Multidisciplinaridade nas sociedades de advogados – uma inevitabilidade?
Este projeto segue um modelo que permite a adoção da multidisciplinaridade sem que deixe de colocar um enfoque e preocupação com a manutenção da defesa de alguns dos valores basilares dos advogados.
Faz agora dois anos que escrevi um artigo de opinião sobre a discussão à volta da multidisciplinaridade nas sociedades de advogados. Naquela data, encontrávamo-nos a discutir o projeto de lei n.º 974/XIV/3ª “ Alteração à Lei n.º 2/3013, de 10 de janeiro e à Lei 53/2015, de 11 de junho, com vista ao reforço do interesse público, da autonomia e independência da regulação e promoção do acesso a atividades profissionais”. Como sabemos, porém, fruto da dissolução da Assembleia da República, não foi possível concluir o processo legislativo.
Agora, através do projeto de lei n.º 108/XV, é novamente relançada a discussão à volta de um tema “quente” e que persiste em não sair do papel.
Para a elaboração desta minha opinião, tive o cuidado de ler acerca do tema, em particular, o que vários Colegas Advogados entendem ser as vantagens e desvantagens da adoção deste tipo de estruturas. Como não podia deixar de ser, numa sociedade democrática, temos posições para todos os gostos. Gostaria, porém, de deixar de lado a inflamação de posições mais radicais, para nos podermos centrar no essencial, ou seja, (i) faz ou não sentido permitir o exercício multidisciplinar de profissões reguladas? (ii) estamos, ou não, prejudicados em termos de concorrência com outros ordenamentos jurídicos? (iii) os valores da profissão como, a ética e a deontologia própria dos advogados estão postos em crise com esta alteração?; (iv) os direitos dos cidadãos, o sigilo profissional, o exercício de serviços pro-bono, os conflitos de interesse e a independência dos advogados estão eles, também, postos em causa?
É essencialmente sobre todas estas questões que se centram as discussões.
No que a este artigo interessa, o projeto de lei dispõe de uma forma muito sucinta que:
Podem ser constituídas sociedades multidisciplinares de profissionais, desde que:
- A sociedade garanta a aplicação do regime de incompatibilidades e impedimentos aplicável, bem como de prevenção de conflitos de interesses, devendo, na ausência de medidas que garantam a inexistência de tais conflitos, a prestação de serviços ser recusada ou cessada.
- Os responsáveis pela orientação e execução de funções de interesse público sejam profissionais qualificados;
- Seja garantida a independência técnica, a proteção de informação de clientes e a observância dos deveres deontológicos aplicáveis a cada atividade profissional desenvolvida;
- Que as sociedades constituídas possam assumir a forma de sociedades civis ou assumir qualquer forma jurídica admissível por lei para o exercício de atividades comerciais;
- Podem ser sócios, gerentes ou administradores das sociedades referidas no número anterior pessoas que não possuam as qualificações profissionais exigidas para o exercício das profissões organizadas na associação pública profissional respetiva, ficando vinculados aos deveres deontológicos e de sigilo aplicáveis ao exercício das profissões abrangidas
Constata-se que este projeto segue um modelo que permite a adoção da multidisciplinaridade sem que deixe de colocar um enfoque e uma preocupação com a manutenção da defesa de alguns dos valores basilares dos advogados, como é o caso específico: (i) inexistência de conflitos de interesses; (ii) incompatibilidades; (iii) defesa do sigilo profissional; (iv) manutenção da independência; (v) que a responsabilidade pela orientação e execução caiba a profissionais.
Embora o projeto não seja, em si mesmo, perfeito, somos da opinião que vai no caminho certo. Coisa diferente, tem que ver com a proposta de passar a ser o Estado a fiscalizar os Advogados. Aqui, tendo a concordar na integra com a posição dos mais céticos. A profissão de Advogado tem de manter incólume o seu valor máximo de independência para defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Em jeito de conclusão:
Não conseguimos descortinar em que é que o facto de podermos adotar modelos multidisciplinares, tal possa colocar em crise a deontologia e os valores da advocacia, tal como hoje os conhecemos. Julgo que devemos ter em consideração que uma parte muito substancial do trabalho dos advogados é prestado em áreas não processuais. Quando hoje analisamos áreas como, Societário e direito das empresas, Privacidade, Cibersegurança, Direito fiscal, Regulatório em geral e as áreas de Compliance, percebemos que se tratam de áreas onde são aplicados modelos muito mais empresariais, do que comparados com as áreas mais tradicionais como sejam, o contencioso, o direito da família, o direito penal ou o direito laboral.
Assim, estamos profundamente convictos de que é possível conviver todas estas realidades, mantendo o respeito por todos os valores para os quais fomos formados a respeitar e promover.
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