O que é o Vetting, a solução que Costa quer para escrutinar membros do Governo? Advogados explicam
Costa quer introduzir um mecanismo de verificação no processo de indicação de governantes e passou a batata quente para Marcelo. Mas o que dizem os advogados sobre o vetting?
Vetting. Uma palavra que, nos últimos dias, passou a ser mais recorrente. Mas o significa, em concreto? É um sistema de fiscalização prévia do candidato ao exercício de certas funções. Ou seja, é um mecanismo de verificação no processo de indicação de governantes (e não só) e que, na quinta-feira, dia 5 de janeiro, foi sugerido a Marcelo Rebelo de Sousa por António Costa , em pleno debate no Parlamento, aquando a moção de censura ao Governo, depois dos inúmeros casos de demissões dos membros da equipa do primeiro-ministro.
O vetting é uma expressão que serve para descrever a ação de escrutinar o percurso de um candidato a um determinado cargo político e avaliar a sua integridade.
Nos últimos meses, já foram 12 os membros do Governo a serem demitidos ou demitirem-se. A demissão mais marcante e que criou mais ‘mossa’ na equipa de António Costa foi a de Pedro Nuno Santos, no Governo há sete anos e que pediu a demissão do cargo de ministro da Habitação e das Infraestruturas, depois da polémica de Alexandra Reis — outra que também ‘caiu’ da equipa governamental — da compensação de 500 mil euros, aquando a saída da TAP. A última demissão foi a de Carla Alves, ex-secretária de Estado da Agricultura, que esteve no cargo cerca de 24 horas. Em causa a acusação contra o seu marido, pelo crime de prevaricação. Esta foi a 12.ª baixa do Governo, que tomou posse a 30 de março de 2022, isto é, em menos de um ano.
Miguel Alves, que tinha sido nomeado secretário de Estado Adjunto de Costa, esteve pouco mais de um mês no Governo e foi obrigado a demitir-se, depois da acusação do Ministério Público que o envolvia em suspeitas de prevaricação, aquando o seu mandato como presidente da Câmara de Caminha.
Com a política do vetting cada candidato a um cargo público é avaliado e escrutinado. Ou seja, é analisado o seu currículo, redes sociais, consultado o registo criminal, se está envolvido em algum processo judicial, e pode até ser verificado se possui dívidas, como à Segurança Social e às Finanças. O percurso do candidato é assim “esmiuçado” para perceber se tem condições para tomar posse e assumir o cargo.
Segundo explicou ao Público o investigador Luís de Sousa, o vetting pode ser feito de forma informal ou institucionalizada, ou seja, criar um conjunto de regras a seguir e “atribuindo a um gabinete ou a uma pessoa” a responsabilidade de analisar todos os dados.
Esta política é defendida por muitos por ser uma forma de defender a credibilidade do sistema político e de reforçar a confiança dos cidadãos no Estado. Ainda assim poucos são os sistemas políticos que adotaram este sistema.
O que dizem os advogados?
O vetting governamental é feito pelo próprio Governo ou agências por este supervisionadas, contando muitas vezes até, em alguns países, com a intervenção dos serviços de informações. “Não obstante, é possível, de forma acessória ou preparatória, recorrer a empresas privadas. A razão pela qual, em regra, o processo é feito internamente, relaciona-se com a sensibilidade da informação e o desejo de a manter em circuito fechado. É, por exemplo, o caso dos EUA, que têm o sistema de vetting dos mais apurados que existem”, explica Jane Kirby, advogada e sócia da Antas da Cunha ECIJA.
“Um sistema de vetting é facilmente integrável em qualquer sistema de Governo, incluindo o nosso. De certo modo, isto já é feito de forma informal, ainda que os casos recentes demonstrem que o é de forma ineficiente, causando constrangimentos políticos”, sublinha.
A advogada defende ainda que, desde que se assegure que os meios para garantir a informação é obtida de forma legítima e fidedigna, “o vetting em si não causa nenhum problema jurídico, desde logo, por ser uma atividade de controlo que pressupõe a colaboração das pessoas analisadas. Aliás, não é raro grandes grupos empresariais fazerem vetting para a escolha dos nomes para cargos de topo”.
Opinião diversa tem José Moreira da Silva, sócio da SRS Legal. “Num regime semipresidencialista como o nosso, com pendor parlamentar, não vejo razão para introduzir esse crivo parlamentar prévio, já que a Constituição prevê formas de fiscalização permanente dos membros do Governo pelo Parlamento. O pretendido pelo PM teria até o caricato de transformar o regime português num regime de pendor presidencialista, ao atribuir ao PR a competência para confirmar os membros do Governo, deixando de ser um poder do PM…”, sublinhou o advogado.
Mas, a ser introduzido, “sem revisão constitucional (que aliás está em curso), poderia ser no regimento da AR ou num decreto orgânico do Governo, ou ainda numa lei autónoma (que sempre seria materialmente constitucional). Mas, tal com proposto pelo PM, sempre seria uma alteração material ao regime constitucional vigente, pelo que não pode ser visto de ânimo leve. O PR já demonstrou objetar o proposto, por isso mesmo”.
Mais, este mecanismo deveria ser sempre feito “antes da proposta ao PR, de forma a que este não possa ficar responsabilizado por algo que não depende dele, mas do PM”, explicou, concluindo que este “não nos parece a melhor solução no nosso regime, pois a AR exerce fiscalização posterior e não anterior. A introduzir-se, o Parlamento ficaria com muitos mais poderes e tornaria o Governo uma Comissão dele, como nos regimes parlamentaristas. Hoje o Parlamento é ouvido na nomeação de altos cargos públicos especialmente previstos na Constituição em casos em que se quer dar maior independência ao cargo, fazendo intervir mais de um órgão e principalmente o Parlamento com uma composição plural. E esta solução tem evidentes problemas constitucionais, pois altera o regime em vigor, mexendo com as competências do Presidente da República, do Governo e do Parlamento.
Jane Kirby defende que “parece-me evidente que tem de ser antes da proposta do nome ao PR. Não deve confundir-se o vetting com o escrutínio político dos nomes escolhidos ou propostos que, naturalmente, o PR ou qualquer outro órgão que fiscalize o Governo poderá e deverá sempre fazer. O que demonstra que o vetting é uma atividade que deve ser realizada pelos órgãos ou entes que têm responsabilidade política pela escolha da pessoa selecionada”.
“Este mecanismo deveria ser sempre feito “antes da proposta ao PR, de forma a que este não possa ficar responsabilizado por algo que não depende dele, mas do PM”, explicou, concluindo que este “não nos parece a melhor solução no nosso regime, pois a AR exerce fiscalização posterior e não anterior. A introduzir-se, o Parlamento ficaria com muitos mais poderes e tornaria o Governo uma Comissão dele, como nos regimes parlamentaristas”.
“Não me parece que este sistema possa ser acolhido no atual quadro constitucional. De facto, ao Presidente da República cabe indigitar o Chefe de Governo – o Primeiro-Ministro. E a este cabe todo o processo de seleção e proposta de nomeação de todos os restantes membros do governo. Esta é uma prerrogativa, um direito, do Primeiro-Ministro, não um ónus! E, como contrapartida desta liberdade, caber-lhe-á a responsabilidade por essas escolhas. Por isso mesmo, também apenas ao Primeiro-Ministro cabe o poder de destituir qualquer um dos membros do seu governo”, explica o advogado Nuno Morais, sócio da PRAGMA.
“Independentemente de algum mecanismo de informação prévia, não se vê forma de aligeirar ou diluir a responsabilidade do Primeiro-Ministro pela escolha dos titulares dos cargos executivos.Tendo em vista a repartição de poderes, nos termos constitucionalmente previstos, e os princípios que lhe estão subjacentes, não vemos que possa ser introduzido um sistema de vetting sem alterar, não apenas o simples texto da Constituição, mas os próprios princípios da separação de poderes que a enformam, o que equivale a dizer: alterar todo o sistema constitucional português como o conhecemos!”, acrescenta o mesmo advogado.
Ana Bastos, sócia da Antas da Cunha ECIJA, defende que “a transparência e o motivo de background check tem um elevado interesse público, uma vez que estamos perante cargos públicos de grande importância política, sobrepondo-se o interesse público e os interesses da população portuguesa, em certa medida, aos direitos, liberdades e garantias dos titulares dos dados em causa”.
E sublinha que “uma vez que estamos a falar de um sistema de verificação no processo de indicação de governantes, muito equivalente (aparentemente) ao background check de Pessoas Politicamente Expostas ou Especialmente relacionadas (ou PEP), a informação que deverá ser pesquisada se prende com aquela cujo acesso seja público. Ou seja, teremos sempre de ter em atenção a forma de obtenção e a fonte da informação de onde a mesma vai ser recolhida. As informações recolhidas, e objeto de utilização, apenas poderão corresponder à finalidade a que se destinam, não podendo nem extravasar nem ser utilizada para finalidades distintas”.
“Parece-me evidente que tem de ser antes da proposta do nome ao PR. Não deve confundir-se o vetting com o escrutínio político dos nomes escolhidos ou propostos que, naturalmente, o PR ou qualquer outro órgão que fiscalize o Governo poderá e deverá sempre fazer. O que demonstra que o vetting é uma atividade que deve ser realizada pelos órgãos ou entes que têm responsabilidade política pela escolha da pessoa selecionada”.
Nuno Morais sublinha ainda que, “à partida, em termos estritamente jurídicos, um processo de screening de governantes, principalmente se levado a cabo no Parlamento, pode implicar demoras, por vezes excessivas no início de funções. Não se vê, de resto, que qualquer processo desta natureza pudesse retirar, ou alterar, qualquer tipo de poder de supervisão de qualquer órgão de soberania, sobre o Governo, seja da Assembleia da República ou do Presidente da República. Os problemas jurídicos que se levantam são mais relativos à eventual regulamentação do procedimento propriamente dito, sempre em atenção à transparência do mesmo por um lado, e à salvaguarda da posição de cada um dos intervenientes por outro no âmbito do equilíbrio institucional”.
Como é feito em outros países?
Esta expressão surgiu já há alguns séculos atrás e era utilizada para descrever a avaliação que os veterinários faziam aos cavalos antes das corridas. Depois, no anos 30 do século XX, começou a ser utilizada como forma de avaliar pessoas, mas para casos militares, e para avaliar discursos políticos. E só nos anos 40 é que chegou aos Estados Unidos da América.
Atualmente, países como a Alemanha, Croácia, Dinamarca, Espanha e França já possuem mecanismos de escrutínio prévio, segundo um estudo feito para a Fundação Francisco Manuel dos Santos sobre Ética e Integridade na Política.
Por exemplo, na Croácia e na Dinamarca cabe aos serviços de inteligência e de segurança investigarem os candidatos. Na Alemanha, o escrutínio é feito por voluntários do Governo. Já em França, é a Entidade da Transparência que está incumbida de analisar todas as informações relevantes.
Por outro lado, no país vizinho, Espanha, existem certas condições para exercer funções e existe um gabinete específico, o Gabinete de Conflitos de Interesse, que analisa a existência de conflitos judiciais, questões relacionadas com falências ou acusações criminais de terrorismo ou falsificação ou impedimentos de exercício de qualquer função pública.
E depois há os casos em que deriva do específico regime político existente. Veja-se os casos em que qualquer candidato a um cargo público passa previamente por um crivo parlamentar ou de uma comissão parlamentar em regimes parlamentaristas (como o do Reino Unido) ou em que existe um equilíbrio específico entre os vários órgãos de soberania (Estados Unidos – indicação pelo Presidente, crivo pelo Congresso).
Na Europa também o organismo da Comissão Europeia adotou um processo para verificar os comissários indigitados. Neste órgão os Estados-Membros designam os comissários e o Parlamento Europeu (PE) vai fazer o escrutínio aos candidatos para depois confirmar ou negar os comissários.
Cabe à comissão dos Assuntos Jurídicos do PE analisar as declarações de interesses financeiros de todos os comissários designados. Depois há um escrutínio político dos candidatos, que vão a uma ou mais audições públicas. No final há uma votação. Se obtiverem dois terços, são aceites como comissários.
Costa já enviou carta a Marcelo e Marcelo irá responder
Na quinta-feira, dia 5 de janeiro, o primeiro-ministro António Costa dirigiu uma carta ao Presidente da República a sugerir a criação de um mecanismo de verificação no processo de indicação de governantes, ideia que já tinha abordado no Parlamento.
Logo na sexta-feira, o Presidente da República prometia responder por escrito ao primeiro-ministro sobre esta proposta de mecanismo de verificação de potenciais governantes, que recusou ser ele a divulgar, e em relação à qual disse já ter feito diligências. Marcelo Rebelo de Sousa, que falava aos jornalistas na Fundação Champalimaud, em Lisboa, reafirmou, sobre este assunto, que “quem forma o Governo é o primeiro-ministro” e que a ponderação de questões de legalidade e de questões políticas deve ser feita antes de propor ao Presidente da República a nomeação de governantes”.
No Parlamento, durante o debate da moção de censura da IL, após ser interpelado pela deputada do PAN, Inês Sousa Real, o primeiro-ministro referiu-se a um circuito para “garantir maior transparência e confiança de todos no momento da nomeação” de membros do Governo, considerando que o atual sistema pode ser melhorado.
Logo nessa ocasião, frisou que falaria primeiro com Marcelo Rebelo de Sousa e que depois anunciaria o que vai propor “para que o circuito possa ser melhorado, porque pode ser melhorado”. “Eu não acho que possamos e devamos normalizar situações anómalas mesmo que sejam casos e casinhos. Têm que ser levados a sério e sobretudo tem que se dar confiança de que os levamos a sério”, disse.
Pouco depois, ainda na tarde da passada quinta-feira, o Presidente da República defendeu que um eventual sistema de escrutínio de possíveis nomeados para cargos governativos deve ser feito antes de o Governo propor os governantes, e não depois.
“A haver uma intervenção, e veremos de quem, como, para apurar problemas de legalidade, problemas de constitucionalidade ou problemas de impedimentos relativamente a quem vai ser nomeado para determinados cargos, como estes de que se falou, eu acho que deve ser antes de o Governo apresentar a proposta [ao Presidente da República]”, declarou o chefe de Estado.
Leyen defende criação de órgão de ética
Após a “explosão” do escândalo Qatargate em que recaem suspeitas de corrupção contra a ex-vice-presidente do Parlamento Europeu Eva Kaili, a presidente da Comissão Europeia defendeu a criação de um órgão independente de ética aplicável a todas as instituições europeias.
Lembrando que “há regras muito claras para todos os comissários” e que o executivo comunitário já tem o seu código de conduta e pública de forma transparente o registo de reuniões de membros do colégio com representantes de interesses, Von der Leyen recordou que, em março de 2022, já tinha proposta “a criação de um órgão de ética independente que abranja todas as instituições da União Europeia”, a ser estabelecido “com os mais elevados padrões”.
“Escrevi uma carta em março dirigida não só ao Conselho e ao Parlamento Europeu, mas também, por exemplo, ao Tribunal de Justiça Europeu, ao Banco Central Europeu, ao Tribunal de Contas, a todas as instituições. Para nós, é fundamental que tenhamos não só regras fortes, mas também as mesmas regras que cubram todas as instituições europeias, e que não permita qualquer tipo de exceções”, declarou a presidente do executivo comunitário.
“É uma questão de transparência, de regras muito claras, e todas as instituições europeias devem obedecer às mesmas regras que estabelecermos”, frisou.
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