Transparência salarial. Um instrumento para a igualdade de género (e atrair talento)
Considerar o salário um tema tabu pode estar a dificultar a igualdade salarial entre homens e mulheres, e a comprometer a atração de talento. Empresas dão passos. Bruxelas ultima directiva.
Durante décadas, o salário foi um dos ‘segredos mais bem guardados’ da sociedade. As empresas não revelavam o vencimento aos candidatos e os profissionais também não o partilhavam com os colegas, nem mesmo com os amigos mais próximos. Mas considerar o salário um tema quase tabu pode estar a dificultar alcançar a igualdade salarial entre homens e mulheres — e a comprometer a atração de talento –, alertam os especialistas. Algumas organizações já começaram a dar os primeiros passos, divulgando as faixas salariais nos anúncios de emprego. A Comissão Europeia tem em “fase de conclusão” uma proposta em matéria de transparência salarial, para garantir que mulheres e homens na União Europeia recebem remuneração igual por trabalho igual.
Carla Tavares, presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), não tem dúvidas sobre o impacto de uma maior transparência salarial no combate à desigualdade de género. “Ajuda a dissipar dúvidas sobre a desigualdade remuneratória entre mulheres e homens, combatendo assim, de forma mais eficaz e efetiva, os preconceitos em função do sexo nas práticas salariais.” Em Portugal, as mulheres ganham menos menos 13% do que os homens.
Desde 2020 que Portuguese Women in Tech (PWIT) lançou uma ferramenta com o objetivo de apoiar as mulheres do ecossistema tecnológico nacional através da transparência salarial. “Desde que a lançamos, a base de dados foi consultada por milhares de profissionais e recebemos emails e mensagens a agradecer a sua existência”, conta Inês Santos Silva, cofundadora da PWIT.
O “PWIT Salary Transparency Project” é uma base de dados salarial com diferentes perfis e cargos, para comparação e informação, no momento de negociação. A ideia é que, acedendo à informação de forma aberta e pública, todas as mulheres possam ter uma base de comparação e decidir mais de forma mais informada sobre valores e benefícios a negociar com a entidade empregadora.
“Estas profissionais procuravam obter informação para negociar os seus salários com mais confiança. Este último ponto é muito importante porque é, muitas vezes, apontado como um dos motivos da desigualdade salarial”, reforça Inês Santos Silva.
Margarida Costa, senior consultant da Michael Page, considera a transparência salarial um instrumento importante para combater a desigualdade salarial entre géneros e promover um mercado de trabalho mais justo e igualitário. “Apresentar os intervalos salariais ajuda, por um lado, a garantir que os perfis que desempenham o mesmo trabalho recebam remuneração equivalente, independentemente do género ou de outras características; e por outro, para quem está ‘job seeker’, terá visibilidade e acesso ao enquadramento salarial e benefícios praticados de acordo com a função e experiência para qual se candidata”, explica.
Apresentar os intervalos salariais ajuda, por um lado, a garantir que os perfis que desempenham o mesmo trabalho recebam remuneração equivalente, independentemente do género ou de outras características; e por outro, para quem está ‘job seeker’, terá visibilidade e acesso ao enquadramento salarial e benefícios praticados de acordo com a função e experiência para qual se candidata.
“A transparência salarial permite às pessoas trabalhadoras detetar, identificar e fazer prova de eventuais situações de discriminação em razão do sexo, podendo, inclusive, revelar a existência de preconceitos com base no sexo em sistemas de remuneração e classificação profissional que não valorizam, da mesma forma ou de forma neutra, o trabalho de envolvido por homens e mulheres, ou que não valorizam determinadas competências profissionais, apenas pelo facto de, na sua maioria, serem consideradas como sendo de natureza feminina”, defende Carla Tavares, presidente da CITE.
Desde 2019 que Portugal tem em vigor a Lei 60/2018, que visa assegurar a igualdade salarial entre homens e mulheres. Mas o país continua a registar um enorme gap no que toca às remunerações praticadas no mundo do trabalho. A diferença salarial entre homens e mulheres em Portugal é, atualmente, de 13%. Em 2021, essa diferença atingiu os 153 euros, em média. E entre os quadros superiores chegou mesmo aos 600 euros.
Ainda no mês passado, no âmbito da aplicação deste lei, a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) notificou 1.540 empresas com diferenças remuneratórias entre homens e mulheres para, no prazo de 120 dias, apresentarem planos de avaliação dessas mesmas diferenças. Em causa estão empresas com 50 ou mais trabalhadores que, em 2022, apresentavam uma desigualdade salarial igual ou superior a 5%.
A transparência salarial permite às pessoas trabalhadoras detetar, identificar e fazer prova de eventuais situações de discriminação em razão do sexo, podendo, inclusive, revelar a existência de preconceitos com base no sexo em sistemas de remuneração e classificação profissional que não valorizam, da mesma forma ou de forma neutra, o trabalho de envolvido por homens e mulheres, ou que não valorizam determinadas competências profissionais, apenas pelo facto de, na sua maioria, serem consideradas como sendo de natureza feminina.
No Índice Global de Disparidade de Género, o Fórum Económico Mundial coloca Portugal na 29.ª posição, num total de 146 países. A mesma organização que adverte para o facto de, a este ritmo, ser necessário mais de um século para eliminar as desigualdades de género no mundo.
Falamos de sexo, religião e política. Porque o salário continua a ser tabu?
Num inquérito sobre os temas considerados tabu para falar entre amigos, os salários foram a opção mais escolhida. Mais ainda do que opções como problemas matrimoniais, crenças religiosas, opiniões políticas, doenças mentais, consumo de drogas ou orientação sexual. Aki Ito, redatora na Business Insider, começou um experiência com base nestes resultados: propôs-se a revelar o seu salário aos seus colegas, amigos e familiares. Apesar de nunca o ter feito antes, exceto com aos seus pais, irmã e ex-companheiro, — “se tens mais de 30 anos o mais provável é que partilhes a minha hipocrisia” — Aki Ito revelou o seu salário a 50 colegas de profissão, amigos e fontes. “Contei a mulheres com quem saía, a companheiros de trabalho com quem nunca tinha falado antes.”
Ao longo da experiência, Aki Ito apercebeu-se de que os seus colegas de trabalho mais jovens estão muito mais à vontade do que ela para falar do tema. “Muitos deles contaram-me que partilhar, habitualmente, o seu salário com os outros, ao ponto de saberem os salários de quase todos os seus amigos. Para eles, falar do tema é totalmente normal.”
Para pôr à prova o nível de conforto destes jovens, perguntava-lhes se, ao saberem o seu salário, alguma coisa mudava na sua atitude com ela. Todos disseram que não, mas ficam contentes por sabê-lo. “Obviamente, fico com um pouco de inveja. Mas, se tu podes ganhar tanto, provavelmente eu também possa um dia. Tens um título que é dois ou três escalões superior ao meu e, pelo menos, mais cinco anos de experiência. É algo no que posso trabalhar e crescer”, disse-lhe uma jornalista que ganhava menos de metade que ela, durante a experiência.
Sandra Carvalho, diretora norte de recrutamento & seleção da Egor confirma a conclusão da experiência de Aki Ito. “As novas gerações valorizam muitos aspetos que as gerações anteriores não valorizavam de uma forma tão exponencial”, afirma. E dá como exemplo a publicação dos intervalos salariais nos anúncios de emprego, também forma de implementar a transparência salarial.
“O tempo é cada vez mais um bem precioso e o pragmatismo das novas gerações leva-os a questionar se faz sentido investirem tempo numa candidatura a uma empresa sobre a qual pouco sabem. A eficiência e o match são as palavras de ordem, e só se conseguem com transparência de ambas as partes. O investimento de tempo por parte do candidato é um fator muito importante, ainda mais patente na situação em que os recursos são escassos e o talento é cada vez mais difícil de atrair/ reter”, considere Sandra Carvalho, diretora norte de recrutamento & seleção da Egor.
Mas o velho tabu salarial pode estar em vias de desaparição, independentemente da geração. “A transparência salarial é uma exigência do mercado e não necessariamente geracional. A transparência facilita na fase inicial do recrutamento, permitindo alinhar expectativas entre as empresas e os candidatos. Deste modo, permite otimizar o processo e a seleção de oportunidades relevantes”, refere Margarida Costa, da Michael Page.
Uma opinião partilhada por Gonçalo de Salis Amaral, partner da Neves de Almeida HR Consulting. “A transparência salarial é uma exigência de todas as gerações, já que toca nos temas de justiça, equidade e objetividade, bem como na motivação de todos os colaboradores, independentemente, da sua idade”, diz.
Olhando, inclusive, para a atração e retenção de talentos, a senior consultant da Michael Page, acredita que a transparência salarial desempenhará sempre um “papel imperativo”, pois “existe uma clara visão do que se pode esperar a nível salarial, bem como as oportunidades de progressão”.
Empresas aumentaram comunicação sobre salários
A par de iniciativas como a base de dados salarial da PWIT, a folha de Excel de Teresa Pinho e Mariana Reis na área da comunicação e publicidade ou a plataforma Glassdoor para a indústria tecnológica, as empresas também estão a dar passos nesta matéria, implementando medidas internas para proporcionar maior transparência.
Quase 90% das organizações europeias dizem ter já aumentado a comunicação à volta dos seus programas de remuneração, uma vez que é algo que faz parte dos seus valores e da própria cultura empresarial. Outros fatores, como a confiança nos programas de remuneração (79%) e as expectativas dos trabalhadores (77%), também levaram as empresas a tornarem-se mais transparentes, revela o “Pay Clarity Survey 2022”, desenvolvido pela WTW.
Ainda assim, mais de um terço das empresas (38%) afirma ter preocupações legais sobre a partilha excessiva de informação sobre os salários, enquanto quase um quarto (23%) se retrai devido à complexidade administrativa.
A Comissão Europeia apresentou uma proposta em matéria de transparência salarial, para garantir que mulheres e homens na União Europeia recebem remuneração igual por trabalho igual. Carla Tavares garante que a proposta de diretiva está em “fase de conclusão”, estando a ser revistos os textos finais nas diferentes línguas dos países membros da União Europeia. “Não deverá faltar muito para que o texto final seja apresentado no Parlamento Europeu para votação”, adianta.
Para já, entre as empresas, divulgar as faixas salariais logo nos anúncios de emprego tem sido uma das medidas mais adotadas. O Teamlyzer, uma plataforma online dedicada ao mercado de IT em Portugal, anunciou recentemente que ia passar a exigir às empresas a divulgação do intervalo salarial nos anúncios de oferta de emprego.
O tempo é cada vez mais um bem precioso e o pragmatismo das novas gerações leva-os a questionar se faz sentido investirem tempo numa candidatura a uma empresa sobre a qual pouco sabem. A eficiência e o match são as palavras de ordem, e só se conseguem com transparência de ambas as partes.
Para isso, foi adicionado um job board à plataforma com obrigatoriedade de partilha salarial pelas empresas. A nova funcionalidade já está disponível na plataforma que conta com mais de 28 mil utilizadores e é uma condição essencial para as mais de 3.000 empresas inscritas poderem anunciar as suas ofertas de emprego e captar talento.
“No Teamlyzer continuamos a trabalhar para ser o ponto de referência onde os profissionais de TI obtêm toda a informação para tomar as suas decisões de carreira, seja para negociar um salário, candidatar-se a um novo emprego, preparar as entrevistas ou saber como é trabalhar nas empresas em Portugal”, explicava Rui Miranda, CEO da empresa, na altura.
Com a América do Norte a anunciar novos regulamentos em torno da divulgação de informações sobre a faixa salarial aos potenciais empregados, a Microsoft anunciou também que iria passar a incluir os intervalos salariais. A medida aplica-se, pelo menos para já, apenas às vagas disponíveis nos Estados Unidos da América.
Desafios a acautelar
A divulgação dos salários pelas entidades empregadoras pode também acarretar certos desafios que precisam de ser acautelados. Margarida Costa insere-os em dois planos: interno e externo. “No primeiro, a incoerência na fixação da remuneração gera sentimento de injustiça, desmotivação dos colaboradores, absentismo e consequentemente ao incremento da rotatividade. No plano externo, as organizações estarão expostas a uma interpretação da sua consolidação financeira. No mesmo sentido, o conhecimento de políticas salariais por parte do mercado poderá conduzir a perda de capital humano“, explica.
Já a Egor salienta que ser mais transparente na divulgação dos intervalos salariais não é o único ponto no qual a empresa deve ser transparente. “À transparência da range salarial, deve acrescentar também uma total transparência sobre as funções que a pessoa vai desempenhar, a identidade cultural da empresa, a sua metodologia de gestão, os planos de carreira entre outros fatores cada vez mais valorizados pelas novas gerações. Acreditamos que a transparência traz vantagens e não o contrário”, explica Sandra Carvalho.
Havendo boa fé e honestidade nos processos, a transparência, bem como a existência de regras claras e objetivas, não acarreta perigos, antes pelo contrário. A falta dela é altamente perigosa pelo descontentamento que produz, as dúvidas e desconfianças disseminadas, as perceções, erradas ou não, da existência de iniquidades e injustiças.
“Havendo boa fé e honestidade nos processos, a transparência, bem como a existência de regras claras e objetivas, não acarreta perigos, antes pelo contrário. A falta dela é altamente perigosa pelo descontentamento que produz, as dúvidas e desconfianças disseminadas, as perceções, erradas ou não, da existência de iniquidades e injustiças que levam à desmotivação, à falta de envolvimento e dedicação, à menor produtividade, à poluição do employer branding e, não raras vezes, à saída de talentos, usualmente, os mais relevantes”, resume o partner da Neves de Almeida HR Consulting.
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