Corte na Ucrânia e inverno rigoroso podem aumentar preços do gás

A UE diz-se protegida face ao fim do fornecimento de gás russo via Ucrânia. Contudo, os preços subiram após a redução da oferta e um inverno mais frio pode trazer aumentos, afetando os consumidores.

Eram cinco da manhã do dia 1 de janeiro quando a fornecedora de gás russo, a Gazprom, anunciou que os fluxos de gás para a Europa através da Ucrânia haviam cessado, depois de décadas a percorrerem gasodutos construídos nos tempos da União Soviética. A interrupção foi ditada pela recusa da Ucrânia em renovar o acordo de trânsito de gás que estava até agora em vigor.

“Há mais de 25 anos, quando [Vladimir] Putin ascendeu ao poder na Rússia, mais de 130 mil milhões de metros cúbicos de gás eram fornecidos à Europa através da Ucrânia. Hoje, o trânsito de gás russo é zero. Esta é uma das maiores derrotas de Moscovo”, afirmou o presidente Ucraniano, Volodymyr Zelensky, em declarações no Telegram, citadas pelo jornal Ukrainska Pravda.

No primeiro dia do ano, o primeiro-ministro eslovaco, Robert Fico, veio alertar que será a União Europeia, e não a Rússia, a sofrer com o corte no fornecimento através da Ucrânia, relata o Politico. Já anteriormente, este governante havia alertado para possíveis prejuízos na competitividade dos países do bloco e para o potencial aumento dos preços da energia na Eslováquia, em particular.

Esta quinta-feira, o primeiro dia de negociação após o feriado de ano novo, os preços do gás reagiram em alta. Os preços de referência do gás natural na Europa (os futuros do gás natural TTF, para entrega em fevereiro) chegaram a subir mais de 4% durante a manhã, alcançando os 51 euros/MWh (megawatt-hora), o valor mais alto desde outubro de 2023. Já em dezembro os preços desta matéria-prima haviam atingido máximos do mesmo mês de 2023, pressionados por uma maior procura decorrente de um clima pouco favorável à produção renovável.

Mas o corte de fornecimento via Ucrânia não se tratou de uma interrupção inesperada: o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, já tinha anunciado que iria romper o contrato com a Rússia anteriormente. “O mercado já incorporou no preço esta situação [de interrupção]”, afere o analista da XTB Henrique Tomé. O mesmo desvaloriza a recente movimentação dos preços, sublinhando que estes “não dispararam após o fim do acordo”, pelo que “este acontecimento não parece que virá a contribuir para aumentar ainda mais as pressões sobre os preços na energia”. Contudo, “as questões em torno da oferta de gás podem sempre ser um catalisador para gerar novos períodos de volatilidade”, reconhece.

Por seu lado, o economista sénior do Banco Carregosa, Paulo Rosa, antecipa que “no curto prazo, é provável que os preços do gás TTF continuem pressionados em alta”, olhando ao lado da oferta. Pedro Silva, especialista na área da energia da Deco Proteste, acredita também que “esta restrição vai pressionar o mercado por algum tempo. Assim, a curto prazo, poderá existir um agravamento de preço”.

Inverno, alternativas e conflitos fazem tremer

Fatores que podem acentuar a subida do preço incluem um inverno mais rigoroso do que o esperado, o que aumentaria significativamente a procura de gás, assinala Paulo Rosa. Pedro Silva também vê o “rigor do clima” como um potencial fator desestabilizador. Os terminais de gás natural liquefeito (GNL) e novos gasodutos “podem não estar prontos para suprir um eventual aumento significativo da procura no curto prazo”, alerta Paulo Rosa.

A existência de alternativas de abastecimento mais ou menos imediatas para colmatar esta redução de fornecimento, assim como o preço a que possam ser negociadas, deverá também ter influência nos preços futuros da matéria-prima, assinala Pedro Silva. Embora o gás norte-americano seja uma alternativa e “considerado relativamente barato”, os seus preços já atingiram cerca de 4 dólares/MMBtu, tendo duplicado em pouco mais de seis meses, aponta ainda o economista sénior do Banco Carregosa.

Além disto, Paulo Rosa aponta que a intensificação das tensões geopolíticas, como conflitos que envolvam outros fornecedores, pode gerar mais incertezas no mercado.

O caminho passará sempre pela redução da dependência energética da União Europeia face ao exterior, apostando em recursos energéticos endógenos, mais e melhores interligações e melhorando a eficiência energética”, pontua o especialista da Deco Proteste.

Neste contexto, os consumidores de gás natural podem sentir na fatura eventuais aumentos nos preços de mercado desta matéria-prima. “É provável que os consumidores enfrentem aumentos nos preços da energia, uma vez que as empresas de energia tendem a repassar os custos mais elevados do gás”, afirma Paulo Rosa. Uma posição na qual Pedro Silva se revê: “Os consumidores portugueses que se encontrem em mercado liberalizado podem vir a ser afetados por revisões de preço nos seus contratos”. Uma solução mais imediata será a transição para o mercado regulado do gás, que há mais de 2 anos apresenta poupanças de até 50% face às tarifas praticadas no mercado liberalizado, aconselha o mesmo.

Os impactos no preço da eletricidade podem ser um problema adicional, visto que o gás natural é frequentemente utilizado na geração de energia elétrica, o que poderá resultar num aumento das tarifas de luz, acrescenta Paulo Rosa. “É sem dúvida um tema a seguir pelo risco que comporta”, concorda Pedro Silva.

Bruxelas garante fornecimento

Bruxelas já veio tranquilizar os mercados face à interrupção dos fluxos de gás via Ucrânia: “Devido a um trabalho de preparação e coordenação eficiente na região e além da mesma, não existem receios quanto à segurança de fornecimento“, lê-se numa nota de imprensa, partilhada na página da Direção-Geral de Energia da Comissão Europeia.

Na mesma nota, a Comissão dá conta que os níveis de armazenamento estão, para já, nos 72%, ligeiramente acima da média para esta altura do ano, que se cifra nos 69%. Em paralelo, o executivo europeu sublinha que as infraestruturas de gás europeias foram “significativamente” reforçadas com a capacidade de importação de gás natural liquefeito, desde 2022.

A UE possui atualmente níveis elevados de armazenamento de gás, que podem ajudar a amortecer os choques iniciais”, concede Paulo Rosa. Em paralelo, o aumento na oferta de GNL e a maior capacidade de importação de países como os EUA e o Qatar também podem contribuir para aliviar a pressão sobre os preços. O gás natural proveniente da Noruega também tem ajudado a reduzir a dependência do gás russo.

“Esperamos que o aumento do fornecimento de gás americano venha para a Europa, tal como foi mencionado pelo presidente [Donald] Trump”, sublinhou Zelensky também no Telegram, insistindo que “cooperação e ofertas máximas dos parceiros no mercado vão tornar os preços mais razoáveis”.

Apesar do clima de acalmia geral na Europa quanto ao fornecimento, a Moldávia apresenta-se como exceção. Enquanto a Áustria e a Eslováquia arranjaram fornecimentos alternativos, e a Hungria passou a fornecer-se através de uma ligação à Rússia via mar Negro, sobrou um país do grupo dos mais dependentes da rota ucraniana, a Moldávia, que está com maior dificuldade em desembaraçar-se face à interrupção e depois de acusações por parte da Rússia de falhas no pagamento.

O porta-voz do Governo da Moldávia, Daniel Voda, afirma que as reservas de gás do país são suficientes para o período do inverno, mas a energética local Tirasteploenergo aconselhou os clientes a usarem roupas quentes, protegerem as janelas com cobertores e cortinas grossos, e que usem aquecedores elétricos.

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