Regime Geral da Prevenção da Corrupção – um regime legal envergonhado?

  • Mariana Aires de Abreu e Tiago Ponces de Carvalho
  • 23 Fevereiro 2023

Regista-se a total ausência de regulamentação relativa à monitorização de riscos e à eficácia dos respetivos procedimentos, no que respeita, por exemplo, à integridade de clientes e parceiros.

Desde o passado Verão, as empresas com mais de 50 trabalhadores estão obrigadas a adotar medidas internas para a prevenção de riscos de corrupção e infrações conexas mediante a implementação de seis mecanismos.

À cabeça, a implementação de um plano de prevenção de riscos de corrupção e infrações conexas (“PPR”), que deverá abranger toda a sua organização e atividade, e do qual conste a identificação, análise e classificação dos respetivos riscos, bem como as respetivas medidas preventivas e corretivas.

Depois, a designação de um “responsável pelo cumprimento normativo”, a quem incumbe, de forma independente e autónoma, a execução, controlo e revisão do “PPR”.

As entidades obrigadas têm, ainda, de adotar um código de conduta que estabeleça o conjunto de princípios, valores e regras de atuação de dirigentes e colaboradores em matéria de ética profissional. O código de conduta deve identificar as sanções disciplinares e penais que podem ser aplicadas em caso de incumprimento – tema que se nos afigura complexo porquanto se torna extremamente difícil, de uma forma geral, prever todas as sanções laborais que, em concreto, se possam vir a aplicar. Por outro lado, temos dúvidas que um documento interno, para conhecimento geral e de conteúdo eminentemente ético, deva incluir tais matérias.

É também obrigatório que as entidades em questão implementem um canal de denúncias interno (whistleblowing).

Finalmente, as entidades abrangidas devem assegurar a realização de programas de formação interna a todos os seus dirigentes e colaboradores.

São estas, pois, as linhas gerais de uma certa privatização do combate público à corrupção.

De um ponto de vista estritamente privado, temos um ponto de partida no que diz respeito à prevenção de riscos reputacionais, de negócio, da possibilidade das empresas portuguesas se modernizarem no sentido de acompanharem as novas exigências de boa governança corporativa. Muito cedo, porém, para retirarmos qualquer tipo de conclusão no que diz respeito aos objetivos de política criminal gizados pelo Governo há cerca de dois anos.

Neste momento, cremos que a atenção deve recair naquilo os canais de denúncia interna nos possam trazer. O arquivo desta informação estará, “de mão beijada”, à disposição das autoridades públicas? Se sim, o possível choque entre auto-regulação e um provavelmente rico manancial em termos de investigação criminal… Pelo meio, a possibilidade de atentado contra princípios fundamentais do Direito Penal, como o da não-incriminação, ou ensinamentos clássicos, como os de Beccaria, sobre a usurpação do “direito [público] de punir”.

O novo regime fica muito aquém do U.S. Foreign Corrupt Practice Act (“FCPA”) – e, quanto a este, é de salientar que várias empresas portuguesas de ADR que operam nos mercados OTC dos Estados Unidos estão sujeitas àquele regime –, ou do UK Bribery Act, ou até da francesa Loi Sapin II. Com efeito, regista-se a total ausência de regulamentação relativa à monitorização de riscos e à eficácia dos respetivos procedimentos, no que respeita, por exemplo, à integridade de clientes, parceiros e fornecedores. Ainda, a ausência de regulação quanto a controlos contabilísticos – pilar para a prevenção da corrupção, exaustivamente regulado, por exemplo, pela lei congénere francesa.

Uma palavra sobre o quadro sancionatório da nova lei. Com um limite máximo das coimas a fixar-se abaixo dos 45.000 euros, existe um risco real de fenómenos como o do Compliance trap, podendo levar a decisões em que o risco de violação do dever de implementar o PPR seja menor do que o da perda de lucros das empresas.

  • Mariana Aires de Abreu
  • Sócia da Andersen
  • Tiago Ponces de Carvalho
  • Advogado coordenador da Andersen

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