Duas testemunhas e um tradutor italiano. O primeiro dia do julgamento de Salgado

Francisco Machado da Cruz e Michel Canals foram as primeiras testemunhas do processo que coloca Ricardo Salgado no banco dos arguidos por três crimes de abuso de confiança.

Francisco Machado da Cruz foi a primeira testemunha a inaugurar o julgamento de Ricardo Salgado, que à terceira tentativa, lá aconteceu. O ex-responsável da contabilidade do Grupo do Espírito Santo (GES) até 2014, que se designou como “colaborador” do GES em audiência de julgamento, porque também é arguido no processo do Universo Espírito Santo, pediu para não prestar declarações nem responder a perguntas em nome do princípio da não autoincriminação previsto no processo penal.

“Fui incriminado por 36 crimes no processo BES, e disse só a verdade nesse processo e sempre colaborei com a justiça, incluindo com a CMVM, MP, BdP e só pelo facto de conhecer Ricardo Salgado posso vir a ser incriminado outra vez e já chega!”, disse o ex-comissaire aux comptes. O advogado Miguel Cordevil de Matos disse que o processo do GES é muito extenso. “Qualquer ligação com GES foi considerada para construir uma narrativa incriminatória e peço que compreendam que o meu cliente não tenha de responder”.

Mas o juiz Francisco Henriques não ficou convencido com os argumentos e assumiu que “há regras em processo penal e duvido muito que alguém possa aproveitar declarações neste processo para outro processo”, disse o magistrado Francisco Henriques. O juiz Rui Coelho – o auxiliar neste processo — veio esclarecer que “as perguntas vão ser feitas à mesma, se recusar a responder poderá em sede superior ser avaliada essa recusa. Há sanções penais para essa recusa”. Depois deste momento de argumentação jurídica de meia hora, a inquirição lá começou e uma das questões levantada pelo MP foi então se Machado da Cruz foi administrador ou não da Enterprises. “Sim”, respondeu Machado da Cruz “Mas não me recordo do período, mas acabei em finais de 2014”.

A segunda questão foi : “Qual a sua relação com Helder Bataglia: pessoal ou profissional?”, perguntou o procurador. Resposta imediata: “Conheci-o em 1993/1994. O Helder estava a fazer a incorporação da ESCOM e fui envolvido nesse assunto”. E admitiu que chegaram a partilhar casa “temporariamente”, em Luanda, por volta de 2001, porque a ESCOM tinha uma casa na cidade e Machado da Cruz trabalhava para a AMDL. Depois, o ex-contabilista do BES foi viver para a Suíça para uma empresa do Universo BES.

De seguida, foi a vez do advogado de defesa de Ricardo Salgado, Adriano Squilacce, fazer as questões. “A atividade de Bataglia nos anos 90 estava centrada em África?”, disse. “Sim, sempre vi a atividade da ESCOM em África”. E foi “Helder Bataglia que o convidou para trabalhar na AMDL, em Angola?”. “Precisava de ajuda para a área financeira em Angola e eu fui”, disse.

“Afinal não foi difícil”, disse o juiz, no final da inquirição, em tom de descontração, como é seu apanágio.

Michel Canals nega ter sido gestor de conta de Ricardo Salgado

A segunda testemunha que se seguiu foi Michel Canals, gestor de fortunas na Suíça e arguido no processo Monte Branco. Atualmente reformado de 62 anos, respondeu à questão do MP se conhecia Ricardo Salgado: “Quem é que em Portugal não conhece? Mas sim, conhecia, mas não era meu cliente mas sim de um colega meu da Akoya”, a empresa que geria na Suíça, mas era o seu sócio o responsável pela sua conta.

A inquirição foi feita por videochamada, com o sistema de alta voz acionado, sem recurso a nenhuma imagem da testemunha, a não ser por parte do tradutor italiano que estava na sala. “Isso viola o que aprendemos nas aulas de Direito, de termos que interpretar a postura corporal das testemunhas”, queixou-se o advogado de Salgado, Francisco Proença e Carvalho. A Akoya era uma das mais de 2 mil sociedades de gestão financeira que existem na Suiça. Questionado por Francisco Proença de Carvalho, a testemunha respondeu que “eu era um dos seis partners”, disse. Os outros eram: Helder Bataglia, Álvaro Sobrinho, Michel Canals, Nicolas Figueiredo, José Pinto e a advogada Ana Bruno .

O tribunal mostrou ainda um documento que comprova uma transferência de 1,5 milhões de euros em favor da Savoices, assinado por Bataglia, e Michel Canals explicou que a Akoya não era um banco, não podia fazer pagamentos, tinha que se dirigir a um banco para fazer o pagamento. Não se recorda se foi o caso: “estive com o Bataglia umas 200 vezes”.

Michel Canals e Nicolas Figueiredo, sócios da Akoya, foram detidos em maio de 2012 por suspeitas dos crimes de evasão fiscal e lavagem de dinheiro. A função da empresa era de apoiar e aconselhar empresários e empresas na área financeira. Os serviços prestados aos clientes abrangiam áreas como o aconselhamento financeiro, o suporte das suas atividades bancárias e o apoio na marcação de viagens e contactos.

Inicialmente, o julgamento de Ricardo Salgado estava marcado para o dia 7 de junho mas como o juiz, Francisco Henriques, ainda não tinha a contestação da defesa aos factos da acusação do Ministério Público (MP), a defesa do ex-banqueiro pediu esse adiamento, tendo em conta a dimensão do documento (quase 200 páginas).

Adiado para dia 14 de junho, nesse dia, foi a vez do Ministério Público alegar que precisava de mais tempo para analisar a dita contestação, entregue cinco dias antes.

A seguir ao pedido do Ministério Público, foi a vez da defesa de Ricardo Salgado ter pedido também que o julgamento fosse adiado. Em causa a idade de Ricardo Salgado — que completou 77 anos no final de junho — e que, segundo a legislação em vigor relativa à pandemia, não é obrigado a deslocar-se a tribunal. Mas tendo, no entanto, o direito de assistir presencialmente à prova testemunhal. Um entendimento que não foi subscrito pelo juiz do coletivo, Francisco Henriques. “Não vamos bater no ceguinho”, disse o magistrado. “Os senhores doutores têm um entendimento, eu tenho outro. Revogada ou não”. Os advogados Francisco Proença Carvalho e Adriano Squillace alegaram que Francisco Henriques referiu-se a uma lei da Covid-19 já revogada para avançar com o julgamento.

Para já, estão agendadas sessões para 8 e 13 de julho e também já para setembro. Serão ouvidos José Maria Ricciardi, Amílcar Morais Pires, Michel Canals e Paulo Silva.

Da parte da acusação, o Ministério Público apresentou uma lista de 12 testemunhas como José Maria Ricciardi (ex-líder do BES Investimento e primo de Ricardo Salgado), Amílcar Morais Pires (ex-administrador financeiro do BES e ex-braço direito de Salgado), Hélder Bataglia (ex-líder da ESCOM), Michel Canals (gestor financeiro de Salgado na Suíça) e Paulo Silva (inspetor tributário que coadjuvou o procurador Rosário Teixeira na Operação Marquês). Segundo o Ministério Público, a defesa de Salgado terá apresentado uma lista de 40 testemunhas.

O que está em causa?

O antigo presidente do BES está em julgamento por três crimes de abuso de confiança no âmbito da Operação Marquês. E de forma autónoma face aos restantes arguidos, já que Ivo Rosa, na altura da decisão instrutória, anunciou que iria proceder à separação de processos de Salgado, Vara, Carlos Santos Silva, João Perna e José Sócrates, os únicos arguidos que o juiz de instrução pronunciou a 9 de abril.

Ricardo Salgado estava acusado de um total de 21 crimes: um crime de corrupção ativa de titular de cargo político, dois crimes corrupção ativa, nove crimes branqueamento de capitais, três de abuso de confiança, três de falsificação de documento e três crimes fraude fiscal qualificada.

Num caso, Salgado terá utilizado a ES Enterprises para transferir cerca de quatro milhões de euros para a Savoices, uma outra empresa offshore da qual o ex-líder do BES era o beneficiário e que tinha conta noutro banco suíço;

Um segundo crime de abuso de confiança está relacionado com transferências que a ES Enterprises fez para Henrique Granadeiro, tendo o ex-líder da PT transferido depois mais cerca de quatro milhões de euros para uma conta no banco Lombard Odier, aberta em nome de uma sociedade offshore chamada Begolino, que pertence a Ricardo Salgado e à sua mulher Maria João Bastos.

Finalmente, há ainda cerca de dois milhões e 750 mil euros que tiveram origem no Banco Espírito Santo (BES) Angola, passaram por uma conta do empresário Hélder Bataglia e acabaram na Savoices de Ricardo Salgado.

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