Estafeta arrisca ver negado contrato de trabalho com a Uber

Tribunal tinha reconhecido contrato entre estafeta e Uber, mas plataforma diz que não foi ouvida. Processo arrisca voltar à estaca zero e, perante argumentos da Uber, juíza pode recusar esse contrato.

Numa decisão história, um tribunal português reconheceu, pela primeira vez, um contrato de trabalho entre um estafeta e a Uber. Mas não demorou até que a confusão se instalasse. A Uber fez saber que não tinha sido ouvida, o que, segundo os advogados ouvidos pelo ECO, abre a porta a que o processo volte agora à estaca zero. E, perante os argumentos que vierem a ser apresentados pela Uber, a juíza pode mesmo decidir que, afinal, não está em causa uma situação de trabalho dependente.

“A Uber Eats diz que não foi citada. Se não foi efetivamente citada, o que é expectável é que recorra da sentença e que o tribunal venha a determinar que, por força da impossibilidade do exercício do direito de defesa, se repita tudo“, salienta o advogado Gonçalo Pinto Ferreira, da sociedade Telles.

Por outras palavras, como os argumentos da Uber não chegaram a ser ouvidos pelo tribunal, o mais provável é que agora o processo volte ao início, para que esse direito de defesa seja assegurado, um entendimento que também a advogada Ana Barbosa, da Abreu Advogados, e a advogada Madalena Caldeira, da Gómez-Acebo & Pombo, defendem.

“No fundo, é repetir tudo“, sublinha a primeira. “Todo o processo pode ser dado sem efeito“, assinala a segunda.

Se o tribunal determinar que, sim, é mesmo preciso voltar à estaca zero, a Uber terá, então, oportunidade de apresentar os seus argumentos contra a presunção de um contrato de trabalho entre o estafeta e a plataforma, existindo a possibilidade de, desta vez, se concluir que não há uma relação de trabalho dependente.

“A Uber vai ter oportunidade de apresentar as suas provas e, com isso, pode afastar a presunção de existência de contrato de trabalho“, observa Madalena Caldeira.

“Na sentença [original], como a Uber não contestou, deram-se automaticamente como provados todos os factos apresentados pela Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), e isso permitia que se concluísse pela existência do contrato de trabalho. Agora é saber se as provas que a ACT apresentou vão sobreviver aos factos apresentados pela Uber“, explica a advogada, que deixa claro que a juíza não ficou de nenhum modo vinculada à decisão inicial, “porque os pressupostos agora serão diferentes”.

“É possível, sim, chegar a uma decisão diferente“, concorda Ana Barbosa, que atira que, neste momento, está, portanto, “tudo em aberto“.

Já Gonçalo Pinto Ferreira sublinha que “a prova negativa é mais difícil” – isto é, provar que não há um contrato de trabalho, como a Uber terá de fazer, é mais desafiante, do que mostrar indícios de laboralidade, como fez a ACT –, mas também este admite que a juíza não está vinculada à decisão inicial, pelo que não deverá ser condicionada de forma alguma por ela.

“Até ao trânsito em julgado das decisões, tudo pode acontecer. Enquanto houver uma decisão que seja objeto de recurso, está tudo em aberto“, afirma o advogado.

De notar que a Uber, já no momento em que indicou, através de um comunicado, que não tinha sido ouvido pelo tribunal, salientou que “muito provavelmente” a decisão em questão “não terá efeito“. Entretanto, o ECO questionou a plataforma, no sentido de saber se esta já pediu a nulidade da sentença, mas fonte oficial diz que “não comenta processos judiciais em curso“.

Cinco indícios levam tribunal a decisão histórica

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Na base deste processo histórico, está a alteração ao Código do Trabalho, que entrou em vigor a 1 de maio e veio abrir a porta a que os estafetas sejam considerados trabalhadores por conta de outrem das plataformas digitais, desde que sejam reconhecidos indícios de subordinação.

Por exemplo, se a plataforma fixar a retribuição ou tiver poder disciplinar, pode estar em causa um laço de subordinação.

Neste caso em concreto, e de acordo com a sentença a que o ECO teve acesso, o tribunal deu como provados cinco indícios de que haveria uma relação dependente entre o estafeta e a plataforma.

Assim, o juiz considerou haver um pagamento regular e periódico ao estafeta, destacou que a plataforma exerce o poder de direção e determina regras específicas, frisou que a plataforma controla e supervisiona a prestação da atividade, notou que a plataforma restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, e, por fim, sublinhou que a plataforma exerce poderes de exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta.

De notar que este processo teve origem numa inspeção da Autoridade para as Condições do Trabalho. No total, a ACT já enviou quase 900 de processos como este para o Ministério Público, sendo que “nem é certo que, nalguns casos, estes prestadores possam ter um interesse efetivo em ser considerados trabalhadores“, alerta o advogado Gonçalo Pinto Ferreira.

Esse tem sido um dos argumentos usados pelas plataformas digitais, que defendem que os estafetas apreciam a flexibilidade associada ao trabalho independente.

Entre os estafetas, há, sim, quem prefira continuar a passar recibos verdes às plataformas digitais, conforme chegou a defender o Movimento dos Estafetas.

Mas há também quem esteja a lutar pelo reconhecimento de um vínculo de trabalho dependente. Entre estes últimos, o movimento Estafetas em Luta tem estado em destaque, e o seu porta-voz, Marcel Borges, chegou a afirmar que a decisão em causa seria um “divisor de águas contra a precarização dos estafetas e de todos que trabalham com as plataformas digitais”.

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