Há travões à especulação de preços? Há, mas lei tem “fragilidades”
A especulação é crime e a pena de prisão pode ir até três anos. Advogados consideram que existem limites legais e apelam à fiscalização e controlo das autoridades competentes.
Nos últimos meses, a palavra inflação tem estado na ordem do dia e “apertado” a carteira dos portugueses com os preços a aumentar de dia para dia. O setor do retalho assegurou que “não há especulação”, mas a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) já instaurou 51 processos-crimes por especulação. Os advogados contactados pela Advocatus sublinham que a lei tem “fragilidades” e não chega a definir o conceito de “especulação”.
A especulação de preços pode traduzir-se de várias formas, sendo que tem sido recorrente de duas maneiras: na venda de bens por preço superior ao que consta de etiquetas e rótulos feitos pela própria entidade vendedora e na venda de bens com as características – peso ou medida – alteradas para prejuízo do comprador. Face ao número de processos instaurados, o Governo já avançou que vai intensificar as operações de fiscalização dos preços em todo o país, uma vez a evolução dos preços dos alimentos é completamente oposta à da inflação
Os advogados contactados pela Advocatus consideram necessário que a autoridades averiguem se estamos perante um crime especulação ou não. “As situações que, nos últimos dias, têm vindo a ser reveladas pela comunicação social, e que só por esta via se tem acesso, caso obviamente se confirme o que ali vem alegado, enquadram-se nas condutas especulativas sancionadas pelo crime de especulação”, referiram Alexandra Mota Gomes e Rui Ferreira Antunes, sócia e associado da Antas da Cunha Ecija.
O advogado da RSA, João Luz Soares, explicou também que a recente ação de fiscalização levada a cabo pela ASAE detetou uma “variação de preços de bens alimentares a atingirem os 39% entre o valor afixado nas prateleiras e o montante pago em caixa“. Sem limites fixados pela anterior legislação, o advogado considera que a avaliação dos comportamentos especulativos tem “algumas fragilidades” e que essas dificuldades são “obviamente exacerbadas por aquilo que é o atual quadro de inflação que pode complexificar o momento de avaliação da existência de especulação e a sua subsunção aos critérios da rede legal atualmente existente”.
“Parece-me, no entanto, que o conceito aberto de regular exercício de atividade, parecendo até remeter para uma aplicação pouca equilibrada da lei da oferta e da procura, pode comprometer uma correta interpretação do sistema: os aumentos verificados parecem estar muito para lá do legalmente aceitável, pela atual rede legal, pelo que se exige uma intervenção de fiscalização capaz por parte da autoridade supervisora“, notou João Luz Soares.
Todos os advogados contactados pela Advocatus consideraram que a especulação de preços não pode ser feita sem limites. Segundo Ana Rita Duarte de Campos, sócia contratada da Abreu Advogados, o aumento dos preços para além dos limites legais pode resultar na “imputação do crime de especulação”, sobretudo no âmbito dos bens com preços tabelados. Alertou também que fora deste âmbito, muitos dos casos de aumento de preços “mais facilmente redundarão em ilícitos concorrenciais” – em caso de concertação de agentes económicos para subida de preços – do que propriamente em crime de especulação.
“Os casos mais complexos serão aqueles em que possa sustentar-se a existência de lucro ilegítimo – análise que convoca a necessidade de aferir-se das margens razoáveis de lucro em cada setor, bem ou serviço, num determinado contexto económico e comercial. Não são conceitos estanques, e, por isso, não pode concluir-se que uma subida acentuada de preços, per se, possa indicar indícios de crime de especulação”, sublinhou Ana Rita Duarte de Campos.
Já Alexandra Mota Gomes e Rui Ferreira Antunes alertaram que o legislador considerou como sendo especulativas e, por isso, “merecedoras da censura da lei”, as condutas do agente que impliquem, quer uma alteração do preço no sentido de o elevar, quer a prática de preços superiores “aos permitidos pelos regimes legais a que os mesmos estejam submetidos”. “Quer isto dizer que o legislador não definiu em concreto o que é considerado especulação, optando antes por punir determinados comportamentos que os apelida de especulativos“, referem.
Assim, os advogados da Antas da Cunha Ecija explicam que a simples alteração de um determinado preço não pode, por isso, e sem mais, ser considerada especulativa. “Os limites são os estabelecidos no próprio preceito legal que pune as condutas consideradas especulativas, e que distingue as que devem, ou não, ser merecedoras de tutela penal“, acrescentam.
A lei não define propriamente o que é o conceito de especulação, optando pela punição de determinados comportamentos que considera especulativos, o que pode levantar a problemas de interpretação.
A Advocatus, João Luz Soares explicou que anteriormente a legislação previa “limites específicos”, fixados por referência a percentagens, para os preços e para as margens de lucro líquidos, e, posteriormente, pela concretização de um teto máximo para este movimento de subidas de preços. Mas a atual legislação não estipula critérios quantitativos expressos.
Assim, o advogado considera que o problema passa pela operacionalização da rede legal. “Exige-se, por um lado, um papel ativo de fiscalização por parte da autoridade supervisora na deteção em todos esses patamares de possíveis comportamentos indevidos, que é um primeiro momento de avaliação. Por outro lado, a inexistência de estipulação de valores/limites concretamente definidos acaba por dificultar a análise casuística das situações e a definição se existe, ou não, in casu, especulação. De uma abordagem rigorosa e quantitativa pode-se passar, por isso, para uma abordagem que assenta na necessidade de momentos valorativos e com algum grau de discricionariedade – o que pode comprometer a validade/eficácia do combate a estes fenómenos de especulação”, acrescentou.
Especulação é crime? Sim, é
Apesar de a atual lei não estipular critérios quantitativos expressos sobre os limites específicos para os preços e margens de lucro, enumera algumas condutas que se enquadram no crime de especulação. Os advogados da Antas da Cunha Ecija explicaram que o bem jurídico protegido que se visa salvaguardar com a incriminação da especulação é a “estabilidade dos preços no mercado” e que o legislador quis incriminar condutas lesivas dos interesses do setor económico e do regular funcionamento da economia, ainda que indiretamente proteja também os interesses dos consumidores.
“Pratica o crime de especulação de preços não só quem desrespeite os preços subtraídos à livre disponibilidade dos operadores económicos, porquanto se encontram legal ou administrativamente fixados, mas também quem desrespeite os preços que resultam do “regular exercício da atividade” para os bens ou serviços em causa, com vista à obtenção de um lucro ilegítimo, ou seja, um lucro que sem a adulteração das regras de mercado não obteria“, referiram Alexandra Mota Gomes e Rui Ferreira Antunes.
Não há muitos casos de condenação por especulação em Portugal, apesar de ser um crime introduzido no nosso ordenamento jurídico em 1984. Isso não significa que haja muita ou pouca especulação. Significa apenas que os casos que chegaram aos tribunais não são expressivos.
Previsto no artigo 35.º, do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, o crime de especulação visa condutas como a venda de bens ou prestação de serviços superiores aos permitidos pelos regimes legais a que os mesmos estejam submetidos; alteração, sob qualquer pretexto ou por qualquer meio e com intenção de obter lucro ilegítimo, dos preços que do regular exercício da atividade resultariam para os bens ou serviços, ou, independentemente daquela intenção, os que resultariam da regulamentação legal em vigor; venda de bens ou prestação de serviços por preço superior ao que conste de etiquetas, rótulos, letreiros ou listas elaborados pela própria entidade vendedora ou prestadora do serviço; e venda de bens que, por unidade, devem ter certo peso ou medida, quando os mesmos sejam inferiores a esse peso ou medida, ou contidos em embalagens ou recipientes cujas quantidades forem inferiores às nestes mencionadas.
Todas estas condutas sob a forma dolosa podem ser puníveis com pena de prisão de seis meses a três anos e pena de multa não inferior a 100 dias. Havendo negligência, a pena aplicável será a de multa de 20 a 100 dias. “Em qualquer dos casos descritos, o Tribunal poderá ainda decretar a perda dos bens em causa ou, não sendo esta possível, determinar a perda de outros bens iguais aos do objeto do crime que sejam encontrados em poder do infrator”, explicaram os advogados da Antas da Cunha Ecija.
“A lei não define propriamente o que é o conceito de especulação, optando pela punição de determinados comportamentos que considera especulativos, o que pode levantar a problemas de interpretação. Por outro lado, e no caso concreto da alínea b) do número do artigo 35.º, ao falar-se em preços que resultem do regular exercício da atividade estamos a optar por um conceito aberto e que necessita de concretização posterior atenta, até, a não fixação legal expressa desses limites”, notou João Luz Soares. Também Alexandra Mota Gomes e Rui Ferreira Antunes salientaram que a falta de definição do que é “lucro ilegítimo”.
Solução passa pelo combate
Da fiscalização, informação até à intervenção do Estado, várias são as formas de combate à especulação de preços apontadas pelos advogados. Por exemplo, Alexandra Mota Gomes e Rui Ferreira Antunes consideram que o combate passa pela intervenção do Estado, competindo à ASAE a fiscalização e a investigação dos delitos antieconómicos.
Para Ana Rita Duarte de Campos, a solução passa pela fiscalização e informação aos agentes económicos. “Não há muitos casos de condenação por especulação em Portugal, apesar de ser um crime introduzido no nosso ordenamento jurídico em 1984. Isso não significa que haja muita ou pouca especulação. Significa apenas que os casos que chegaram aos tribunais não são expressivos. São consideravelmente mais expressivas, por exemplo, as condenações por práticas concertadas de concorrência”, considerou.
A sócia contratada da Abreu Advogados admite que a questão da especulação nos preços pode ocorrer em mais situações, porque “qualquer agente económico envolvido no circuito de produção e comercialização de bens ou serviços, independentemente de poder, por si ou conjuntamente com outros, influenciar o comportamento do mercado, pode incorrer na prática deste crime”.
O legislador não definiu em concreto o que é considerado especulação, optando antes por punir determinados comportamentos que os apelida de especulativos.
Por outro lado, João Luz Soares considera que o combate à especulação tem que ser articulado, a um nível macro, com o próprio quadro de combate ao fenómeno da inflação, mas pode, a um nível estratégico, contar com algumas ações concretas.
“É necessário um óbvio reforço das ações de fiscalização, dotando a ASAE de recursos suficientes e adequados, com uma possível consideração contraordenacional dos casos, mas é necessário também concretizar uma possível intervenção ao nível da fixação dos bens essenciais de primeira linha. Não é também despiciendo considerar uma análise da operacionalidade do presente quadro legal, com possível construção de balizas concretas para aferir a avaliação da subida dos preços”, sublinhou.
O advogado da RSA acrescentou ainda que monitorizar e compreender a estrutura de formação dos preços é também fundamental. “É necessário, por isso, uma discussão e resposta coesa com o contributo de todos os organismos e plataformas (PARCA, Ministério da Agricultura, ASAE, Direção Geral do Consumidor, Direção Geral das Atividades Económicas, Autoridade para a Concorrência e a Defesa dos Direitos dos Consumidores) naquilo que é a construção de uma cultura de equilíbrio e consideração social na fixação dos preços”, concluiu.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
Há travões à especulação de preços? Há, mas lei tem “fragilidades”
{{ noCommentsLabel }}