Da imigração à saúde, TAP e lei laboral, Marcelo e Montenegro cavam trincheiras

Presidente da República puxa Governo ao centro e quer linhas vermelhas com o Chega, mas não pode dissolver o Parlamento. Primeiro-ministro segue o próprio caminho e responde à letra.

Tomada de posse do XXIV Governo Constitucional no Palácio da Ajuda - 02ABR24
Tomada de posse do Governo de Luís Montenegro, no Palácio da AjudaHugo Amaral/ECO

Da imigração às urgências na saúde, passando pela privatização da TAP ou a reforma da lei laboral, a tensão entre Marcelo e Montenegro é cada vez maior e vai marcar um final de mandato quente para o Presidente da República, que está diminuído nos seus poderes. Ou seja, não pode usar a bomba atómica e dissolver o Parlamento nem mesmo se o Orçamento do Estado para 2026 for chumbado, o que parece, para já, uma miragem, tendo em conta os acordos entre o Executivo e o Chega, segundo a análise de vários politólogos consultados pelo ECO.

No primeiro embate constitucional, Marcelo já fez o um a zero, derrotando Montenegro, ao ter conseguido que a maioria dos juízes do Palácio de Ratton declarasse a inconstitucionalidade de cinco normas da lei dos estrangeiros. Como consequência, o Presidente da República vetou o diploma, devolvendo-a à Assembleia da República.

Mas o Governo já prepara o contra-ataque para forçar a lei a passar novamente pelo Parlamento com a ajuda do Chega. O “não é não” de Luís Montenegro esfumou-se nos últimos meses com as pontes entre a Aliança Democrática (AD) – coligação PSD/CDS, que suporta o Governo, e o partido de André Ventura, desde logo na lei dos estrangeiros, mas também no IRS, duas propostas viabilizadas graças ao Chega.

E agora o maior partido da oposição que roubou o lugar ao PS lança o repto para um pacto na lei laboral, caso o Governo deixe cair propostas polémicas como os limites à amamentação até aos dois anos de idade ou o fim do luto gestacional.

Estas tensões mais recentes resultam da forma distinta como o Presidente lê a forma como o Governo está a lidar com o Chega, com entendimentos, pontes de contacto. E o Presidente já demonstrou desconforto, porque prefere entendimentos com o PS.

Bruno Costa

Doutorado em Ciência Política, professor da Universidade do Minho

Marcelo já acendeu o sinal vermelho, puxou o travão de mão a este tipo de entendimentos e quer guinar o Executivo para o centro, preferencialmente para acordos com os PS de José Luís Carneiro ao estilo de bloco central. Mas o carro segue o seu próprio caminho, sem viragens, e à velocidade de Montenegro, que sabe que o Chefe do Estado “não pode dissolver a Assembleia da República e convocar eleições antecipadas, por se encontrar no último semestre do seu mandato”, segundo Bruno Costa, especialista em Ciência Política e professor da Universidade do Minho.

“Estas tensões mais recentes resultam da forma distinta como o Presidente lê a forma como o Governo está a lidar com o Chega, com entendimentos, pontes de contacto. E o Presidente já demonstrou desconforto, porque prefere entendimentos com o PS, prefere entendimentos de bloco central e esta lei dos estrangeiros é um claro exemplo disso”, entende o politólogo.

Alinhando pelo mesmo diapasão, Paula Espírito Santo, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), da Universidade de Lisboa, considera que “Marcelo Rebelo de Sousa está a mostrar algum desconforto pelo modo como o Governo está a fazer acordos com o partido de André Ventura”. “No caso da lei dos estrangeiros, por exemplo, já disse que o Executivo será depois julgado pelo povo”, salienta a politóloga.

Antes dos juízes se terem pronunciado pela inconstitucionalidade de cinco normas da lei dos estrangeiros, que limita o reagrupamento familiar de imigrantes no território nacional, o Chefe do Estado já tinha indicado que discordava politicamente do diploma e da forma como o processo foi conduzido sem audição de um conjunto de entidades. Por isso, “a maioria será oportunamente julgada por isso”, avisou. “Uma afirmação que noutras circunstâncias (que não as de final de segundo mandato) poderia ter implicações politicamente mais graves” aponta André Azevedo Alves, diretor do mestrado em Políticas Públicas da Universidade Católica Portuguesa.

O Tribunal Constitucional acabou por dar razão a Marcelo ao chumbar cinco das sete normas da lei da Assembleia da República. Marcelo vetou imediatamente o diploma dos estrangeiros, devolvendo-o ao Parlamento. Mas o Governo não se tem coibido de responder na praça pública. Tanto o primeiro-ministro como o ministro da Presidência foram bastante “assertivos”, demonstrando “que não se encontram numa situação de dependência política face a Marcelo”, segundo a análise de André Azevedo Alves, do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. “Por isso, não ficaram calados perante as suas manifestações públicas de hostilidade contra o Governo”, acrescenta o politólogo.

“Há uma coisa que fica muito clara: nós não vamos desistir do nosso objetivo, mesmo que haja alguma correção da redação da lei em virtude da pronúncia do Tribunal Constitucional”, afirmou Luís Montenegro, ainda antes de conhecido o acórdão do Tribunal Constitucional O ministro da Presidência, António Leitão Amaro, também já tinha sustentado que “independentemente da decisão, a imigração será mais regulada”. “Podemos ajustar a rota, mas o destino será o mesmo”, asseverou.

“Face à ampla maioria existente no Parlamento favorável às alterações, a nova lei dos estrangeiros deverá avançar ainda que, como salientou Luís Montenegro ainda antes da decisão do Tribunal Constitucional, procedendo às alterações necessárias para que seja encontrada uma solução jurídica e uma redação que seja aceite pelo Tribunal Constitucional. Não seria politicamente compreensível que o Governo recusasse na substância das alterações, mesmo sendo necessário proceder a ajustamentos”, considera André Azevedo Alves.

Noutros dossiês, o chefe do Estado também se tem mostrado particularmente interventivo seja na reforma da lei laboral com alertas sobre eventuais inconstitucionalidades seja na privatização da TAP com preocupações sobre o plano estratégico para a companhia.

“Marcelo está em final de mandato, limitado nos seus poderes — não pode dissolver a Assembleia da República — e não tem os níveis de popularidade que já teve. Ele quer continuar a ser ouvido, a ser tido em consideração e já percebeu que isso não acontece com o atual Governo. Marcelo sente que perdeu a capacidade de influência junto do Governo. Por isso, tem falado mais”, segundo com Bruno Costa, da Universidade do Minho.

Em relação ao anteprojeto da reforma da lei laboral, que o Governo enviou aos parceiros sociais, Marcelo já sinalizou que é preciso saber se as alterações em causa “cabem na constituição”. “Se houver dúvidas, leva-se ao Tribunal Constitucional”, defendeu. De lembrar que em cima da mesa estão mudanças polémicas como os limites ao horário reduzido para amamentação até aos dois anos de idade ou o fim do luto gestacional, duas matérias que têm o chumbo já garantido por todos os partidos da oposição, da esquerda à direita, inclusivamente do Chega, único que poderia conseguiu viabilizar a proposta sem o apoio das restantes bancadas.

O partido de Ventura já desafiou a AD a constituir um grupo de trabalho para aprimorar as alterações e assim poder chegar a um consenso que leve à aprovação da reforma da lei laboral. Mais um entendimento que deixa “Marcelo desconfortável”, salienta Paula Espírito Santos.

As ameaças de veto e de pedidos de fiscalização preventiva para o Tribunal Constitucional não se ficam por aqui. Também em relação à reforma do Estado e, especificamente, à extinção da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), os alarmes soarem em Belém. Se tiver dúvidas sobre um ponto que seja”, Marcelo irá pedir ao Governo “para repensar”. “Já aconteceu várias vezes”, lembrou. “Posso não vetar logo, mas, se o Governo insistir, posso chegar a vetar”, insistiu o Presidente da República.

O Presidente quer marcar uma posição mais forte porque está em final de mandato e não tem o poder de dissolução da Assembleia da República, está limitado nos seus poderes. Por outro lado, muitos candidatos a Belém também já estão em campanha, o que faz elevar o tom da discussão.

André Azevedo Alves

Instituto de Estudos Políticos, Universidade Católica Portuguesa

“Se achar que o diploma como um todo é uma boa ideia, se vier para promulgação do Presidente da República e é possível que venha, eu promulgo sem dúvida nenhuma, sem angústia nenhuma. Se tiver dúvidas sobre um ponto que seja desse diploma, que seja muito importante, peço ao Governo para repensar, já aconteceu várias vezes”, indicou.

“O Presidente quer marcar uma posição mais forte porque está em final de mandato e não tem o poder de dissolução da Assembleia da República, está limitado nos seus poderes. Por outro lado, muitos candidatos a Belém também já estão em campanha, o que faz elevar o tom da discussão”, considera André Azevedo Alves.

Quanto à TAP, antes de promulgar o decreto de reprivatização da companhia aérea, Marcelo pediu esclarecimentos adicionais ao Governo e fez questão que isso transpirasse na comunicação social. “Neste caso, o Presidente tem apelado a um maior detalhe, mais prestação de contas quanto ao plano estratégico para a TAP, medidas de médio e longo prazo e isso não está claro, porque o Presidente quer garantir que se mantêm as ligações às comunidades portuguesas, ao mundo lusófono e gostaria que isso ficasse mais evidente no cadernos de encargos”, segundo a avaliação do politólogo Bruno Costa.

Marcelo Rebelo de Sousa terá dúvidas sobre interpretação de certas cláusulas, nomeadamente as operações sobre o património da companhia, alteração da estrutura do capital no contexto do concurso e questões relacionadas com insolvência da TAP SGPS.

O Governo aprovou no passado dia 10 de julho a privatização da TAP até 49,9% do capital, num processo que “incorpora a abertura ao capital de um investidor ou mais até 44,9% e 5% aos trabalhadores”, segundo explicou o primeiro-ministro Luís Montenegro aquando do anúncio.

O plano para resolver o problema das urgências é outro dos pontos críticos para Marcelo Rebelo de Sousa e que o Presidente faz questão de apontar como uma das falhas do Governo.

Paula Espírito Santo

Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), da Universidade de Lisboa

“O plano para resolver o problema das urgências é outro dos pontos críticos para Marcelo Rebelo de Sousa e que o Presidente faz questão de apontar como uma das falhas do Governo”, nota Paula Espírito Santos. Belém já disse, em declarações ao Público, que iria esperar pelo “fim do verão” para eventualmente formular um juízo sobre a crise nas urgências, 12 meses depois de o assunto não ter sido resolvido e de se manterem fechados de forma alternada alguns serviços de urgência obstétrica e pediátrica, sobretudo aos fins de semana.

Há um ano, Marcelo referiu, numa visita ao Hospital de Santa Maria, em Lisboa, que iria esperar por uma resposta do Governo o mais rapidamente possível, sobre o funcionamento das urgências. “Criei expectativas muito altas. Perante a gravidade dos problemas, ao falar-se de um plano de emergência, cada um de nós deseja que a resposta seja o mais rápido possível”, sublinhava o Presidente, para concluir que tinha ouvido a ministra Ana Paula Martins a dizer que esperava que aquilo que se vivia em 2024 não fosse vivido em 2025. Em cima disto, há ainda o teste à gestão dos incêndios.

“Sem-abrigo e dificuldades no acesso à habitação” serão outros dos temas que irão marcar o discurso de final de mandato do Presidente da República, considera ainda Bruno Costa. “São preocupações centrais para os cidadãos que Marcelo não vai querer deixar passar despercebidas. Será também uma forma de tentar conquistar níveis de popularidade mais elevados”, segundo o politólogo Bruno Costa. “E uma forma também de deixar a sua marca no final do seu ciclo político”, completa Paula Espírito Santo.

A avaliação vai chegar em cima da rentrée política e em plena véspera de entrega da proposta de lei do Orçamento do Estado para 2026, a 10 de outubro, e das autárquicas, logo no domingo seguinte, dia 12, o que vai marcar a campanha eleitoral e o pontapé de saída para o debate orçamental. Será um final de verão e início de outono bem quentes a marcar o final de mandato do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que terá de passar o testemunho ao futuro Chefe do Estado em março do próximo ano.

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