Paulo Valério é o segundo candidato a bastonário dos Advogados, com entrevista a ser publicada. O mais jovem da lista de sete fala da CPAS, da deontologia da OA e do sistema de defensor público.
O advogado Paulo Valério formalizou no dia 3 de outubro a sua candidatura a Bastonário da Ordem dos Advogados, dando igualmente a conhecer a sua lista candidata ao Conselho Geral. É uma “lista paritária, muito qualificada, intergeracional e globalmente composta por advogados cidadãos, com práticas diferenciadas, que aliam a sua profissão a uma intensa participação cívica, nos mais diversos quadrantes e domínios”, de acordo com o candidato. Teresa Violante e Paulo Linhares Dias são respetivamente, 1º e 2º Vice-presidentes. Leia a entrevista à Advocatus.
O que é que o diferencia dos restantes candidatos?
Para mim, ser Bastonário não é um prémio de carreira. É uma oportunidade para transformar, de facto, a Ordem dos Advogados. A Ordem é, há demasiados anos, uma organização atávica, onde os mesmos de sempre se limitam a debater entre si, em circuito fechado, coisas que não interessam à maioria dos advogados. Acredito que posso ser um Bastonário alinhado com as necessidades da advocacia real e posso, realmente, fazer a diferença.
Quando e porquê decidiu ser advogado?
Tenho um percurso diferente do habitual. Desde muito cedo, creio que por influência de um tio de quem gosto muito, sonhei ser advogado. Mas fiz o ensino secundário nos anos noventa, quando ser médico aparentava ser a profissão do futuro. Como era bom aluno, os meus amigos estavam na área de ciências e os meus pais torciam o nariz ao direito, acabei candidato a medicina, mas colocado em biologia… Comecei por ser um (muito) feliz caloiro de biologia e depois fui fazer as específicas de história e filosofia para me candidatar a direito em Coimbra, onde fiz o curso.
Disse, em tempos, que era o advogado menos cinzento. Pode explicar melhor?
Sendo o candidato mais jovem, curiosamente, não sou o candidato com menos cabelos brancos… Mas o que disse, na realidade, foi que não vinha para ser mais um a alimentar os discursos cinzentos que marcam, habitualmente, a abertura do ano judicial. E o que quis dizer é que a advocacia, se quer reabilitar a sua imagem pública, tem que falar uma linguagem que as pessoas entendam. Sem perder o rigor e a dignidade, mas deixando de viver refém na sua torre de marfim. Ou, se quiser, lost in translation.
Qual é o seu dever, perante os advogados?
O meu dever, enquanto candidato, é falar com verdade a todos os advogados e apresentar soluções concretas para os problemas do nosso tempo, para que todos possam escolher em consciência. O meu dever, enquanto Bastonário – se tiver a felicidade de ser eleito – será implementar essas soluções e trabalhar todos os dias, com exigência e seriedade, para honrar a profissão, nas suas múltiplas expressões.
Os candidatos são demasiados?
Haver muitas candidaturas no sentido de existirem diferentes opções em jogo, contribuir para o debate e, enfim, participar na festa da democracia não tem mal algum. O problema é que, por vezes, haver muitos candidatos não significa que existam propostas diferentes. Por vezes, significa apenas que a conflitualidade entre potenciais candidatos é de tal ordem que não conseguem encontrar um terreno comum de entendimento entre si. Nesse caso, as eleições tornam-se disputas pessoais e isso é mau.
A Ordem é, há demasiados anos, uma organização atávica, onde os mesmos de sempre se limitam a debater entre si, em circuito fechado, coisas que não interessam à maioria dos advogados. Acredito que posso ser um Bastonário alinhado com as necessidades da advocacia real e posso, realmente, fazer a diferença.
Desde Marinho e Pinto que a ‘elite’ da advocacia diz que a OA perdeu prestígio. Concorda?
Eu não sei o que é a elite da advocacia. A advocacia que temos hoje é muito diferente daquela que tínhamos há cinquenta anos. E não vale a pena perdermo-nos com saudosismos. Hoje há muitas formas diferentes de exercício e realidades bastante distintas, também do ponto de vista geográfico. O que importa não é, propriamente, alimentar divisões ou ver os Bastonários como representantes do grupo A ou B. O que importa é que o Bastonário seja capaz de fazer uma síntese equilibrada entre as diferentes realidades. É para isso que contam comigo.
A participação da advocacia na política está muito ligada a promiscuidade. Concorda?
A política é permeável às virtudes e defeitos dos seres humanos e os advogados são humanos como todos os outros. Acho precipitado atribuir à advocacia uma participação especial na degradação da política. O que me parece fundamental garantir é que não exista confusão sobre os interesses que cada um defende.
A democracia perde ou ganha por ter um Parlamento com maioria de advogados?
É preciso ser rigoroso e justo nessa avaliação. Sou frontalmente contra a acumulação de funções entre advogados e deputados, por exemplo. Ninguém compreende que se possa estar a legislar de manhã e a aconselhar um cliente sobre o mesmo assunto da parte da tarde. Agora, também é preciso dizer que a democracia portuguesa tem beneficiado, ao longo dos anos, da participação inestimável de inúmeros advogados, da esquerda à direita. Mário Soares, Jorge Sampaio e António Arnaut. Mas também Miguel Veiga ou João Morais Leitão. Só nos podemos orgulhar disso.
A ação disciplinar é bem feita atualmente? Ou há ainda muito corporativismo?
Não moverei quaisquer processos de intenção relativamente à deontologia da OA, porque a respeito e considero que ela tem que ser absolutamente independente da figura do Bastonário. Quando não se pensa dessa forma – e sem tomar qualquer partido – arriscamos conflitos degradantes como aquele que tem acontecido entre o Bastonário e o Conselho de Deontologia de Lisboa. E parece que não é caso único.
O que me dizem é que o processo decisório é muito moroso. É preciso criar condições humanas e financeiras para que a deontologia possa funcionar, com celeridade e independência.
Se tivesse de eleger uma medida do seu programa como a com mais rasgo, qual seria?
Julgo que não me cabe valorar dessa forma as minhas próprias propostas. Às vezes o rasgo não é uma proposta, é uma forma de estar. Mas diria que ter a coragem de alterar totalmente o atual modelo de apoio judiciário é o tipo de coisa a que não estávamos habituados na Ordem dos Advogados. Ainda que, no fundo, esteja só a defender o que quase toda a gente defende em surdina, nos corredores.
A OA é meramente uma cobradora de quotas?
A maioria dos advogados sente que as quotas que paga não têm contrapartida adequada por parte da Ordem. Na realidade, muitos acreditam que viveriam bem sem a Ordem. E nós não podemos ignorar isso.
Entre outras coisas, defendo que a Ordem deve investir numa plataforma digital com serviços úteis aos advogados – atos notariais, doutrina e jurisprudência, gestão de tarefas e faturação, elaboração de contratos, entre outros – , disponibilizando-a a todos através da nossa área reservada. Só assim podemos garantir que os colegas com menos capacidade financeira não perdem o comboio da transição digital.
Qual foi o seu bastonário favorito, de todos os que exerceram o cargo?
Enquanto advogado, estou grato a todos os Bastonários. É muito fácil criticar quando se está do lado de fora. Acho que seria indelicado da minha parte fazer esse tipo de distinção.
Qual é, para si, a principal função da Ordem dos Advogados?
A primeira missão da Ordem é defender o Estado de Direito e os Direitos, Liberdades e Garantias dos Cidadãos. Deve representar os advogados e proteger a advocacia, enquanto função essencial à administração da justiça. Coisa muito diferente de se apresentar como uma associação sindical.
O defensor público seria a solução para o acesso à Justiça porquê?
O atual sistema de acesso ao direito não satisfaz ninguém. Os advogados andam há décadas a reclamar, com razão, sobre a indignidade dos honorários pagos pelo Estado. E os cidadãos desconfiam que, se não tiverem dinheiro, têm que se sujeitar a uma justiça para pobres. Não é possível compactuar mais com isso.
Os meus colegas, adversários nesta eleição, apresentam uma solução gasta e que, nos últimos anos, já se revelou infrutífera: atualizar a tabela de honorários. É um canto de sereia. Eu prefiro ser pragmático e defender um modelo que, realmente, possa dar uma carreira digna e dignamente remunerada a milhares de advogados – servindo bem os cidadãos -, do que alimentar a precaridade na advocacia por razões de mera tática eleitoral.
E tenho ainda a vantagem de apresentar isto com clareza, sem subterfúgios. Defendo um modelo de defensoria pública, em exclusividade, que pode ser implementado dentro ou fora da Ordem dos Advogados, mas sempre com sujeição à tutela deontológica da Ordem e preservando a necessária autonomia técnica.
O último bastonário preocupa-se demasiado com as defesas oficiosas?
O atual Bastonário preocupa-se menos do que deveria com os problemas que realmente interessam à maioria dos advogados. Sabe, eu acho que os colegas inscritos no SADT são muito desrespeitados pela Ordem. São quase 14.000, num grupo necessariamente heterogéneo de pessoas que pensam pela sua própria cabeça, mas que são muitas vezes tratados como um mero sindicato de voto. Muitos acham que sabem o que estes colegas pensam sobre isto ou aquilo. A minha intuição é que estão enganados.
Os meus colegas, adversários nesta eleição, apresentam uma solução gasta e que, nos últimos anos, já se revelou infrutífera: atualizar a tabela de honorários. É um canto de sereia. Eu prefiro ser pragmático e defender um modelo que, realmente, possa dar uma carreira digna e dignamente remunerada a milhares de advogados.
O Paulo Valério é o candidato de quem? Dos estagiários, dos advogados de empresa, em prática individual ou das grandes sociedades de advogados?
Passe a imodéstia, creio que os meus contendores têm em mim um grande desafio: não caibo em gavetas. No nosso programa, mexemos em questões sensíveis para as sociedades, como os direitos dos associados; e em temas delicados para a advocacia em prática individual, como o SADT. Defendemos a remuneração dos estagiários, mas não queremos uma Ordem de portas escancaradas. Isto acontece porque não trazemos encomendas de ninguém. Estamos aqui para defender o futuro da advocacia, como um todo.
Que mudanças são urgentes nos estágios de advogados?
Só pode haver estágios onde houver trabalho para os estagiários e onde eles possam ser pagos. É curioso, mas a maior parte dos candidatos acha que a melhor forma de proteger os advogados estagiários é não lhes pagar. E eu acho bizarro que ainda estejamos a ter esta discussão no século XXI. Por outro lado, é fundamental que a Ordem abandone pretensões formativas como se fosse uma espécie de Universidade e se foque na dimensão prática da profissão, com prevalência da deontologia.
Finalmente, os estágios têm de ter início e fim previsível, para que os estagiários possam organizar as suas vidas. A Ordem não pode abrir cursos quando quer, marcar e corrigir exames quando lhe dá jeito e por aí em diante.
A OA precisa de um provedor que fiscalize a sua atuação?
Não acho que precise, mas acho que a Ordem tem a enorme responsabilidade de mostrar à sociedade que sabe interpretar o seu papel para além das fronteiras corporativas.
Pessoalmente, não creio que o modelo de autorregulação profissional que temos hoje seja compatível com o tipo de intromissão que a proposta de Lei das Associações Públicas Profissionais preconiza. Mas aguardemos para saber o que o Tribunal Constitucional decidirá a esse respeito.
É curioso, mas a maior parte dos candidatos acha que a melhor forma de proteger os advogados estagiários é não lhes pagar. E eu acho bizarro que ainda estejamos a ter esta discussão no século XXI.
No assunto quente que é a CPAS, a encruzilhada existe porque é um sistema corporativista?
A encruzilhada existe porque quando a CPAS foi criada a advocacia era muito diferente da que temos hoje. E porque passou de ser um sistema melhor que o sistema geral para passar a ser um sistema, globalmente, pior. Veja que hoje as mulheres estão em maioria na profissão e não conseguem gozar uma licença de maternidade digna. O mesmo para os pais, diga-se. Ou a CPAS renova a sua legitimidade, colocando os advogados em condições de igualdade com os demais cidadãos ou então está condenada.
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Paulo Valério: “Haver muitos candidatos não significa que existam propostas diferentes”
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