Pedidos de nulidade, idas ao wc sem autorização e muitos raspanetes da juíza. Assim foi a primeira sessão de julgamento da Operação Marquês
Mais de dez anos depois da detenção de José Sócrates, arrancou esta quinta-feira o julgamento do processo Operação Marquês. Antigo primeiro-ministro fez jus à alcunha de "animal feroz".
Uma manhã agitada mas que de pouco valeu. Durante mais de uma hora, o primeiro dia de julgamento do maior processo da justiça portuguesa, a Operação Marquês, pautou-se por um confronto entre, de um lado do ringue, o advogado de Sócrates e o próprio José Sócrates e, do outro, a juíza presidente do coletivo, Susana Seca. Objetivo? A defesa do principal arguido, o ex-primeiro ministro acusado de 22 crimes, que quer (e bem tentou) à força toda travar o início do julgamento.
Mais de dez anos depois da detenção que surpreendeu o País, arrancou esta quinta-feira, no Campus de Justiça, o julgamento do processo Operação Marquês que tem como principal arguido o antigo primeiro-ministro José Sócrates, que está acusado de 22 crimes – três de corrupção, 13 de branqueamento de capitais e seis de fraude fiscal.
Estão em causa 117 crimes, incluindo corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal, pelos quais serão julgados os 21 arguidos neste processo. Para já, estão marcadas 53 sessões que se estendem até ao final deste ano, devendo no futuro ser feita a marcação das seguintes. Durante este julgamento serão ouvidas 225 testemunhas chamadas pelo Ministério Público e cerca de 20 chamadas pela defesa de cada um dos 21 arguidos.
O empresário e amigo do antigo primeiro-ministro, Carlos Santos Silva, é o arguido com mais crimes imputados pela acusação do Ministério Público, respondendo por 23 crimes, contra os 33 iniciais, entre eles um de corrupção passiva de titular de cargo político, um de corrupção ativa, 14 de branqueamento de capitais e sete de fraude fiscal qualificada.
Entre o rol de arguidos estão ainda o ex-banqueiro do extinto Banco Espírito Santo, Ricardo Salgado, que responde por três crimes de corrupção ativa, um dos quais de titular de cargo político, e oito crimes de branqueamento de capitais.
Ricardo Salgado já respondeu em tribunal num processo extraído da Operação Marquês, tendo sido condenado por abuso de confiança a oito anos de prisão efetiva, uma pena cujo cumprimento ficou condicionado à avaliação da condição de saúde do ex-banqueiro, diagnosticado com Alzheimer.
Outro dos arguidos já condenados em processos extraídos do processo principal é Armando Vara, ex-ministro de António Guterres e ex-administrador da Caixa Geral de Depósitos, que no processo principal vai responder por um crime de corrupção passiva de titular de cargo político e um crime de branqueamento de capitais.
Vão ainda responder perante o coletivo liderado por Susana Seca dois ex-administradores da extinta Portugal Telecom, Zeinal Bava e Henrique Granadeiro, Rui Horta e Costa, ex-administrador do empreendimento de luxo no Algarve Vale de Lobo, o empresário luso-angolano Helder Bataglia, o primo de Sócrates, José Pinto de Sousa, a ex-mulher do antigo primeiro-ministro, Sofia Fava, assim como o ex-motorista do antigo governante, João Perna.
Como foi o dia 1 do julgamento?
Pedro Delille, advogado do antigo primeiro-ministro, pediu que fosse decidido o requerimento que apresentou no dia anterior a solicitar a suspensão do julgamento, criticando o facto de a juíza não ter decidido juntar a este processo um outro – o “mini” Marquês – em que Sócrates consta acusado de três crimes de branqueamento de capitais.
No total foram três requerimentos e inúmeras reclamações e pedidos de nulidade – incluindo a tentativa de afastar a juíza – por várias questões processuais formais. Mas se, no início, a juíza manteve a calma e compostura, a meio da manhã decidiu manter a ordem na sala: “Quem preside ao tribunal coletivo sou eu, não é o senhor!”, disse em tom agressivo e professoral. Logo de seguida, José Sócrates sorria.

Perante isto, a juíza decide ordenar que os atos processuais “que manifestamente e abusivamente possam embaraçar ou protelar os trabalhos” podem levar a advertimentos ou, eventualmente, “à retirada da palavra”.
“Vamos ficar muito claros quanto a isso. Não é o senhor doutor que decide quando fala nem é o arguido que decide quando fala”, diz a magistrada, dirigindo-se a Pedro Delille, advogado de Sócrates. Susana Seca, em tom de raspanete, avisou que não vai “compactuar com os instrumentos que atrasam o andamento do processo. O senhor doutor não pode desrespeitar o tribunal coletivo!”, diz a juíza, protagonizando o momento mais tenso da manhã.
Mas o episódio mais insólito acabou por ser a saída de Sócrates da sala de audiência (quando a sessão começara apenas há cerca de meia hora) para ir à casa de banho, sem pedir autorização. Mas esta saída não foi logo notada. Ao questionar o seu advogado sobre o paradeiro do cliente, a juíza fica visivelmente incomodada e diz: “Pediu autorização para sair da sala?”, questionou Susana Seca. Regressado à sala, Sócrates pediu para prestar declarações mas o pedido foi recusado. “Não, este não é o momento. Tem de se sentar como os restantes. Tem de se sentar e aguardar o momento. Neste momento, o tribunal não lhe dá a palavra”, disse a juíza. Esta frase foi repetida em simultâneo com a insistência de Sócrates, em jeito de desobediência. “A senhora juíza não me dá a palavra, é isso? O tribunal não me dá a palavra e ainda me adverte?”, questionou Sócrates.
Já fora da sala de audiências, José Sócrates, acompanhado de agentes da PSP, reforçou que o comportamento da presidente do coletivo de juízes foi o de alguém com um “complexo de autoridade”. ” A juíza vai mostrando a sua completa parcialidade”, acrescentou, sublinhando que todas as magistradas à frente do processo estão em exclusividade e que isso cria “um problema muito sério” em relação ao processo, por estar a “exercer uma tutela administrativa sobre um processo judicial”.
Da parte da tarde, outro embate. Agora com o advogado de defesa de Sofia Fava, ex-mulher de Sócrates, que chegou atrasada à sala de audiência. Filipe Baptista pediu a palavra logo no recomeço da sessão da tarde para apresentar um requerimento de nulidade do acórdão da Relação de Lisboa de 25 de janeiro de 2024, que recuperou então o essencial da acusação do Ministério Público e pronunciou a maioria dos arguidos para julgamento, revertendo a decisão de Ivo Rosa, de abril de 2023. “Este é o único momento adequado para o fazer”. Mas a juíza responde: “pode ser feito por requerimento escrito. Não vai fundamentar. Vai apresentar por escrito”. O advogado questionou: “vai começar sem apreciar esta questão?”. Susana Seca mostrou-se inflexível: “Vamos começar”. O advogado concluiu: “Gostava que ficasse registado em ata que a juíza me impediu de exercer os direitos de defesa”.

E o que disseram as outras defesas?
A segunda sessão do julgamento, que teve início já passava das 14h30 no Campus de Justiça, ficou marcada pela intervenção das defesas dos vários arguidos, mas algumas abdicaram desse direito e remeteram-se ao silêncio. Foi o caso da advogada de Carlos Santos Silva, da sua companheira Inês do Rosário e da empresa XLM que optou pelo não tecer nenhuma palavra nas exposições introdutórias. “Carlos Santos Silva prescinde de exposições introdutórias e Inês do Rosário igualmente”, disse Paula Lourenço.
Também os advogados dos arguidos Helder Bataglia, Rui Horta e Costa – representados por Rui Patrício – e Diogo Gaspar Ferreira – representado por João Medeiros – optaram por não fazer exposições introdutórias.
Em sentido contrário, e usando da sua palavra, a defesa do arguido Joaquim Barroca, vice-presidente do grupo Lena, sublinhou que o seu cliente foi acusado 11 anos depois do início do processo e essa “delonga” processual não pode ser “imputada aos arguidos, que se estão a defender de factos e crimes graves”.
Assumiu que pretende demonstrar que o Ministério Público “errou profundamente”, nomeadamente por ter colocado em causa os contratos alcançados com o Governo, como a construção de um troço importante do TGV. “A corrupção não aconteceu e o Ministério Público não conseguirá demonstrar isso”, disse a advogada Ana Pais.

“O Grupo Lena foi descrito como um grupo periférico que viveu em torno de Sócrates como base da sua sobrevivência – isso não traduz a realidade”, alerta a defesa.
A advogada repudiou ainda a inclusão de inspetores da Autoridade Tributária no leque de testemunhas arroladas pelo Ministério Público para o julgamento. “Todos aqui desempenham o seu papel processual. Desta defesa o tribunal pode contar com uma luta judicial e só esta. É precisamente pelo respeito das normas jurídicas que se entende não poderem ser ouvidos como testemunhas os inspetores da Autoridade Tributária. Não será por ser prática nestes casos que se torna necessariamente legal ouvir pessoas que desempenharam funções de órgão de polícia criminal”, disse.
A advogada refutou o crime de corrupção, bem como a prática dos crimes de branqueamento e fraude fiscal.
Outro dos críticos da atuação da Justiça portuguesa foi o advogado de Ricardo Salgado – que devido ao seu estado de saúde não marcou presença na sessão. Francisco Proença de Carvalho afirmou que a defesa do ex-banqueiro “está amarrada pela ausência física e cognitiva do cliente” e que Salgado está incapaz de participar num julgamento por motivo de doença.
“O arguido nem sabe que hoje começa o julgamento“, sublinhou o advogado que espera que esta exposição introdutória sirva “para chamar a comunidade à atenção” da doença do seu cliente. “Está ali uma pessoa física despojada da sua capacidade cognitiva, dos seus sentimentos, da sua memória”, acrescenta.
Uma coisa é certa: acredita que se o seu cliente não se chamasse Ricardo Salgado ele não estaria naquela sala de julgamento esta quinta-feira. “É com desilusão profunda que não tenha havido uma mente jurídica humana que se desviasse desta tese de que só se estiver morto é que poderá não ser julgado”, remata.
Mas o advogado foi mais longe e assegurou: “aqui [no tribunal] já não se fará Justiça, seja ela qual for”. A defesa de Salgado considera também que todos os arguidos entram na sala de julgamento a “perder cinco ou seis a zero”, mas que espera que a justiça “equilibre o jogo”. Francisco Proença de Carvalho pediu ainda a absolvição do ex-banqueiro.

Já a defesa de Zeinal Bava garantiu que o ex-CEO da TAP não era funcionário público, e nesse ponto centrou a sua estratégia. “O MP imputa a Zeinal Bava ser funcionário público e por isso estarmos perante um crime de corrupção. Isto é um tema jurídico. Seria funcionário público por ser funcionário de uma empresa detentora de uma concessão pública de telecomunicações. Mas não há nada que se tenha passado na PT Comunicações, passou-se na PT SGPS. E esse é um tema que vai orientar muito a nossa perspetiva”, referiu José António Barreiros.
Isto porque o Ministério Público classifica, à data, Bava como funcionário público para lhe imputar o crime de corrupção. Mas o empresário é ainda acusado de um crime de fraude fiscal e um de branqueamento de capitais. Bava, acusado de agir em prol de Ricardo Salgado, para impedir a OPA da Sonae à PT “não praticou nada de ilícito. Se a OPA foi derrotada, tal decorreu pela lógica do mercado”.
José António Barreiros defendeu ainda que os interesses do seu cliente não estavam alinhados com as intenções do Grupo Espírito Santo. “Tornamos claro desde a instrução e na contestação, e está documentado, que o engenheiro Zeinal Bava entendia que a participação na Vivo era estratégica. Se isto compactuava com os interesses privados, não era a função dele. A Telefonica espanhola, que tinha uma vontade histórica de participação, foi fazendo propostas. O mercado funcionou”, sublinhou.
Assim, a defesa de Bava considera que “não há alinhamento convergente entre os interesses de Zeinal Bava e os interesses do Grupo Espírito Santo. É isso que pretendemos provar”. Sobre a aquisição de papel comercial do GES, reforça que “durante todo o mandado de Bava, tudo quanto foi adquirido em matéria destes títulos foi pago com vantagens para a PT”.

Outra das defesas que marcou posição no julgamento foi a de Henrique Granadeiro. A advogada Dirce Rente focou-se no bloqueio da OPA da Sonae à PT, em que o antigo administrador da companhia é acusado de ter influenciado a decisão para favorecer os interesses de Ricardo Salgado e do BES.
Segundo a advogada, o projeto não avançou, porque não era “meritório” e os “acionistas assim não o decidiram”. “O projeto visava que a Sonae se tornasse no maior player das redes fixas, com uma quota acima dos 65%”, referiu. Dirce Rente garantiu que a tese acusatória assenta num “manifesto desconhecimento do mercado e da forma como são geridas as empresas”.
“A acusação reduz Henrique Granadeiro a um mero executante de Ricardo Salgado por relações de amizade que justificam tudo. Quem conhece Henrique Granadeiro sabe que veio de origens humildes, que honra as origens de onde veio, procura fazer o bem e nunca se deixaria corromper por pretensas relações de amizade. O retrato que a acusação pretende fazer passar de Henrique Granadeiro não podia estar mais longe da verdade”, disse.
Sobre a venda das participações da PT na Vivo para depois investir na brasileira Oi, a defesa assegurou que o BES votou a favor da venda, mas Henrique Granadeiro votou contra. “Faz pouco sentido para alguém que está acusado de estar na dependência de Ricardo Salgado”, refere. E concluiu com o pedido de absolvição do arguido, que responde no julgamento da Operação Marquês por cinco crimes: “Todos estes factos farão que a acusação não colha. E todos estes factos sustentam uma só decisão: a absolvição do Dr. Henrique Granadeiro”.
O advogado de Sofia Fava (ex-mulher de Sócrates) diz que é uma violência “sujeitar a julgamento” a sua cliente, uma arguida sobre a qual, na sua ótica, não há prova que a ligue aos crimes dos quais é acusada, admitindo apresentar um requerimento ao tribunal. “Sofia Fava vem acusada de branqueamento. Branqueamento de quê? Um empréstimo? Os capitais do banco? Contrato de prestação de serviços? Acusada de falsificação?”, interroga.
A tarde terminou com a identificação formal dos arguidos, encerrando este animado primeira dia de trabalhos, mas que pouco trouxe de substancial.
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