Greves e protestos marcam início do ano: “Há um conflito social muito grande”

  • Mariana Marques Tiago
  • 16 Janeiro 2023

O descontentamento é geral. Os trabalhadores ainda têm esperança nas negociações, mas o Governo tem um orçamento limitado. O ano será de mais reivindicações e empresas em dificuldades.

Com o custo de vida a subir mais do que os salários, o ano arrancou marcado por greves e contestação em vários setores, dos transportes à educação, passando pela justiça e indústria. A tendência vem do ano anterior, em que se registou um aumento de 25% nos pré-avisos de greve.

Nestas duas primeiras semanas de 2023, já se realizaram pelo menos cinco greves e oito estavam em curso na sexta-feira, como era o caso da greve dos professores. Esperam-se ainda, pelo menos, outras três — incluindo o dia de protesto nacional convocado pela CGTP para 9 de fevereiro, estando previstas “greves e paralisações em todos os setores e em todo o país”.

No público, tudo depende das negociações que o Governo de maioria absoluta está disposto a fazer. Mas o privado também não vai escapar ao aumento da contestação social.

O secretário-geral da FENPROF, Mário Nogueira (C), participa na concentração de educadores e professores do Agrupamento de Escolas Rainha Santa Isabel, no âmbito da greve de professores, junto à escola EB 2.3 Rainha Santa Isabel, em Coimbra, a 11 de janeiro de 2023PAULO NOVAIS/LUSA

“Cocktail” de descontentamento afeta público e privado

“As greves deste ano são essencialmente ligadas ao setor público, como a Saúde e a Administração Pública, porque, de acordo com os dados do INE, foi nesse setor que os salários menos cresceram”, explica o economista João Cerejeira. O politólogo André Freire vai mais além: “Já não é apenas o setor público” que está descontente.

Disso é exemplo o protesto que o Sindicato Nacional dos Quadros e Técnicos Bancários (SNQTB) dinamizou na passada quinta-feira contra a proposta de aumentos salariais de 2,5%, face aos 6,25% exigidos. Segundo o politólogo, “os bancos já estão bastante recuperados, felizmente. É para isso que existem as empresas privadas num regime capitalista: gerar lucro. Mas há trabalhadores que ficam de fora. Os bancos, no fundo, seguem a política do Governo: austeridade.”

João Cerejeira explica que o “cocktail” do descontentamento tem como ingredientes a quebra do poder de compra, o aumento da inflação e a descida dos salários. Ora, “a greve é o elemento de reivindicação salarial utilizado com mais frequência” no país, lembra.

Todavia, mesmo que o Governo ou as empresas cedam e promovam aumentos salariais, estes tenderão a ser insuficientes “para acompanhar a perda do poder de compra” que se espera em 2023 e para o qual o aumento da taxa de inflação irá contribuir (a taxa média anual em 2022 foi de 7,8%, revelou o INE esta semana).

Governo tem “problema de políticas”

É ponto assente que “há um conflito social muito grande” e que o país atravessa “um contexto de grande incerteza”, diz João Cerejeira. Em menos de 15 dias, 2023 já assistiu às greves dos maquinistas da CP e da Metro Sul do Tejo, trabalhadores da Infraestruturas de Portugal e do Instituto dos Registos e do Notariado e enfermeiros do Hospital de Évora.

Atualmente, mantêm-se em greve os professores, oficiais de justiça, guardas prisionais, trabalhadoras da Cofaco (conserveira dos Açores) e ainda os trabalhadores da indústria hoteleira do sul; de inspeção sanitária e veterinária; dos transportes rodoviários e urbanos do Norte e do Hotel Casino de Chaves. Mas, mesmo com todas estas greves (e as que se esperam nos próximos dias), dificilmente se poderá esperar um impacto direto na estabilidade governativa e no aumento real dos salários, defende o politólogo António Costa Pinto.

“O impacto [da contestação social] no Governo e nas reivindicações salariais é nulo, porque depende da dimensão dos setores”, diz o especialista. António Costa Pinto argumenta que “a crise governamental atual não foi provocada por dinâmicas sociais, mas sim pela seleção de ministros e performances do Governo”, defende, referindo-se à sucessão de demissões que têm abalado a equipa de António Costa.

Sobre isso, André Freire acrescenta: “Neste momento não há só um problema de instabilidade no Governo. Há um problema de políticas. E há problemas estruturais, como no caso do ensino.” O politólogo lembra que “este é um país de baixos salários”. “Vivemos o mesmo há anos e isso está a gerar descontentamentos”, explica. “Excetuando em conjunturas muito particulares, as movimentações sociais têm um impacto mínimo em crises e ainda menor em quedas de governos”, complementa Costa Pinto.

Neste momento não há só um problema de instabilidade no Governo. Há um problema de políticas.

André Freire

Politólogo

Mais reivindicações e empresas em dificuldades

João Cerejeira está pouco otimista: “Vamos entrar num ano de incerteza. 2023, provavelmente, não será tão favorável” para o tecido empresarial como o ano anterior. Por isso, é “natural que tenhamos mais reivindicações salariais, até porque algumas empresas poderão entrar em crise”, alerta.

O problema reside, então, nas respostas limitadas que estão a ser dadas pelo Executivo. “Será difícil dar respostas às reivindicações” porque o Governo é “muito conservador em termos de aumento da despesa”, entende o economista.

Cerejeira aponta que o Orçamento do Estado de 2022 “foi demasiado contido”, tendo chegado “com excesso ao fim do ano” (em contabilidade nacional, registava-se um excedente de 2,8% do PIB até setembro e, em contabilidade pública, o saldo orçamental era positivo em 1.855 milhões no final de novembro). Em 2023, “provavelmente, o Ministério das Finanças será ainda mais conservador, já que os pressupostos do aumento do poder de compra ou aumentos salariais não se vão perspetivar. A taxa de inflação provavelmente pecará por defeito”, sublinha. A última previsão do Banco de Portugal é de 5,8%.

Se o ministério responsável por melhorar aspetos financeiros não se mostrar flexível e as greves continuarem, só se espera que seja gerado “mais desgaste e instabilidade no Governo”, conclui André Freire, que aponta que o Governo de Costa tem apostado “apenas no aumento do salário mínimo”.

A “bola de neve” que pode ser a TAP

Há oito anos que os tripulantes da TAP não entravam em greve, realidade que mudou nos dias 8 e 9 de dezembro e que terá provocado um impacto de oito milhões de euros, estimava a companhia aérea. Volvidos menos de dois meses, o Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC) lançou um novo pré-aviso de greve de 25 a 31 de janeiro (vai reunir na próxima quinta-feira para votar uma proposta da TAP que, como noticiou o ECO, está disponível para reduzir os cortes salariais em vigor).

A TAP, “sim, tem peso na crise governamental. E, para a administração, uma dinâmica grevista significativa pode ter um impacto severo não só na vida da empresa como também na relação com o acionista Estado”, sintetiza António Costa Pinto. Como consequência, pode formar-se “uma bola de neve que pode enfraquecer a estratégia do Governo, na qual tudo aponta para a privatização rápida da empresa”, diz. No debate parlamentar desta semana, o primeiro-ministro voltou a segurar a administração, falando na necessidade de “estabilidade” antes da venda da empresa.

Agora, tudo depende das negociações por parte do Executivo de Costa, que conta agora com um novo interlocutor: João Galamba, recém-empossado ministro das Infraestruturas. “Os governos de centro-esquerda são mais sensíveis à conflituosidade social e à tentativa da sua resolução através de negociação”. Exemplo disso foi a greve dos trabalhadores portuários, que começou a 22 de dezembro e foi cancelada antecipadamente no dia 9 de janeiro, após o sindicato ter reunido com o novo titular da pasta das Infraestruturas.

Se a greve se mantivesse, seria expectável um impacto diário de 100 milhões a 150 milhões de euros na economia nacional. A célere negociação deixa claro que “o Governo tem o poder de mudar o status quo“, conclui André Freire.

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