Como é que Costa governa “à Guterres”? E se for com o PAN?

Se houver governação "à Guterres", Costa, Marcelo e Rio voltam a negociar Orçamentos, como há duas décadas. Mas o PS tem preferência pela "eco-geringonça" sugerida pelo Livre, com o PAN.

Passaram-se duas décadas entre o “guterrismo” e o “costismo”, mas algumas das figuras da política nacional repetem-se. Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa e Rui Rio podem voltar a estar no centro da política em Portugal, mas em diferentes papéis. Em causa está a governabilidade do país no pós-eleições de 30 de janeiro e a hipótese de avançar a solução que, há 20 anos, levou ao “pântano político” anunciado pelo então primeiro-ministro António Guterres. Há menos de um ano, o Presidente da República dizia que queria garantir a “estabilidade sem pântano”.

Foi no debate de quinta-feira com o líder do PSD que António Costa admitiu pela primeira vez, de forma explícita, que poderá governar “à Guterres”, após enterrar a possibilidade de reeditar a geringonça com PCP e Bloco de Esquerda. Mas o que significa isto? “Teremos de conversar com os partidos na Assembleia da República num modelo clássico, diploma a diploma“, concretizou o secretário-geral socialista, admitindo este foi um período “difícil” e que “levava mais tempo” a aprovar as propostas do Governo.

E falou com propriedade, uma vez que no primeiro Governo de Guterres foi secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares — curiosamente este foi, durante a geringonça, o cargo ocupado por Pedro Nuno Santos, o nome mais apontado para o suceder na liderança do PS no caso de sair derrotado nas eleições — e depois ministro da Presidência. Ou seja, Costa esteve no centro das negociações orçamentais (e não só) entre o PS e o PSD que na altura era liderado por… Marcelo Rebelo de Sousa (presidente do PSD entre 1996 e 1999).

O atual Presidente da República falou dessa época recente numa entrevista ao Público sobre o guterrismo. Relembrou que “no seu primeiro mandato, [Guterres] tivera três orçamentos viabilizados por [si] e pelo PSD”. Mas havia uma “cola” nessa altura: Portugal estava prestes a entrar no Euro e era preciso cumprir uma série de requisitos económicos para não falhar, existindo até um acordo entre os dois principais partidos sobre essa prioridade. Agora, nem o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a chamada “bazuca” para combater a crise pandémica, foi negociado entre os dois partidos.

Durante o primeiro mandato do atual secretário-geral da ONU, um dos interlocutores de Costa, enquanto ministro dos Assuntos Parlamentares, era Luís Marques Mendes. Aquele que é atualmente o comentador televisivo com mais influência, era então o líder do grupo parlamentar do PSD. Porém, era Rui Rio quem assumia o papel de porta-voz dos social-democratas para a economia, pelo que o agora candidato a primeiro-ministro estava presente nas negociações orçamentais na Assembleia da República (onde também estava Manuela Ferreira Leite, apoiante de Rio). Do lado do PS estava Jorge Lacão, que era líder parlamentar e que não se recandidata nestas eleições — disse recentemente que o PS “não deve criar obstáculos” a um governo minoritário do PSD. O ECO tentou contactá-lo, sem sucesso.

Já Marques Mendes, em declarações ao ECO, recorda que governar à Guterres significa negociar “à peça” e governar com “geometria variável”, algo que tem “quase nenhumas vantagens” e “bastantes fragilidades”. “Uma governação desta natureza dá incoerência na governação, cria impasses e, na prática, tudo o que é importante — reformas — não se faz”, prevê. Classificou ainda a governação de Guterres como um “desastre” que deixou um “passivo brutal” no país, apesar de reconhecer qualidades ao líder dos socialistas no final dos anos 1990.

Duas décadas depois, Marcelo Rebelo de Sousa, enquanto Presidente da República, poderá agora ser o mediador de uma governação minoritária do PS com negociações pontuais e de índole parlamentarcom o PSD de Rui Rio. O social-democrata já tinha dito que estava disponível para um acordo de quatro anos com uma avaliação dois anos depois, mas Costa só abriu a porta à negociação à vista. Ao mesmo tempo, o atual primeiro-ministro deixou na mesa a possibilidade de negociar com outros partidos — principalmente o PAN e o Livre –, consoante o resultado das eleições.

Também no Governo de Guterres não se fechou as portas ao CDS — que agora não tem abertura para algo semelhante –, com os centristas a viabilizarem o primeiro Orçamento (1996). Foi também nesses anos que ficou para a história o famoso “Orçamento limiano”: o deputado Daniel Campelo, do mesmo partido, viabilizou o Orçamento do Estado para 2001 e 2002, em troca de investimentos para Viana de Castelo e Ponte de Lima. Mais recentemente, os deputados do PSD da Madeira, apesar de terem depois recuado, admitiram viabilizar Orçamentos do PS, em troca de conquistas para o arquipélago. Outra das possibilidades que pode ser explorada por Costa no pós-eleições.

Evitar o pântano. Como?

Na mesma entrevista ao Público, Marcelo contextualiza a expressão “pântano”, que utilizou em março de 2021, quase antevendo o chumbo do Orçamento do Estado para 2022 e a queda do Governo. “A expressão resultava em primeiro lugar da falta de uma maioria […], significava que deixara de ter condições para governar“, explicou o atual chefe de Estado, aludindo depois à queda da ponte de Entre-os-Rios, que “foi o começo do fim do seu Governo”, e à derrota dos socialistas nas autárquicas de 2001. Uma das surpresas dessa noite eleitoral foi a derrota de Fernando Gomes no Porto contra… Rui Rio.

Antes da pandemia, no início do segundo mandato, António Costa, também a liderar um Governo minoritário, fez questão de assinalar que “[aquele] Governo é para quatro anos e [consigo] não há pântanos”. Neste caso, não foram as autárquicas (nas quais o PS perdeu Lisboa, Coimbra, Funchal e outros municípios), mas o chumbo do Orçamento a ditar a dissolução do Parlamento e a convocação de eleições antecipadas. As sondagens sugerem que o ato eleitoral não vai resolver taxativamente o impasse e os portugueses não darão a almejada maioria absoluta ao PS.

Marcelo também já tinha antecipado esse cenário. Se os portugueses não dão maioria clara a ninguém, será um berbicacho para o Presidente, confessou no início de 2021, prevendo um possível cenário de impasse em que nem à esquerda, nem à direita há condições para ter um Governo maioritário ou minoritário com apoio parlamentar — exatamente o que se prevê que aconteça agora em 2022. A questão que paira no ar é se a governação “à Guterres” não levará ao mesmo “pântano” e ao “ciclo de dois anos”, em vez de ciclos estáveis que quer o Presidente da República. Que estará no cargo até 2026, durante toda a próxima legislatura.

Marques Mendes, que é conselheiro de Estado, antecipa essa instabilidade. Com a agravante de que Costa tem um “desgaste acumulado”, na comparação com Guterres, que começou o seu mandato logo a negociar à peça. O comentador prevê que, quer ganhe o PS ou o PSD, ambos irão viabilizar os dois primeiros orçamentos (OE2022 e OE2023) — até porque Rio “não é muito exigente nas negociações”. Mas ao terceiro Orçamento já duvida que cheguem; e ao quarto diploma acha mesmo que há uma rotura e novas eleições. Já a hipótese de um Governo do PS apoiado pelo PAN classifica como “impossível”, crendo que não terão os deputados suficientes.

Uma eco-geringonça a caminho?

Mas essa é uma possibilidade que Costa não descarta e que já tinha sido admitida por Augusto Santos Silva. Sem maioria absoluta, a segunda hipótese lançada pelo ainda primeiro-ministro foi uma coligação pós-eleitoral com o PAN. E tem razões para acreditar nela, a crer na última sondagem do Público. O socialista diz que é preciso “esperar” pelos resultados para se conhecer a representação parlamentar do partido Pessoas, Animais e Natureza, que em 2019 conseguiu eleger quatro deputados. A repetir esse resultado, tal pode ser suficiente para uma maioria no Parlamento, isto caso o PS fique perto desse patamar.

Ao PAN e ao PS pode juntar-se o Livre. Rui Tavares, que deverá ser eleito em Lisboa, segundo as sondagens, fez essa sugestão. E apelidou-a até de “eco-geringonça”, incluindo também o PEV na fórmula política. “Caso se mantenha esta situação de alguma intransigência entre uma esquerda que devia ser da convergência, há também outras soluções. Não está excluído, por exemplo, que possa haver uma maioria parlamentar que seja com o Livre, PAN e eventualmente até com o PEV, que já algumas vezes votou de maneira diferente do PCP no Orçamento. A isso nós poderíamos chamar uma ‘eco-geringonça’”, afirmou recentemente o ex-eurodeputado.

Inês Sousa Real, líder parlamentar do PAN, em entrevista ao ECO - 28SET20
Inês de Sousa Real lidera o PANHugo Amaral/ECO

Neste cenário, o Governo PS teria parceiros parlamentares (ou até de Governo) com uma expressão eleitoral significativamente inferior à do Bloco e à do PCP, o que poderá resultar em diferentes equilíbrios de poder. O PAN já assumiu a ambição de chegar ao Governo e ter funções executivas, sugerindo a criação de um Ministério da Economia e das Alterações Climáticas e um Ministério do Ambiente, da Biodiversidade e da Proteção Animal. Mas não se sabe quais seriam as linhas vermelhas do partido em termos de políticas ou até que ponto terá votos para o exigir a Costa.

Reagindo às declarações do líder do PS no debate, Inês Sousa Real não se comprometeu. “Até ao dia 30 não vamos fazer futurologia, no dia 30 vamos perceber qual o resultado eleitoral, quais os compromissos que os partidos estão a fazer. No dia 30 não faltaremos ao país, da mesma maneira que não faltámos no Orçamento do Estado“, afirmou, citada pela Lusa, argumentando que “o país não queria uma crise política por cima de uma crise económica”.

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