Ricardo Salgado já tem estatuto de maior acompanhado
O Ministério Público pediu, em outubro, o estatuto de maior acompanhado para Salgado, no âmbito do caso BES/GES, tendo em conta o estado de saúde do ex-banqueiro, que sofre de Alzheimer.
Ricardo Salgado, o ex-homem forte e líder do Banco Espírito Santos (BES), agora arguido em vários processos judiciais, incluindo o do BES/GES, não sabe dizer o seu nome (nem o de familiares diretos), não consegue descrever o que faz durante o dia, nem expressar qualquer necessidade básica, como fome, frio ou calor. Não sabe dizer onde vive, onde está, andar sozinho na rua, orientar-se no tempo, dizer os dias da semana, os meses, estações do ano ou as horas.
Perante este cenário revelado em várias perícias, o tribunal judicial da comarca de Lisboa, do juízo cível de Cascais, decidiu atribuir o estatuto de maior acompanhado a Ricardo Salgado, tendo nomeado como acompanhante a sua mulher, Maria João Salgado. O Tribunal fixou também a data de 1 de janeiro de 2019, como a data em que as medidas de acompanhamento se tornaram convenientes. O Ministério Público (MP) tinha pedido esse mesmo estatuto, em outubro, tendo em conta o estado de saúde do ex-líder do BES – que sofre da doença de Alzheimer em estado avançado – e a forma como decorreu a identificação do ex-banqueiro no primeiro dia de julgamento de um dos mais complexos processos da justiça portuguesa.
Assim, segundo a sentença datada de 8 de Julho deste ano e a que o ECO/Advocatus teve acesso, Ricardo Salgado “encontra-se desorientado na sua pessoa, não sabe dizer a sua idade atual, nem data de nascimento”. Bem como não consegue cozinhar as suas refeições, nem tomar medicamentos, realizar a sua higiene pessoal, escolher a roupa ou vestir-se, fazer compras, executar
tarefas domésticas, marcar ou deslocar-se a consultas médicas. Para tudo isto, precisa de ajuda. Já não consegue assinar (só sabe escrever o seu nome), não reconhece o dinheiro, não é capaz de realizar pagamentos e desconhece o valor económico dos bens, embora consiga efetuar contas simples.
Posto isto, não tem capacidade para gerir os seus rendimentos no dia-a-dia, nem de entender o conteúdo de documentos, mesmo que sejam explicados. “Em consequência da doença que sofre, o beneficiário mostra-se impossibilitado de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos pessoais de administrar a sua pessoa ou os seus bens, casar, procriar, perfilhar ou adotar;
e cuidar e educar os filhos ou os adotados. Bem como de deslocar-se no país ou no estrangeiro, estabelecer relações com quem entender, elaborar testamento ou elaborar diretiva antecipada de vontade ou procuração de cuidados de saúde”, diz a sentença.
A decisão sublinha ainda que, em 2023, “na sequência de observação médica, registou novamente agravamento significativo do estado de saúde global, nomeadamente, agravamento da memória e outras funções cognitivas, alteração do comportamento, da marcha e desequilíbrio com risco de quedas, episódios de incontinência, perda progressiva de autonomia para realização de
atividades básicas da vida diária (ex: higiene pessoal, alimentação, administração da medicação)”.
E relembra que, na sequência de avaliação neuropsicológica, concluiu-se que Salgado “preenche critérios de diagnóstico de demência de gravidade moderada, mantendo-se, pelas suas características, no contexto da doença de Alzheimer. “Em consequência do que se torna indispensável nomear-lhe alguém que o represente juridicamente nos direitos pessoais e atos da vida corrente de forma permanente, administrando ainda os seus bens”, diz ainda o juíz.

O antigo presidente do BES, Ricardo Salgado, é o principal arguido do caso BES/GES e responde em tribunal por 62 crimes, alegadamente praticados entre 2009 e 2014. Entre os crimes imputados contam-se um de associação criminosa, 12 de corrupção ativa no setor privado, 29 de burla qualificada, cinco de infidelidade, um de manipulação de mercado, sete de branqueamento de capitais e sete de falsificação de documentos.
Além de Ricardo Salgado, estão também em julgamento outros 17 arguidos, nomeadamente Amílcar Morais Pires, Manuel Espírito Santo Silva, Isabel Almeida, Machado da Cruz, António Soares, Paulo Ferreira, Pedro Almeida Costa, Cláudia Boal Faria, Nuno Escudeiro, João Martins Pereira, Etienne Cadosch, Michel Creton, Pedro Serra e Pedro Pinto, bem como as sociedades Rio Forte Investments, Espírito Santo Irmãos, SGPS e Eurofin.
A defesa de Ricardo Salgado, em outubro, congratulou-se que o MP tenha “reconhecido a situação” de incapacidade do ex-banqueiro, mas disse que o estatuto de maior acompanhado não resolve o problema. “Não altera nada”, vincou o advogado Francisco Proença de Carvalho, observando que, apesar de o MP ter proposto o estatuto de maior acompanhado para Ricardo Salgado, este “já tem a sua cuidadora informal”, que é a mulher, Maria João Salgado, a qual “é uma pessoa absolutamente essencial” para o seu cliente.
O que é o estatuto de maior acompanhado?
O regime do acompanhamento tem como objetivo “garantir o bem-estar, a recuperação, o pleno exercício dos seus direitos e a observância dos deveres do adulto, focando-se na pessoa e não apenas no seu património”.
Cabe ao tribunal decidir se é adequado o acompanhamento ou não, podendo ser requerido, independentemente de autorização, pelo Ministério Público, mas também pelo próprio ou, mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto ou por qualquer parente sucessível. Mas a autorização do beneficiário pode ser retirada pelo tribunal.
Em termos de prazos, o acompanhamento pode ser requerido no decorrer do ano anterior ao da maioridade do beneficiário, para que possa produzir efeitos a partir desta, ou a todo o tempo, na maioridade. “No caso de ser requerido na menoridade, as responsabilidades parentais ou a tutela manter-se-ão até haver decisão transitada em julgado sobre o acompanhamento”, explicam.
Será o acompanhado ou o seu representante legal que escolhem o acompanhamento. Mas, na falta de escolha, o acompanhamento é atribuído à pessoa que melhor proteja o interesse do beneficiário, havendo uma ordem de referência não taxativa. Por norma, o cônjuge, os descendentes e os ascendentes não se podem escusar ou ser exonerados. A lei prevê que pode ser designado mais do que um acompanhante em simultâneo repartindo as funções. “O acompanhante tem o dever de se abster de agir em situação de conflito de interesses com o acompanhado”, referem.
“O acompanhamento deve limitar-se ao mínimo indispensável. Porém, em função de cada caso e independentemente do pedido, pode o tribunal atribuir ao acompanhante as funções associadas aos seguintes regimes: o exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir; a representação geral ou representação especial com indicação expressa das categorias de atos para que seja necessária; a administração total ou parcial de bens; a autorização prévia para a prática de determinados atos ou categoria de atos e intervenções de outro tipo, que estejam devidamente explicitadas”, lê-se.
Entre as funções do acompanhante está o dever de assegurar o bem-estar e a reabilitação do acompanhando, “mantendo de forma permanente o contacto com ele”. No mínimo, as visitas devem ser mensais ou outra periodicidade considerada apropriada pelo tribunal. “O processo de acompanhamento tem natureza urgente e aplica-se-lhe as regras da jurisdição voluntária, com as necessárias adaptações”, explicam.
O pedido efetuado ao Ministério Público deve ser acompanhado de toda a documentação disponível relativamente ao beneficiário e ainda da respetiva família. Quando instaurada pelo Ministério Público, o adulto beneficiário de acompanhamento está isento de custas processuais. O tribunal revê as medidas de acompanhamento de acordo com a periodicidade que constar da sentença e, no mínimo, de cinco em cinco anos.
A primeira sessão de julgamento com Salgado presente, a 15 de outubro de 2024
No dia 15 de outubro, pela manhã, Ricardo Salgado chegava ao Campus de Justiça, em Lisboa. Acompanhado pelos advogados de defesa e pela mulher, Maria João Salgado, que, com o braço, amparava aquele que em tempos foi chamado de homem forte do BES o “Dono Disto Tudo”. O caminho, de pouco mais de 100 metros do carro até à porta do tribunal, foi demorado, custoso e com uma enchente de jornalistas, câmaras de televisão e mesmo um lesado do BES a bloquear a sua passagem. Já só quando estava prestes a chegar à porta do Edifício A do campus é que a polícia, impávida até então, decidiu agir e desimpedir o caminho.
Já dentro da sala de audiências, o arguido foi questionado pela juíza Helena Susano, a juiz presidente do coletivo. Salgado foi identificado e, questionado sobre o nome da sua mãe, respondeu “pode ser”. De seguida disse que foi banqueiro, mas não se recordou do nome da rua onde reside, em Cascais.
A juíza questionou ainda o arguido: “Quer que o julgamento decorra sem a sua presença?”. Repetindo por duas vezes e falando mais alto, insistiu: “Quer estar aqui?”. Maria João Salgado advertiu a magistrada que Ricardo Salgado não compreende o que lhe quer dizer. “Acho que é pacífico que o meu cliente tem a doença que tem. Não podemos fazer mais”, explicou o advogado de defesa, Francisco Proença de Carvalho.
Minutos depois, Francisco Proença de Carvalho pediu à juíza para falar com o seu cliente. Neste momento, perguntou ao seu cliente se queria ficar ou sair. A resposta de Ricardo Salgado foi “sim”. Salgado acabou mesmo por sair da sala de audiência, acompanhado por Maria João Salgado.
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