilícito típico do abuso de confiança pressuporia que as saídas de fundos
    da esfera da Enterprises não tivesse causa legítima e tivessem sido realizadas
    com intenção deste se apropriar indevidamente dos mesmos. Mas todas assentaram em motivos legítimos.
  • O abuso de confiança pressupõe uma actuação ilícita com vista ao “descaminho”
    ou “dissipação” da coisa móvel, o que requer não haver uma razão para a transferência de
    património.
  • A existência de causa legítima para todas as transferências da Enterprises para a Green
    Emerald, Savoices (i.e., EUR 4.000.000) e Henrique Granadeiro explicam que a razão está lá;
  • E o mesmo se diga quanto às transferências de EUR 2.750.000 da Green Emerald para a
    Savoices e, ainda, quanto à transferência de CHF 4.900.000 de Henrique Granadeiro para a
    Begolino.
  • Assim, quer nas transferências a partir da Enterprises, quer nas transferências feitas pela
    Green Emerald / Hélder Bataglia e Henrique Granadeiro para a Savoices e a Begolino, existem causas de direito civil que legitimam estas transferências;
  • Não estando assim em causa uma questão do foro penal. Isto é assim até porque quaisquer eventuais questões ou problemas que se suscitassem sobre o cumprimento dos requisitos cíveis ou comerciais deste empréstimo não são aptos a gerar responsabilidade penal, mas constituem apenas uma questão de direito civil ou comercial.
  • Falha o pressuposto básico do crime de abuso de confiança: a realização de uma conduta do agente que consista no domínio do facto de fazer a “coisa” entrar no seu domínio.
  • Quanto às transferências realizadas pela Enterprises para a Green Emerald e Henrique Granadeiro e, depois, as transferências realizadas pela Green Emerald (EUR 2.750.000) para a Savoices e por Henrique Granadeiro para a Begolino (CHF 4.900.000), acresce que o arguido não teve o domínio do facto, porque este nunca controlou os movimentos bancários das contas da Green Emerald e de Henrique Granadeiro. Já que a partir do momento em que os fundos em causa transitaram da Enterprises para a Green Emerald e Henrique Granadeiro, o arguido não teve o domínio do facto,
  • Em terceiro lugar, em particular do caso do valor de EUR 4.000.000 emprestado pela
    Enterprises ao ora Arguido, através da Savoices – e dos quais este restituiu EUR 2.000.000 –,
    o facto de estar em causa um incumprimento de uma mera dívida não legítima a imputação de um crime de abuso de confiança.
  • Ainda quanto ao caso do valor de EUR 4.000.000 emprestado pela Enterprises ao ora Arguido, o facto de, em 31 de Outubro de 2012, o ora Arguido ter efectivamente restituído o montante de capital de EUR 2.000.000 (tal como reconhecido no artigo 45 da pronúncia) demonstra, claramente, que não houve qualquer intenção de apropriação indevida. Na própria pronúncia, não é imputada ao arguido qualquer conduta no sentido de transferir o valor de EUR 2.000.000 aí indicado da Enterprises.
  • O crime de abuso de confiança pressupõe que a apropriação incidente sobre uma coisa entregue licitamente ao agente, mas este requisito não está preenchido face à matéria que consta da pronúncia. O artigo 6. da pronúncia faz referência ao “controlo” que o arguido teria sobre as contas da Enterprises, mas, em momento, algum este artigo refere que a entrega da conta bancária da Enterprises lhe tivesse sido feita licitamente;

O julgamento de Ricardo Salgado começa no dia 6 de Julho, um mês depois da primeira data prevista. Para já, estão marcadas três sessões até ao início das férias judiciais, que começam a 15 de julho. Este julgamento nasce da separação de processos decretada por Ivo Rosa relativamente à pronúncia da Operação Marquês. O juiz de instrução não pronunciou a maioria dos arguidos do mais mediático processo da Justiça portuguesa mas quis que José Sócrates, o amigo e testa de ferro Carlos Santos Silva, o motorista João Perna, Ricardo Salgado e Armando Vara fossem a julgamento.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Como a defesa de Salgado justifica uma absolvição em 191 páginas

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião