Reintrodução do Serviço Militar Obrigatório retiraria mão-de-obra qualificada do mercado de trabalho

  • Joana Abrantes Gomes
  • 6 Abril 2024

A reintrodução do serviço militar obrigatório não resolveria escassez de pessoal nas Forças Armadas. Analistas alertam para impacto na economia ao retirar mão-de-obra qualificada do mercado laboral.

Depois de um século permeado por guerras, os “dividendos” da paz tornaram obsoleto o serviço militar obrigatório e reduziram a dimensão (e o orçamento) dos exércitos europeus. Contudo, a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, e, mais recentemente, a invasão russa da Ucrânia e o alargamento da NATO relançaram o debate em torno da reintrodução de um regime de conscrição em vários países da Europa, cujas Forças Armadas sofrem agora de uma carência aguda de efetivos.

Portugal não está a ser exceção. Por cá, a discussão surgiu na sequência de um artigo de opinião do Chefe do Estado-Maior da Armada, Henrique Gouveia e Melo, publicado na semana passada no jornal Expresso, no qual afirmou que pode vir a ser necessário “reequacionar o serviço militar obrigatório, ou outra variante mais adequada”, de forma a “equilibrar o rácio despesa/resultados” e “gerar uma maior disponibilidade da população para a Defesa”.

Embora Gouveia e Melo tenha esclarecido, entretanto, que rejeita modelos antigos do serviço militar obrigatório, defendendo antes uma “nova resposta” consensual entre o poder político e a sociedade para mobilizar população em situações limite, a sua posição inicial foi partilhada pelo Chefe do Estado-Maior do Exército, Eduardo Ferrão, que considerou que se justifica o estudo da reintrodução da medida, devendo ser “avaliada sob várias perspetivas”.

Estas declarações, a par com um inquérito da Sedes feito no início deste ano, que dava conta de que 47% das pessoas eram a favor do regresso do serviço militar obrigatório (numa amostra de 820 indivíduos), introduziram o tema na opinião pública portuguesa nas últimas semanas, num ano em que se cumprem exatamente duas décadas do fim do regime de conscrição no país.

No entanto, não se pode dizer que se trata de uma discussão generalizada na opinião pública portuguesa. O país foi a eleições em março, mas o tema não fez parte da campanha eleitoral nem constava nos programas dos partidos políticos.

“A agilização de um instrumento desta natureza implica um debate público muito alargado, com as várias dimensões das consequências e dos objetivos que se pretendem atingir”, assinala Ana Santos Pinto, investigadora de Defesa e Segurança Internacional da Universidade Nova de Lisboa, em declarações ao ECO.

Fazendo a comparação com outros países do continente europeu, existe um contexto sociocultural que justificou o regresso ao regime de conscrição, por exemplo, na Suécia, que reintroduziu o serviço militar obrigatório em 2018, e a Finlândia, que nunca deixou de o ter: ambos os países não tinham alianças militares e, não tendo Forças Armadas com as mesmas estruturas de Estados inseridos na NATO, precisavam de ter um mecanismo de reserva de população que pudesse servir em caso de ameaça externa.

No caso da Suécia, essa decisão permitiu um aumento do número de soldados (25 mil) e de reservistas (35 mil). É precisamente no plano do capital humano que a questão da reintrodução do serviço militar obrigatório voltou a colocar-se pelo governo alemão, com o ministro da Defesa, Boris Pistorius, a ter pedido ao seu ministério para “apresentar opções para um modelo de serviço militar, até 1 de abril, que seja ajustável e que possa contribuir para a resiliência da nação como um todo, mesmo a curto prazo, em linha com o nível de ameaça”, de acordo com a revista Der Spiegel.

Ainda que com diferenças significativas nos modelos aplicados, além da Suécia e da Finlândia, também a Noruega, a Dinamarca, a Letónia, a Lituânia, a Estónia, a Grécia – países-membros da NATO, sendo que a Turquia também está neste grupo –, a Áustria, Chipre e a Suíça têm serviço militar obrigatório.

Ou seja, a guerra na Ucrânia acordou os países europeus para a possibilidade de um ataque da Rússia a um país da NATO, mas também alertou para o que a investigadora Raquel Vaz Pinto, do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) da Universidade Nova de Lisboa, sinaliza como “o problema de fundo” das Forças Armadas tanto de Portugal, como de outros países da União Europeia (UE) ou da NATO, que é a escassez de pessoal.

“O que nós temos que discutir a fundo é isto: As nossas Forças Armadas têm muita dificuldade em conseguir captar pessoas. Porquê? Porque é que ser militar deixou de ser ou não é, hoje, uma opção de carreira para os jovens? É a questão remuneratória? É a questão da exigência? É a questão da segurança?“, questiona Raquel Vaz Pinto, considerando que é “contraproducente” associar este debate a um eventual regresso do serviço militar obrigatório.

Esta discussão à volta do serviço militar obrigatório, não obrigatório… associar as duas coisas é contraproducente. O que nós temos que discutir em termos de fundo é isto: As nossas Forças Armadas são Forças Armadas que têm muita dificuldade em conseguir captar pessoas. Porquê? Porque é que ser militar deixou de ser ou não é, hoje, uma opção de carreira para os jovens? É a questão remuneratória, é a questão da exigência, é a questão da segurança?

Raquel Vaz Pinto

Investigadora do IPRI-Nova

No final de 2023, as Forças Armadas Portuguesas tinham um efetivo total de 23.425 militares, um número significativamente abaixo do efetivo autorizado de 32.000. O último ano em que cumpriam este mínimo foi 2013, quando tinham 32.370 militares — dos quais 15.839 em regime de contrato ou de voluntariado e 16.531 dos quadros permanentes, de acordo com dados do Ministério da Defesa Nacional, citados numa investigação do Instituto Universitário Militar intitulada “O Serviço Militar Obrigatório — Perspetivas Futuras”, de 2017.

Essa investigação, aliás, dava conta de um decréscimo dos residentes do sexo masculino em Portugal a cumprirem o serviço militar obrigatório até este ser interrompido: em 1991, eram cerca de 50%, percentagem que baixou para 30% em 1999 e para apenas 5% em 2003, um ano antes do fim do regime de conscrição.

Mas o serviço militar obrigatório, hoje, coloca-se com um contexto muito diferente. “As pessoas, quando terminam o percurso escolar, e na eventualidade de existir uma conscrição, recebem uma remuneração em função do nível de escolaridade que têm. Ora, como nós agora temos a escolaridade obrigatória até ao 12.º ano, significa que o valor nunca é um valor proporcional a um vencimento no mercado [de trabalho] privado”, nota Ana Santos Pinto.

O rendimento é um aspeto que, segundo a antiga secretária de Estado da Defesa, tem de ser avaliado numa eventual reintrodução do serviço militar obrigatório. A base teria de ser, pelo menos, o salário mínimo nacional, mas é “muito difícil” antecipar os custos, porque tanto existiriam pessoas apenas com o 12.º ano, como pessoas com um curso superior.

Contudo, Ana Santos Pinto é categórica ao afirmar que um novo regime de conscrição não contribuiria para combater o problema da escassez de pessoal nas Forças Armadas. Aliás, levanta ainda outra questão: o impacto que o regresso da obrigatoriedade do serviço militar teria no desenvolvimento social e económico da sociedade.

Ao colocar uma pessoa no serviço militar obrigatório durante três meses, seis meses, um ano, significa que estamos a retirar essa mão-de-obra do mercado de trabalho ou das qualificações. Isso tem um impacto na economia“, sublinha, apontando ainda que o nível de preparação necessário, mesmo para uma guerra, não se faz em tão pouco tempo.

Um estudo do Instituto da Defesa Nacional de 2021 mostrava que os mais jovens eram o grupo etário mais desfavorável a um regresso ao regime de conscrição, ou seja, precisamente aqueles que são visados nesta discussão. Outro dado relevante do inquérito, que abrangeu 1.509 entrevistas, é que quanto maior a escolaridade, maior a opção pelo serviço militar voluntário.

Raquel Vaz Pinto, que foi uma das coordenadoras do inquérito, propõe fazer um novo estudo, não só voltando a fazer as mesmas perguntas para ter um termo de comparação, mas também incluindo um paralelo com outros países da NATO para perceber como é que nesses Estados – tendo em conta que cada um tem uma cultura militar e de Defesa própria — se lida com os problemas de captação e de retenção de recursos humanos nas Forças Armadas.

“Estes estudos seriam muito úteis para ajudar à própria decisão política ou ajudar a liderança política a compreender o que é que é preciso fazer do ponto de vista pedagógico para explicar ou para tentar acautelar um mundo que está totalmente diferente e ao qual nós vamos ter que reagir e nos adaptar”, frisa a investigadora, que, tal como Ana Santos Pinto, reconhece a necessidade de avaliar os custos que o regresso do serviço militar obrigatório teria para a economia, ainda mais sendo Portugal um país que está a ficar demograficamente envelhecido.

O caminho também não é pelos 2% do PIB para a Defesa

Entre os 31 (na altura) membros da NATO, 18 vão respeitar já este ano o compromisso assumido em 2014, na cimeira de Gales, de aumentar numa década o seu investimento em Defesa até aos 2% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo adiantou o secretário-geral Jens Stoltenberg, antes de uma reunião dos ministros da Defesa da organização em fevereiro.

Portugal, por seu lado, inclui-se ainda nos aliados com “caminho para trilhar” para atingir a meta dos 2% do investimento em Defesa — que na última cimeira da Aliança Atlântica, em Vilnius, passou a valer como o patamar mínimo e já não a meta de referência.

O cumprimento do patamar mínimo da NATO assume especial relevância num ano de eleições nos EUA, em que Donald Trump é candidato e insinuou que não aceitará defender nenhum aliado que seja atacado pela Rússia se não estiver a cumprir a meta dos 2% do PIB em investimento na defesa.

De acordo com o Orçamento de Estado para 2024, elaborado ainda pelo anterior governo, a despesa total consolidada prevista para a Defesa Nacional é de 2.850,1 milhões de euros, ainda abaixo dos 2% do PIB nacional, que corresponde a mais de 4 mil milhões de euros.

Ana Santos Pinto indica que é viável a alocação desta verba para o setor, implicaria é “uma realocação de recursos”. No entanto, também não seria por aqui que se resolveria o problema da escassez de pessoal nas Forças Armadas. “O indicador de 2% é absolutamente cego, porque 2% do PIB da Alemanha e 2% do PIB de Portugal é muito diferente. As necessidades da Polónia, de Portugal ou do Reino Unido são muito diferentes”, realçou.

O indicador geral dos 2%, segundo a investigadora da Universidade Nova de Lisboa, tem um outro critério: o dos 60/20/20 — 60% em recursos humanos; 20% para operação e manutenção; e 20% em investimento. “É muito mais importante como é que se gasta o dinheiro nestes 60/20/20 em termos de equipamento, em termos de investimento do ponto de vista tecnológico, do que propriamente o indicador dos 2%. A dimensão do serviço militar obrigatório só iria cair na percentagem maior dos recursos humanos, não na operação e manutenção, nem no investimento”, disse a antiga governante.

Do recém-empossado Executivo ainda não se conhecem as intenções para o setor. Mas, em outubro passado, num colóquio organizado pela comissão parlamentar de Defesa Nacional, a nova secretária de Estado da Defesa, Ana Isabel Xavier, contestou a meta do investimento dos 2% do PIB em Defesa.

É obsoleto o debate dos 2% do PIB. Em vez de gastar mais, é preciso gastar melhor“, afirmou então a ex-subdiretora-geral de Política de Defesa Nacional, que defendeu, em termos estratégicos, uma política em relação à presença cada vez mais agressiva da Rússia e da China nos países africanos de língua portuguesa, onde Portugal tem “interesses permanentes”.

O indicador de 2% é absolutamente cego, porque 2% do PIB da Alemanha e 2% do PIB de Portugal é muito diferente. (…) Portanto, este indicador geral dos 2% tem um outro critério, que é o critério dos 60/20/20: 60% em recursos humanos, 20% para operação e manutenção e 20% em investimento. Ora, é muito mais importante como é que se gasta o dinheiro nestes 60/20/20 em termos de equipamento, em termos de investimento do ponto de vista tecnológico, do que propriamente o indicador dos 2%.

Ana Santos Pinto

Ex-secretária de Estado da Defesa Nacional e investigadora de Defesa e Segurança Internacional na Universidade Nova de Lisboa

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