Por que vai fechar o melhor restaurante do mundo?
Encerramento do restaurante dinamarquês Noma, que ajudou a promover o estilo do fine dining a nível mundial, volta a questionar a sustentabilidade da alta gastronomia. E os clientes também têm culpa.
O Noma somou distinções ao longo das últimas duas décadas. Além das cinco ocasiões consecutivas em que encabeçou a lista dos “50 Melhores Restaurantes do Mundo”, ganhou a terceira estrela Michelin em agosto de 2021, ajudando-o a cimentar uma reputação tal que, como constata o crítico gastronómico Pete Wells do The New York Times (acesso pago), nenhum outro restaurante “apresentou tantas ideias que foram roubadas por tantos outros lugares, em tantas outras cidades, tão rapidamente”. Por isso causou tanta surpresa no mundo da alta cozinha o anúncio de que o restaurante dinamarquês irá encerrar o serviço regular a partir de 2025.
“É insustentável”, justificou René Redzepi, também ele eleito várias vezes o melhor chef do mundo, aludindo à pressão de produzir diariamente pratos criativos e inovadores, de reinventar constantemente o menu e, ao mesmo tempo, compensar de forma justa cerca de uma centena de funcionários sujeitos a horas de trabalho intensivas. Tudo isto a preços que o mercado suportasse – atualmente, uma refeição no Noma custa, no mínimo, 500 euros por pessoa. “Financeira e emocionalmente, enquanto empregador e ser humano, simplesmente não funciona”, desabafou.
Embora a notícia tenha surgido numa altura em que há um escrutínio cada vez maior acerca das condições de trabalho no mundo do chamado fine dining, o chef René Redzepi garantiu que a decisão de encerrar o Noma não se deve às críticas à sua dependência de mão-de-obra não remunerada, ou aos problemas financeiros que o restaurante atravessou nos últimos anos – nem sequer ao facto de não poder voltar a encabeçar a lista dos “50 Melhores Restaurantes do Mundo”.
Só em outubro passado é que o Noma passou, de facto, a pagar a todos os seus trabalhadores. No último ano antes da pandemia de Covid-19, empregava 34 cozinheiros pagos e cerca de 30 estagiários não remunerados, como relatou o Financial Times (acesso pago). Até então, o programa de estágios do restaurante dinamarquês apenas previa a atribuição de visto de trabalho aos cerca de 20 a 30 estagiários que ali trabalhavam a tempo inteiro durante três meses. Mas para muitos, um estágio no Noma (ou noutro restaurante de fine dining) é o que basta para arranjar futuros empregos no setor ou até para conseguir financiamento de investidores para abrir o seu próprio restaurante.
Já antes de começar o pagar pelos estágios, o prestigiado restaurante de Copenhaga não dava bons sinais em termos de sustentabilidade financeira. Segundo a Bloomberg (acesso pago), o Noma não lucrou em 2021, mesmo depois de ter recebido uma ajuda de 10,9 milhões de coroas (cerca 2,3 milhões de euros) do Governo dinamarquês, como parte de um pacote financeiro para apoiar a recuperação da pandemia de Covid-19.
Da última vez que tinha dado prejuízos, em 2017, também decidiu fechar portas para uma reformulação. Reabriu no espaço onde está agora e mudou de nome para Noma 2.0. Além da nova designação, passou a ter mais horários de serviço, mais lugares à mesa e um design modular, com salas que podem ser ampliadas ou reduzidas, e mobiliário de cozinha com rodas para atender distintos formatos.
Mas a questão da sustentabilidade, a que o próprio chef do Noma aludiu, vai além da economia e da rentabilidade do negócio. Atualmente, entram também na equação o impacto ambiental da empresa e o ambiente de trabalho entre os funcionários, o que, neste caso, inclui o pessoal na cozinha e os gestores e proprietários do restaurante.
Ora, num ensaio em 2015 para a revista Lucky Peach, René Redzepi confessou ter intimidado verbal e fisicamente o seu pessoal. “Tenho sido um rufia durante grande parte da minha carreira, tenho gritado e empurrado pessoas. Por vezes, tenho sido um chef terrível”, escreveu então o chef dinamarquês, conhecido por ter um temperamento explosivo e ser viciado em trabalho.
Com a intenção de se tornar, nas suas próprias palavras, um chef mais calmo e gentil, Redzepi focou-se, nos últimos anos, em fazer terapia e meditação. No entanto, foram os confinamentos durante a pandemia que o fizeram repensar o seu modelo de trabalho. “Temos de repensar por completo a indústria; isto é simplesmente demasiado duro e temos de trabalhar de uma forma diferente”, defendeu, na entrevista que deu ao NYT sobre o encerramento do Noma.
O chef Nuno Queiroz Ribeiro concorda. Longas jornadas de trabalho, frequentemente entre 16 a 18 horas por dia, às vezes sem conseguir tirar folgas, aliado a um ambiente laboral muito competitivo, que chega a ser hostil e agressivo, levaram-no a deixar de trabalhar em restaurantes de estrela Michelin. Diz que “pareciam a tropa”. “É urgente e necessário olharmos para a restauração e, principalmente, para esta área do fine dining, com outros olhos, com outra humanidade”, reconhece, em declarações ao ECO.
É urgente e necessário olharmos para a restauração e, principalmente, para esta área do fine dining, com outros olhos, com outra humanidade.
A mesma ideia é defendida ao ECO por Hélio Loureiro, que está no ofício há mais de 30 anos. Gastrónomo e investigador na área da cozinha, vê na atual restauração “uma nova escravatura”. Por uma experiência profissional aliciante e uma marca importante no currículo, os chefs / proprietários de restaurantes e hotéis de referência dão em troca um baixo salário, inúmeras horas não remuneradas e pressão psicológica. Que passa até por ameaçarem que, se forem despedidos, não arranjam mais trabalho noutros estabelecimentos. Contudo, alerta que essa pressão advém também dos clientes.
“Muito por um novo riquismo serôdio, fazem, através das redes sociais, críticas muitas vezes infundadas e com pouco conhecimento, mas que provocam diariamente uma pressão enorme na vida das pessoas que trabalham nesta profissão. O escrutínio diário é feito por pessoas pouco credenciadas, ao invés do que acontecia quando apenas se dava destaque às críticas dos gastrónomos que escreviam para jornais e revistas fundamentadas em conhecimento”, resume.
Este cenário deve-se, em parte, a um crescimento económico desigual, que leva a que um grupo significativo de pessoas esteja disposta a gastar centenas de euros em restaurantes como o Noma. Ao ponto de tornar o conhecimento de fine dining numa “marca de estatuto cultural”, como descreve Bryan Walsh, editor da plataforma de notícias norte-americana Vox. Simultaneamente, a alta cozinha ganhou espaço no mundo do entretenimento, com destaque para a série documental norte-americana Chef’s Table, estreada em 2015. Cada episódio centra-se num único chef obcecado com a perfeição. Há um peso enorme sob esta profissão – e que, como mostra a experiência de Redzepi, acaba por tornar-se insuportável.
A “linha de produção” transformada em laboratório gastronómico
O formato Noma 2.0 terá sido, provavelmente, um prenúncio do que o chef dinamarquês anunciou a 9 de janeiro deste ano: após 2024, o restaurante vai transformar-se num laboratório gastronómico, desenvolvendo novos pratos e produtos para a plataforma online Noma Projects, cujo foco é a comida, o caráter delicioso e a educação, de acordo com a informação prestada no site do projeto. A sala de refeições do restaurante voltará a abrir portas aos clientes esporadicamente, em forma de pop ups periódicos. E Redzepi assumirá um papel mais próximo de chef criativo do que de chef de cozinha.
Há mais de uma década, o restaurante espanhol El Bulli, na Catalunha, fez uma transição semelhante. Sob alçada de Ferran Adrià, também ele já considerado o mais revolucionário chef do mundo, fechou portas em 2011 e tornou-se uma fundação. Sete anos mais tarde, em 2019, Adrià anunciava a reabertura, não como restaurante, mas enquanto laboratório e museu de inovação culinária, na sequência de um período de pesquisa em que procurou “entender o que é a cozinha e o que é cozinhar”. A missão do agora elBulli 1846 é “criar conhecimento de qualidade sobre a gastronomia de restauração e tudo o que a rodeia”, afirmou à Reuters. A reabertura, inicialmente prevista para 2020, deverá acontecer apenas em julho deste ano.
Da mesma maneira, Roberta Sudbrack decidiu fechar o seu restaurante, com uma estrela Michelin, corria o ano 2017, confessando estar “desiludida” com a alta gastronomia. A chef brasileira, que chegou a cozinhar no Palácio da Alvorada no mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, abriu ainda no mesmo ano um novo restaurante, com o objetivo de marcar uma rutura com esse estilo de cozinha.
Em Portugal também há exemplos semelhantes. Leonel Pereira e Henrique Leis, que estavam à frente de restaurantes com estrela Michelin – respetivamente, o restaurante São Gabriel (em Loulé) e o restaurante Henrique Leis (em Almancil). No primeiro caso, o chef Leonel Pereira decidiu fechar o estabelecimento, tendo, entretanto, aberto um novo restaurante, o Check-in Faro, de conceito mais informal; o chef Henrique Leis decidiu, em 2019, renunciar à distinção do Guia Michelin, depois de “19 anos de stress” e de uma pressão “muito grande”.
Em vez do “trabalho árduo, cansativo e mal remunerado, sob condições de gestão precárias que desgastam as pessoas”, Redzepi quer que o novo Noma possa “provar ao mundo que é possível envelhecer, ser criativo e divertir-se na indústria”. Em entrevista ao ECO, Nuno Queiroz Ribeiro interpreta que se trata não apenas de uma transformação do nome, mas também de “não perder a excelência do trabalho e da criatividade” do chef dinamarquês.
Os restaurantes que são locais de prazer não podem ser um inferno para quem lá trabalha. (…) O valor pago numa refeição fine dining tem de dar para pagar de uma forma justa e com horários condignos.
Este chef português, que é atualmente responsável por uma empresa de catering e que promove, junto das escolas, o ativismo em prol de uma alimentação saudável, espera que a decisão de Redzepi dê início a um “movimento de inspiração” no setor. “Existindo esta transformação, toda a gente vai beneficiar: quem trabalha e também, obviamente, quem se vai deliciar com os pratos”, nota.
Mais reticente sobre a opção, o chef Hélio Loureiro sublinha que a resolução dos problemas no setor da restauração passa por três fatores: “melhores salários”; “horários que respeitem a legislação”; e “respeito pelas pessoas, quer da parte do empregador, quer da parte do utilizador”. Para o gastrónomo, que foi cozinheiro da Seleção Nacional e do FC Porto, “os restaurantes que são locais de prazer não podem ser um inferno para quem lá trabalha”. Sendo que “o valor pago numa refeição fine dining tem de dar para pagar de uma forma justa e com horários condignos”.
Além disso, Hélio Loureiro considera que as estrelas Michelin “criam pressão em vez de criar mais-valias”. “O setor, para se renovar, precisa de se humanizar, em vez do folclore a que assistimos, em que se vai a muitos restaurantes não pelo prazer, mas pelo estatuto social que dá depois de partilhar nas redes sociais”, argumenta o chef nortenho.
No livro “The Uncertainty Mindset: Innovation Insights From the Frontiers of Food”, Vaughn Tan explora as razões que tornam difícil restaurantes como o Noma, e a generalidade dos detentores de estrelas Michelin, terem modelos de negócio sustentáveis. É que a inovação contínua implica um confronto com o desconhecido, o que, como constata o professor de Empreendedorismo na University College London, é inerentemente contrário à consistência e eficiência. E isto reflete-se não só na cozinha fine dining, como em qualquer indústria.
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