As respostas que Carlos Costa ainda não deu
O governador do Banco de Portugal está debaixo de fogo, depois de terem sido divulgados novos documentos que provam que tinha conhecimento da situação financeira do BES antes do colapso do banco.
Pouco mais de dois anos depois, Carlos Costa volta ao Parlamento para responder sobre a sua atuação no caso do Grupo Espírito Santo (GES). Desta vez, a polémica gira em torno da reportagem da SIC, o “Assalto ao Castelo”. O castelo, entenda-se, é o Banco de Portugal, descrito como “uma fortaleza protegida pelas muralhas do segredo”.
Na reportagem, o governador do Banco de Portugal é acusado de ter tido acesso a informação que lhe teria permitido afastar Ricardo Salgado muito antes da derrocada do GES, no verão de 2014. Em causa, cinco conjuntos de documentos:
- Um relatório feito por técnicos do Banco de Portugal, datado de 8 de novembro de 2013, que analisa a atuação de Ricardo Salgado, José Maria Ricciardi, Amílcar Morais Pires e Paulo José Lameiras Martins e onde se conclui haver indícios suficientes para retirar a idoneidade ao presidente do antigo Banco Espírito Santo (BES);
- Um outro relatório elaborado por técnicos do Banco de Portugal, com os resultados de uma avaliação feita pelo supervisor, entre março de 2011 e abril de 2012, à situação financeira do GES. Os técnicos apuraram falhas graves nas áreas de auditoria interna e compliance de 20 sucursais e filiais do BES;
- Uma análise elaborada pelo BPI, concluída em janeiro de 2013 e entregue em mão a Carlos Costa em maio desse ano, onde é feito um balanço da situação financeira do GES e que conclui que o grupo estava falido desde 2011, com uma dívida de 5,8 mil milhões de euros;
- A ata de uma reunião onde foi aprovado um empréstimo de 60 milhões de euros, concedido pela Caixa Económica Montepio Geral à Rioforte, que foi assinada por uma pessoa que não esteve presente nessa reunião;
- A troca de correspondência entre o Banco de Portugal e o regulador financeiro do Dubai, relativamente à operação da Espírito Santo Bankers Dubai, a filial do BES nesse país. As cartas trocadas entre os dois reguladores provam que o Banco de Portugal sabia que esta filial servia de ponte para a transferência de capitais de Angola para financiar empresas do GES, sem que tenha atuado relativamente a este assunto.
Os documentos divulgados pela SIC levantaram novas (e muitas) questões, às quais Carlos Costa já se mostrou disponível para responder, ao pedir para ser ouvido no Parlamento. Se vier mesmo a ser chamado, estas são algumas das perguntas a que terá de responder.
Por que não retirou a idoneidade a Salgado mais cedo?
Esta é a principal questão que já vem sido feita desde agosto de 2014: porque é que o Banco de Portugal não afastou Ricardo Salgado mais cedo?
No relatório datado de 8 de novembro de 2013, os técnicos do Banco de Portugal pediam “uma atuação tempestiva, caso esta se venha a revelar necessária”. Na prática, pediam que o regulador retirasse a idoneidade a Ricardo Salgado, que só abandonou definitivamente o BES em julho de 2014.
"No final de 2013, o Banco de Portugal não dispunha de factos demonstrados que, dentro do quadro jurídico então aplicável, permitissem abrir um processo formal de reavaliação de idoneidade dos membros do órgão de administração BES.”
Contudo, em dezembro de 2014, na comissão parlamentar de inquérito à queda do universo GES, Carlos Costa omitiu as conclusões deste relatório. “No final de 2013, o Banco de Portugal não dispunha de factos demonstrados que, dentro do quadro jurídico então aplicável, permitissem abrir um processo formal de reavaliação de idoneidade dos membros do órgão de administração BES, em especial do presidente da sua comissão executiva”, garantiu.
Afinal, o governador tinha, ou não, informações que chegassem para afastar Salgado? Este relatório tinha, ou não, essas informações? Se tinha, por que optou por não afastar Salgado? E por que decidiu Carlos Costa, na comissão de inquérito, omitir as conclusões deste relatório?
"O dever só é exequível se for acompanhado de poder. E o poder está aquém daquilo que eu gostaria. Se me perguntar ‘se pudesse, faria?’, digo-lhe: há muito tempo.”
Carlos Costa já deu resposta a algumas destas questões. Logo depois de a reportagem da SIC ter ido para o ar, o Banco de Portugal emitiu um comunicado com alguns esclarecimentos. Mas, antes disso, recorde-se o que o governador já tinha dito na comissão de inquérito feita em dezembro de 2014: “Na prática, a legislação atual dá-nos poder de pressão, mas não nos dá aquilo que era mais importante, que é poder de imposição. Estamos com um dilema. É que nem sempre o que se deve, se pode. O dilema é que o dever só é exequível se for acompanhado de poder. E o poder está aquém daquilo que eu gostaria. Se me perguntar ‘se pudesse, faria?’, digo-lhe: há muito tempo”.
Os técnicos do Banco de Portugal fazem uma interpretação diferente da do seu governador, considerando que o regulador não precisava de mais poder legal para agira, se assim o tivesse desejado. Isto porque o retirar da idoneidade é uma avaliação de ordem preventiva, e não repressiva, pelo que, se o regulador tivesse uma dúvida razoável sobre a idoneidade da pessoa em causa, deveria “recusar o registo ou cancelá-lo consoante o caso”.
Carlos Costa tem, assim, de esclarecer mais uma questão: tinha, ou não, o poder de que precisava para afastar Salgado?
No comunicado emitido a 1 de março último, o Banco de Portugal dá uma pista sobre aquela que deverá voltar a ser a resposta de Carlos Costa quando se sentar no Parlamento: “Eventuais decisões do Banco de Portugal que impeçam o exercício de funções profissionais estão sujeitas a pressupostos e limites legais específicos e, simultaneamente, às regras gerais de procedimento, comprovação e fundamentação aplicáveis ao exercício da autoridade pública”.
O que fez em relação às deficiências de controlo detetadas?
O outro relatório elaborado por técnicos do regulador diz respeito a uma avaliação, feita entre março de 2011 e abril de 2012, à situação financeira do GES. Os técnicos apuraram falhas graves nas áreas de auditoria interna e compliance de 20 sucursais e filiais do BES. Mais concretamente, identificaram deficiências de controlo interno, com dois casos especialmente graves: o BES Angola e o BES Vénétie, em Paris, onde foram detetadas 28 deficiências.
Quando lhe foram comunicadas estas falhas, o Banco de Portugal enviou cartas às administrações dos bancos, a quem sugeriu medidas corretivas e a quem solicitou relatórios de progresso dessas medidas.
Falta saber: Quais são as filiais e sucursais em causa? Que medidas sugeriu o Banco de Portugal? Recebeu os relatórios de progresso que solicitou? Houve alguma alteração nas práticas “pouco transparentes ou mesmo opacas” destes bancos, depois de as administrações terem sido notificadas? Se não tiver havido progressos nem alterações a estas práticas, foi aplicada alguma sanção, ou aberto algum processo contra estas filiais e sucursais?
Por que colocou o relatório do BPI na gaveta?
A avaliação feita pelo BPI dá conta de uma situação financeira do GES bem mais negra do que aquela que o grupo reportava.
Os casos mais preocupantes são os da Espírito Santo Financial Group (ESFG, a dona do BES), da Rioforte e da Espírito Santo Resources. Segundo o BPI, a ESFG reportava lucros de 1.658 milhões em 2011, mas os resultados verdadeiros seriam entre prejuízos de 74 milhões e lucros de 253 milhões.
A ES Resources reportava lucros de 94,8 milhões; teria prejuízos entre os 388 milhões e os 822 milhões. Já a Rioforte acumulava uma dívida de 1.469 milhões de euros. A dívida total do grupo GES, em dezembro de 2011, seria de 5.880 milhões.
Segundo a SIC, o relatório do BPI terá sido entregue por Fernando Ulrich, em mão, ao próprio Carlos Costa, em maio de 2013. O governador terá despachado o relatório para o vice-governador, que, por sua vez, o enviou ao departamento de supervisão prudencial. Não se conhece qualquer atuação do Banco de Portugal após ter tido conhecimento do relatório — que, aliás, só veio a público durante a comissão parlamentar de inquérito ao BES, em dezembro de 2014.
Porque é que este relatório ficou na gaveta?
No segundo esclarecimento que emitiu, o Banco de Portugal contraria a data mencionada pela SIC e diz que só recebeu o relatório do BPI a 1 de agosto de 2013. Nessa data, aponta o regulador, “já se encontrava em preparação uma análise particularmente exigente dos principais grupos económicos devedores à banca (ETRICC 2), cuja realização foi aprovada pelo Conselho de Administração do Banco de Portugal no dia 11 de setembro de 2013”.
Foi em resultado dessa análise, a chamada ETRICC 2, feita “por única e exclusiva atuação do Banco de Portugal” que “foi detetado, no final de novembro de 2013, que as contas publicamente divulgadas pela Espírito Santo International não refletiam a sua verdadeira realidade financeira”, refere o regulador.
E conclui: “A avaliação do GES realizada pelo BPI em nada alterou a análise e o planeamento em curso no Banco de Portugal, nem contribuiu para os resultados que vieram a ser apurados no ETRICC 2”.
Por que afastou Silveira Godinho?
Outra questão levantada na reportagem da SIC prende-se com o afastamento de José Silveira Godinho, até então responsável pelo departamento de supervisão prudencial. Foi a este departamento que foi encaminhado o relatório do BPI, em 2013. Contudo, que se conheça, este departamento não retirou qualquer conclusão da avaliação feita pelo BPI. E, em setembro de 2014, António Varela substituiu Silveira Godinho, que foi recolocado na fábrica de notas do Carregado.
Não há como fugir à pergunta: se a avaliação ao GES feita pelo BPI “em nada alterou a análise em curso no Banco de Portugal, nem contribuiu para os resultados que vieram a ser apurados”, por que foi afastado Silveira Godinho?
Pressionou a troika para não se fazer uma avaliação externa à banca?
Em “Assalto ao Castelo”, a SIC entrevista Nicolas Veron, um antigo consultor da troika que admite que os credores tiveram dúvidas sobre o BES “numa fase muito inicial”. Mas o ponto-chave desta entrevista é a acusação que faz a Carlos Costa. O antigo consultor lembra que a troika fez questão de fazer uma avaliação externa aos balanços dos bancos da Irlanda, Espanha, Grécia e Chipre. Porque é que o mesmo não foi feito em Portugal? “O Banco de Portugal não quis que isso acontecesse, isso é muito claro. Argumentaram com muita veemência”, diz Nicolas Veron.
É verdade? Houve mesmo pressão, por parte do regulador português, para que não fosse feita uma avaliação externa e independente à banca nacional? Se sim, porquê?
O Montepio esclareceu o empréstimo concedido à Rioforte?
O quarto documento revelado diz respeito a um empréstimo de 60 milhões de euros que a Caixa Económica Montepio Geral concedeu à Espírito Santo Hotéis, empresa do grupo Rioforte. Dois problemas: primeiro, o empréstimo foi concedido a um universo empresarial falido; segundo, a ata da reunião em que o empréstimo foi aprovado foi assinada por um administrador que não esteve presente na reunião.
Em abril de 2015, o Montepio envia um email ao departamento de supervisão prudencial do Banco de Portugal, com uma correção à ata inicial. A correção era simples: deixou de aparecer o nome de Jorge Barros Luís, o administrador que não estava presente na reunião.
O Banco de Portugal exige então esclarecimentos ao Montepio, dando-lhe cinco dias úteis para responder.
O Montepio respondeu? Que esclarecimentos prestou? E foi-lhe aplicada alguma sanção, tendo em conta que, como o próprio regulador referiu, um empréstimo a um universo empresarial falido é “punível em sede contraordenacional”?
O que é o Banco de Portugal sabia sobre a operação no Dubai?
O último episódio procura esclarecer a teia GES-Dubai-Angola. A personagem principal desta história é o Espírito Santo Bankers Dubai, a filial do BES nesse país. E a história começa em janeiro de 2010, quando o Banco de Portugal envia uma carta ao regulador financeiro do Dubai para confirmar que, como o BES alegou ao regulador português, a filial do Dubai não tinha autorização para fornecer dados pessoais sobre os clientes para o estrangeiro. O regulador do Dubai respondeu que não tinha qualquer conhecimento desse impedimento.
A partir daí, os dois reguladores trocaram correspondência regularmente até, pelo menos, meados de 2013.
Pelo meio, o Banco de Portugal conclui o seguinte: a filial do BES no Dubai servia, por um lado, para canalizar capitais para as empresas falidas do GES; e servia, por outro, como ponte para transferir capitais angolanos para outros destinos.
A primeira parte foi denunciada pelo regulador do Dubai em março de 2011, numa carta onde dá conta de que a “larga maioria dos ativos” geridos pela filial nesse país estava a ser colocada em empresas do GES. Ao todo, as aplicações nesta filial atingiam os 913 milhões de dólares, dos quais 60% foram investimentos feitos em empresas do GES.
Resta saber o que é o Banco de Portugal fez com a informação que lhe foi comunicada pelo Dubai. À SIC, disse que “o ES Bankers Dubai não se encontrava sujeito à supervisão preventiva do branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo por parte do Banco de Portugal, mas da DFSA [o regulador do Dubai]”.
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