Governo quer “facilitar reconhecimento de contrato” entre estafetas e intermediários
Lei do trabalho já hoje admite que contrato seja reconhecido entre estafeta e intermediário, mas só depois de ser afastado potencial vínculo com plataforma. Governo quer simplificar esse processo.
O Governo quer simplificar (e facilitar) o processo de reconhecimento de contrato de trabalho entre os estafetas e os intermediários. Esta é uma das várias mudanças às regras do trabalho nas plataformas digitais, que o Executivo propõe no âmbito da reforma da lei laboral.
Desde maio de 2023 que o Código do Trabalho abre a porta a que os estafetas sejam considerados trabalhadores dependentes, sendo que esse mecanismo de presunção de laboralidade tem sido aplicado, de forma automática, em relação às plataformas digitais.
Ou seja, à partida (e por defeito) têm sido estas as consideradas potenciais empregadoras, sendo a sua relação com os estafetas a primeira a ser avaliada pelos tribunais.
A lei já prevê, contudo, que tanto a plataforma digital pode invocar que a atividade é prestada não a si, mas um intermediário, como o próprio estafeta pode alegar que é trabalhador subordinado de um intermediário (em vez da plataforma). Nesses casos, cabe “ao tribunal determinar quem é a entidade empregadora“.
Esse processo pode, no entanto, vir a ficar mais ágil. Entre as mais de 100 mudanças ao Código do Trabalho propostas pelo Governo aos parceiros sociais, está a revogação dessas duas normas. Além disso, nos indícios de subordinação, deixa de estar referida diretamente a plataforma digital, passando a constar a expressão “beneficiário da atividade”.
Os advogados ouvidos pelo ECO indicam, assim, que a presunção de laboralidade poderá deixar de ser aplicada de forma automática em relação às plataformas digitais, facilitando o reconhecimento de contratos entre os estafetas e os intermediários.
A presunção de laboralidade deixa de operar automaticamente em relação à plataforma digital, podendo aplicar-se igualmente ao intermediário.
“Verifica-se uma alteração na terminologia utilizada: em vez de distinguir expressamente entre plataforma digital e intermediário, a lei passa a referir-se genericamente ao ‘beneficiário da atividade’. Deste modo, tanto a plataforma digital como o intermediário poderão ser considerados beneficiários da atividade“, começa por sublinhar Madalena Caldeira, sócia responsável pelo departamento de Direito do Trabalho do escritório de Lisboa da Gómez-Acebo & Pombo.
“A presunção de laboralidade deixa, assim, de operar automaticamente em relação à plataforma digital, podendo aplicar-se igualmente ao intermediário, desde que este se configure como o efetivo beneficiário da atividade”, acrescenta a mesma.
Madalena Caldeira defende que as alterações propostas permitirão, deste modo, ao Ministério Público intentar, diretamente, ações de reconhecimento de trabalho de trabalho contra intermediários, ao contrário do que acontece hoje (neste momento, é preciso afastar, primeiro, o vínculo com a plataforma e só depois é avaliada a relação com o intermediário).
A proposta vem facilitar o reconhecimento de contratos de trabalho entre estafetas e intermediários, ao permitir que a presunção de laboralidade incida diretamente sobre o intermediário sempre que estejam preenchidos os requisitos legais.
Também Rita Frade Pina, associada coordenadora do departamento de Laboral do Escritório de Faro da PRA – Raposo, Sá Miranda & Associados, tem essa leitura da proposta do Governo. “A nova redação permite que, desde o início do processo, se possa alegar que a relação de trabalho existe com o intermediário, e não necessariamente com a plataforma, cabendo ao tribunal apurar, com base nos indícios, qual a entidade efetivamente empregadora”.
Na visão desta advogada, esta solução “responde a uma realidade operacional comum, em que a atividade dos estafetas é frequentemente intermediada por empresas ou entidades subcontratadas“.
Já a advogada Márcia Martinho da Rosa, da MMR Legal Service, avisa que, na prática, o resultado será a análise das “ligações factuais entre todas e cada uma das envolvidas“. “O julgador terá, em princípio, condições para proceder ao devido reconhecimento do que é efetivo. Reconhecer-se-à a relação material que se demonstrar factualmente comprovada e que sustentará a decisão judicial da natureza e dos envolvidos da relação”, afirma.
Governo quer adaptar indícios
Quando, durante o último Governo de António Costa, foram fixadas, pela primeira vez, as regras para o reconhecimento de contratos de trabalho a estafetas, escolheu-se criar um mecanismo autónomo (isto é, um novo artigo no Código do Trabalho) dedicado especificamente a esse tipo de relação laboral.
O Executivo de Luís Montenegro quer, contudo, alterar essa dinâmica e propõe que se passe a incluir os estafetas no mecanismo de presunção de contrato de trabalho aplicável à generalidade do mercado de trabalho, acrescentando aos indícios de subordinação gerais outros adaptados a essa realidade concreta.
“Os indícios de laboralidade aplicáveis aos trabalhadores das plataformas digitais passam a ser os gerais, com acréscimo do indício relativo à existência, ou não, de autonomia na prestação dos serviços, ponderada em função de fatores próprios do contexto digital“, esclarecem as advogadas Patrícia Perestrelo e Rosário Mexia Alves, da Abreu Advogados.
Os indícios de laboralidade aplicáveis aos trabalhadores das plataformas digitais passam a ser os gerais, com acréscimo do indício relativo à existência, ou não, de autonomia na prestação dos serviços, ponderada em função de fatores próprios do contexto digital.
Em concreto, os indícios especificamente pensados para o trabalho nas plataformas digitais são os seguintes: a determinação dos períodos de trabalho ou ausência pelo beneficiário da atividade, restrições à liberdade de aceitação de tarefas pelo prestador de atividade, limitação do recurso a subcontratados ou substitutos pelo prestador de atividade, e escolha dos clientes pelo beneficiário da atividade.
O Governo defende, porém, que esses indícios só são aplicáveis, quando o estafeta presta atividade à plataforma em causa de forma regular e quando, pelo menos, 80% da sua atividade está ligada a esse beneficiário (ou seja, está em situação de dependência económica).
Segundo as referidas advogadas da Abreu Advogados, essa presunção continua, porém, a poder ser afastada, “o que confirma que a intenção do legislador não é criar uma presunção absoluta, impossível de contrariar”.
De notar que, sem consenso nos tribunais, a ministra do Trabalho, Maria do Rosário Palma Ramalho, já tinha sinalizado a vontade de rever o mecanismo de presunção de contrato de trabalho. Todas estas mudanças estão, contudo, ainda a ser discutidas na Concertação Social. Terão, depois, de ir ao Parlamento, onde o Governo, sem maioria absoluta, terá de encontrar apoio na oposição (previsivelmente, no Chega) para que a reforma da lei do trabalho passe do reino da intenção para a realidade.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Governo quer “facilitar reconhecimento de contrato” entre estafetas e intermediários
{{ noCommentsLabel }}