“Temos um ano para fazer o que ainda não foi feito” com os fundos do PRR, diz ministra da Justiça

Rita Júdice estreou-se na abertura do ano judicial. A tónica do discurso foi para o crime de violência doméstica. "Sei o que fazer para que Justiça seja reformada: resolver os problemas um a um".

Rita Alarcão Júdice – naquela que foi a sua estreia como ministra da Justiça na cerimónia de abertura do ano judicial – escolheu, no seu discurso, elencar um conjunto de medidas que estão ou estarão no terreno brevemente. O novo regime de confisco de bens, o combate aos expedientes dilatórios, a criação de um grupo de trabalho para melhorar a celeridade processual, a digitalização dos tribunais financiada pelos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), a alteração das regras de juízes ao Supremo Tribunal de Justiça, a assessoria aos tribunais ou a revisão das regras dos advogados oficiosos. Leia aqui os discursos.

Na cerimónia, que decorreu esta segunda-feira, no Supremo Tribunal de Justiça, não faltaram os protestos dos funcionários judiciais que, à porta do evento, contra a proposta de revisão da carreira.

Muitas pessoas pensam que a violência doméstica é apenas uma questão familiar, e até se envergonham de serem vítimas, o que as leva a sofrer em silêncio. Mas a violência doméstica não é uma questão familiar. É um crime, e dos mais graves, que precisa de ser denunciado, investigado, reprimido e, acima de tudo, evitado.

Rita Alarcão Júdice

Ministra da Justiça

E Rita Alarcão Júdice não deixou de o referir: “É uma forma democrática e legítima de protesto. Mas os Oficiais de Justiça já tiveram provas da determinação e da boa-fé do Governo em resolver os problemas da classe nos últimos meses: no aumento do suplemento de recuperação, decidido e pago logo em 2024, na revisão do Estatuto Profissional, em curso, e no recrutamento de quase 600 novos profissionais em apenas seis meses. Os funcionários judiciais sabem que têm na Ministra da Justiça uma aliada. Mas uma aliada não é alguém que distribui dinheiro público na proporção do ruído ou do número de notícias. É alguém que conhece o valor do seu trabalho, que move montanhas para que os tribunais tenham computadores, sistemas informáticos, ar condicionado, segurança, elevadores, rampas de acesso, salas onde não chova”, disse.

Mas, mais do que todas estas matérias – que mereceram e merecem a atenção deste Executivo – a tónica do discurso foi para o crime de violência doméstica. Com ênfase na palavra ‘crime’. Começando o seu discurso com uma homenagem pública a Alcina Cruz, que há quatro dias foi degolada e morta pelo marido, no Barreiro, à frente dos seus filhos menores, de 6 e 14 anos. “O que temos a dizer aos filhos de Alcinda Cruz? Nada do que aqui se diga vai salvar a vida desta mulher, que tinha dois filhos para educar e ver crescer. Mas o que tem a Justiça a dizer a estes filhos, aos avós, aos tios, aos primos, aos amigos, aos professores dos filhos, aos vizinhos, a outras mulheres vítimas de violência doméstica, a todos nós que vimos as notícias? A queixa que Alcinda Cruz apresentou em 2022 foi arquivada no ano seguinte. As palavras bonitas sobre a Justiça já foram todas inventadas e já foram todas ditas. Encaremos então as palavras duras”, avisou a ministra. “Muitas pessoas pensam que a violência doméstica é apenas uma questão familiar, e até se envergonham de serem vítimas, o que as leva a sofrer em silêncio. Mas a violência doméstica não é uma questão familiar. É um crime, e dos mais graves, que precisa de ser denunciado, investigado, reprimido e, acima de tudo, evitado”. Rematando que “Alcinda Cruz é a grande ausência, e o grande silêncio, nesta sala e nesta cerimónia”.

Abertura Ano judicial. HUGO AMARAL/ECO

Porém, a ministra não deixou igualmente de referir que “também muitas vítimas de crimes económicos e financeiros ficam com as vidas desfeitas. Também o Estado, e, por conseguinte, todos nós, cidadãos que pagam impostos, somos vítimas colaterais de tais crimes”, assumindo que a criminalidade económica e financeira é uma ameaça ao desenvolvimento socioeconómico do Estado e que “retira, direta e indiretamente, recursos, não só porque os subtrai da economia, como também porque exige meios ao erário público para ser investigada”. No seguimento destas palavras, a ministra assumiu que o trabalho que reformula o instituto da perda alargada de bens, conhecido como “confisco” de bens obtidos pela via da corrupção estará pronto este mês. E que, paralelamente, vão criar um grupo de trabalho que se vai debruçar sobre matérias de promoção da celeridade processual e de combate aos expedientes dilatórios. “Falamos, especificamente, da fase da instrução no processo penal, do reforço dos poderes do juiz na gestão processual e de outras alterações ao Código de Processo Penal – por exemplo, em matéria de recursos”.

Digitalização na Justiça e o PRR

Rita Júdice recordou ainda que o PRR da Justiça só permite que os fundos sejam utilizados em projetos de digitalização. “Não os enjeitamos: a Justiça precisa de ser modernizada, atualizada e equipada. Não me posso resignar a ouvir, como ouvi no Funchal, uma conservadora dizer que as conservatórias não têm correio eletrónico há mais de um ano”, disse. E resumiu: “O que temos feito?”. Num projeto PRR, em articulação com a Região Autónoma da Madeira e o IGFEJ, foram entregues 110 computadores aos funcionários do Instituto de Registos e Notariado da Madeira, distribuídos cerca de 5.000 computadores a magistrados e a auditores de Justiça. Foi desenvolvido o e-Tribunal, que serve magistrados, advogados e as secretarias dos tribunais. No Ministério da Justiça, desde a equipa governativa aos organismos, “todos estamos muito atentos à execução do PRR. Temos agora um ano para fazer o que ainda não foi feito. A Justiça não é apenas os Tribunais. A Justiça de que os cidadãos precisam inclui os tribunais, os registos, os centros educativos, os estabelecimentos prisionais, a investigação criminal, a formação de magistrados”, disse a ministra.

Falou ainda da tramitação eletrónica do inquérito no processo penal. “É uma medida quase invisível, mas que tem grande impacto na vida das secretarias dos Tribunais. Entrou em vigor há um mês”, disse. Segundo dados avançados ainda no discurso, neste período, deram entrada quase sete mil peças processuais e foram feitas 22 mil notificações sem papel. Mas não é só a poupança de papel que nos move. É o tempo que se poupa, podendo fazê-lo com comunicações seguras e fidedignas. Num mês, poupámos 238 dias de trabalho de um Oficial de Justiça: são mil e 665 horas, ou seja, oito meses de trabalho. É tempo que pode ser alocado a outras tarefas, também úteis e necessárias. Poupa-se tempo, ganha-se eficiência e celeridade”.

Sei o que fazer para que a Reforma da Justiça não tenha resultados: é fazer anúncios de grandiosos planos estratégicos. E também sei o que fazer para que a Justiça seja reformada: resolver os problemas um a um, mesmo que não sejam imediatamente percetíveis para o cidadão.

Rita Alarcão Júdice

Ministra da Justiça

Os recados políticos de Rita Júdice

A titular da pasta da Justiça não deixou de fora os recados, assumindo e relembrando que a política de Justiça é definida pelo Governo. Ou seja: a gestão, a administração, os investimentos, a afetação de recursos, as prioridades legislativas e orçamentais cabem a quem foi eleito para governar, sujeitando-se ao debate, à discórdia, à negociação e ao escrutínio final dos eleitores.

“O Ministério da Justiça exerce as suas competências, toma as decisões que lhe parecem mais adequadas e sujeita-se ao escrutínio técnico e político. É uma das regras do jogo democrático: decisores políticos gerem os recursos públicos e são avaliados, politicamente, pelo mérito das suas decisões”, disse. “Aos tribunais o que é da aplicação da Justiça, ao Governo o que é da Política de Justiça.”

E sublinhou: “Sei o que fazer para que a Reforma da Justiça não tenha resultados: é fazer anúncios de grandiosos planos estratégicos. E também sei o que fazer para que a Justiça seja reformada: resolver os problemas um a um, mesmo que não sejam imediatamente percetíveis para o cidadão”, disse.

No final do seu discurso, não deixou de fazer uma homenagem a uma das mulheres com lugar de relevo na Justiça Portuguesa. “Em 2024, perdemos uma das melhores: Joana Marques Vidal, antiga Procuradora-Geral da República, cuja morte não vem esbater o legado de independência, dignidade e de trabalho que nos deixou. Que o seu exemplo nos inspire a mudar a história de Alcinda Cruz com que iniciei esta intervenção e a darmos o melhor de nós a favor da Justiça do nosso país”, concluiu.

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