Uns estão prontos para saltar para o mercado de capitais, outros nem consideram a hipótese. As dúvidas e as motivações de quem pode, um dia, entrar em bolsa, contadas pelos próprios.
O melhor dinheiro é o que vem dos clientes. É o mais barato, o que chega sem letras pequenas no rodapé do contrato, o que mais valida um negócio. É uma máxima fácil de compreender para quem quer que venda um produto ou serviço. Mas este dinheiro não estica. E, quando a visão da empresa é muito mais larga do que o seu preçário, é preciso encontrar dinheiro que estique. A boa notícia é que o dinheiro não é todo igual. A má é que o número de alternativas é finito: pedir crédito à banca, abrir a porta a fundo de capital de risco, fazer parceria com um business angel. Ou entrar em bolsa.
Esta última hipótese é a que a Euronext está a tentar transformar em primeira para as pequenas e médias empresas tecnológicas da Europa. Mas esse já é um capítulo adiantado desta história. Antes desse, vem aquele em que os mercados de capitais precisam urgentemente de se renovar. Depois, aquele em que a nova geração de empresas olha para a bolsa como uma fonte de financiamento alternativa interessante. No fim, e quando corre bem, o casamento dos dois.
Bolsa, o bicho-de-sete-cabeças
Perceber este esforço de explicar aos pequenos e médios empresários que a bolsa não é um bicho-de-sete-cabeças implica olhar para trás. Tomando o caso de Portugal como exemplo: as saídas da Cimpor e da Brisa, em 2012, foram o prefácio, mas foi o colapso do Banco Espírito Santo (BES), em 2014, que ditou o rumo desta história. Consigo, o BES arrastou para fora do PSI-20 a Espírito Santo Financial Group. E arrasou a Portugal Telecom, que acabou por dar origem à Pharol, um zombie em Lisboa.
A partir daqui, foi sempre a cair. O PSI-20 transformou-se em “PSI-18”, depois em “PSI-17”, com a queda do Banif, em dezembro de 2015. Foi só no ano seguinte, em março, que o principal índice acionista nacional voltou a contar com 18 cotadas: Impresa e Teixeira Duarte saíram, entraram Sonae Capital, Corticeira Amorim e Montepio (as unidades de participação de um fundo, não propriamente ações).
Este ano, novo revés: o CaixaBank lançou uma oferta pública de aquisição (OPA) para ficar com a parte do BPI que ainda não detinha, a Allianz não aceitou vender a sua participação de 8% e a operação acabou por reduzir de tal forma a liquidez das ações do banco português que a Euronext o excluiu do PSI-20.
Hoje, Portugal é um retrato perfeito, em ponto pequeno, da revolução que se faz sentir nos mercados de capitais. O setor financeiro nunca pesou tão pouco e as empresas mais pequenas vão ganhando espaço nas preferências dos investidores. É, como diz Paulo Rodrigues da Silva, o novo presidente da bolsa de Lisboa, “um momento de transição” para Portugal. “Tivemos empresas muito grandes que acabaram por sair da bolsa. Agora, estamos a ter o aparecimento de novas e pequenas empresas. Vai ser uma bolsa diferente. Vai ser constituída como uma bolsa com entidades que veem na bolsa uma oportunidade”, dizia, no mês passado, no primeiro encontro com jornalistas depois de ter tomado posse como presidente da Euronext Lisboa.
A “bolsa diferente” conta agora com a Ibersol e a Novabase, que foram promovidas ao PSI-20 para ocupar o lugar do BPI e vieram marcar o início de uma nova geração. É que, ainda que estejam a ter um dos melhores desempenhos entre as 19 cotadas do principal índice, a Ibersol e a Novabase entraram para a primeira liga da bolsa portuguesa sem que nenhuma cumpra a 100% os requisitos de entrada. Desde logo, a Novabase não chega a ter dispersos títulos no valor de 100 milhões de euros.
Cumprindo os requisitos ou não, as duas empresas, uma tecnológica, a outra do setor alimentar, fizeram algo importante: diversificaram a bolsa. Ninguém quer falar em “desespero” por diversificação de setores, até porque o desempenho do mercado de ofertas públicas iniciais (IPO, na sigla anglo-saxónica) tem sido positivo, pelo menos a nível europeu. Depois de 2012, um ano francamente mau, o montante levantado com as entradas em bolsa tem estado sempre a aumentar.
O mercado de IPOs na Europa Ocidental
Mas não há como negar que o mercado de capitais precisa de se renovar e é esse esforço que tem sido feito. “Estamos a trabalhar com as empresas. Explicar o que é a bolsa, explicar que não é um bicho-de-sete-cabeças. Há um trabalho de cooperação com o Governo, com o regulador, e com as associações empresariais”, reconhecia Paulo Rodrigues da Silva na mesma ocasião. Mas “os resultados não são imediatos. É uma atuação de médio e longo prazo”.
Bolsa, o evento de liquidez
“O mercado de aquisições, neste momento, está muito quente na nossa área. Portanto, é muito provável que nós nunca cheguemos a ter oportunidade de ir para a bolsa, porque vai aparecer um comprador entretanto”. João Félix foi um dos empresários portugueses que a Euronext levou a Bruxelas para participar no TechShare, um dos programas que promove para atrair PME (neste caso, tecnológicas) para a bolsa, a pensar na “atuação de longo prazo”.
A área “muito quente” é a da mobilidade. A empresa que fundou e que lidera, a Mobiag, uma plataforma de soluções de partilha e aluguer de carros, já levantou cerca de 1,5 milhões de euros junto de investidores privados, incluindo a Hertz Portugal. E entrar em bolsa é, como se percebe, uma possibilidade remota que, a acontecer, será a longo prazo.
É o perfil tipo dos participantes do TechShare: veem a entrada em bolsa apenas como uma possibilidade, num prazo de vários anos, e estão aqui para saber qual a preparação que têm de fazer. Ainda que nunca venham a concretizar um movimento destes, não perdem nada em saber como se faz. Mesmo que, como diz João Pereira, isto seja visto, na sua área, como “a loucura última” de um negócio que “já é tão olímpico e de um sucesso tal”, que a única saída é… entrar. Em bolsa.
João Pereira é o fundador da Magnomics, uma spin off do Instituto Superior Técnico que nasceu em 2013, para criar um novo detetor portátil de ADN. O produto ainda não existe, a empresa ainda está “numa fase estritamente de desenvolvimento” e não tem receitas. Porque é que estão a tentar compreender o mundo dos mercados de capitais? “Quando se faz uma empresa destas, normalmente, pensa-se numa saída por venda. Mas este programa fez-me perceber a diversidade de mercados que existem. É uma coisa em que nunca pensei porque achei que não valia a pena e, agora, reparo que vale”.
Entre os indecisos, também há quem esteja pronto para saltar já para o mercado de capitais. É o caso de Odile Allard, francesa, CEO da Fluoptics, que desenvolve um sistema de imagiologia para cirurgias. Se desse para entrar amanhã em bolsa, entrava. “Precisamos de dinheiro para seguir em frente. Já geramos receitas no mercado clínico, mas não o suficiente para financiar o produto ou para alcançar o break even. O próximo passo é sucesso comercial a nível mundial. Para isso, precisamos de muito dinheiro, entre 15 e 39 milhões de euros”, conta Odile Allard. O objetivo, agora, é fazer um levantamento junto de investidores privados, para chegar ao break even e, depois, estar pronto para entrar em bolsa. “Estou aqui para saber o que tenho de preparar para fazer um IPO daqui a 18 ou 24 meses”.
É também o caso da portuguesa Impacting Group, ainda que o plano desta seja a cinco anos. O grupo, que conta com várias empresas na área do marketing digital, quer entrar em bolsa a médio prazo, para “continuar a expandir-se para várias geografias”, explica Ana Silva, diretora financeira da empresa.
Outros ainda há que não precisam de financiamento, não querem abdicar de uma parte da empresa e não têm nos planos uma entrada em bolsa. Mas, se puderem saber como é que isso se faz, por que não?
Ben Woldring era um menino-prodígio holandês. Fundou a Bencom quando tinha 13 anos, em 1998, mesmo antes da bolha da internet. O grupo, criado a partir de um projeto da escola, conta com vários sites de comparação de preços, das telecomunicações às viagens. Entrar em bolsa? Não, obrigado. “O melhor financiamento é aquele que vem dos clientes. Desde o dia 1 que a Bencom é autossustentável, nunca precisámos de qualquer crédito. Estamos aqui a fazer pesquisa de campo”, diz Ben Woldring.
O que faria, então, com que estes empresários avançassem para a bolsa? Pode resumir-se em três palavras: liquidez, visibilidade e controlo.
Liquidez
A primeira é a mais óbvia. “A entrada em bolsa é, claramente, um evento de liquidez para os fundadores”. E, quando foram os fundadores que avançaram com o dinheiro inicial, isso é de extrema importância. “Fazer uma startup é uma coisa em que se investe muito do nosso tempo e dinheiro, e em que acontecem coisas como não recebermos o nosso ordenado, ou recebermos ordenados muito abaixo do mercado, durante muitos anos, com risco grande. A dada altura, também queremos ver algum retorno”, conta João Félix.
Por outro lado, a liquidez é uma forma de levar a empresa mais longe, como será o caso da Impacting Group. “Percebemos que, para uma empresa continuar a crescer e a dar frutos, precisa de continuar a investir e a ter mais financiamento. O passo interessante para aumentar a liquidez das ações da empresa é entrar em bolsa, para ser muito mais fácil o processo de financiamento e as consequentes rondas que venham por aí. É um processo quase natural”, explica Ana Silva.
Visibilidade
Levantar “muito dinheiro e muito rapidamente permite acelerar o desenvolvimento da empresa”, refere Odile Allard. E isso “aumenta a sua visibilidade para um grande player do mercado”, abrindo as portas a uma futura aquisição. Mesmo que o objetivo não seja vender a empresa no futuro, a visibilidade importa especialmente quando o foco são os “mercados de massa”, lembra Ben Woldring.
Controlo
Entrar em bolsa significa deixar de estar dependente de um ou dois grandes investidores para passar a depender de vários, que poderão não ter direitos de voto. Veja-se o caso da Snap, que entrou em bolsa no início do mês passado, naquela que foi uma das maiores ofertas públicas iniciais do setor tecnológico. A empresa ficou avaliada nos 20 mil milhões de dólares, mas, mais importante, Evan Spiegel e Bobby Murphy, os fundadores da empresa, convenceram os investidores a deixarem-lhes 89% dos direitos de voto. Ou seja, o dinheiro entra, mas quem manda na empresa são os fundadores.
Bolsa, a escrutinadora
“Escrutínio” é o bicho papão para todos os empresários que equacionam entrar em bolsa. Não é que não estejam já sujeitos a ele. Por um lado, cada setor em que atuam tem a sua própria regulação, já de si apertada. Por outro, a grande maioria destas empresas já tem investidores externos, como business angels ou fundos de capital de risco, e qualquer um destes exige saber o que se passa na empresa.
Mas, uma vez no mercado de capitais, o escrutínio a que passam a estar sujeitas é bem diferente. Mesmo nos mercados não regulamentados, onde as exigências são menores, as empresas têm de publicar qualquer informação que possa influenciar a negociação dos seus títulos, entre vários outros requisitos. “É necessário estarmos muito seguros e bem preparados para nos colocarmos dessa maneira”, reconhece João Pereira.
Ao mesmo tempo, qualquer pequeno percalço nas contas pode ser sinónimo de um grande trambolhão na bolsa, se não for bem explicado. “Quando começamos novas atividades, é sempre um negócio de prejuízos. Custa muito tempo aos nossos melhores programadores, aos nossos melhores vendedores, às nossas melhores pessoas de marketing, temos de contratar novas pessoas para fazer acontecer. E, quando nos concentramos demasiado nos resultados trimestrais, não vemos o panorama mais alargado. Os investidores têm de perceber que, no próximo ano, vamos conseguir resultados positivos”, simplifica Ben Woldring.
Nada que demova os responsáveis da Euronext de tentar aliciar estes empresários, até porque, acreditam, oferecem condições competitivas em relação a outros potenciais investidores. “Os investidores olham para o panorama geral se houver uma boa explicação. Se houver comunicação, se o CEO explicar um mau resultado, as ações não vão necessariamente cair”, sublinha Eric Forest, CEO da Enternext. O mais importante é que “as empresas tecnológicas têm necessidades significativas em termos de financiamento, e a bolsa é, definitivamente, eficiente para esse propósito”, sublinha Eric Forest. “Acho que há uma ligação forte e natural entre este tipo de empresas, jovens e tecnológicas, e a bolsa”.
O futuro? Pedro Wilton, responsável pela área de listings da Euronext Lisboa, resume. “As PME tecnológicas têm estado sempre abertas a ouvir, é gente entusiasmada. O ponto de interrogação é se e quando querem ir para a bolsa”.
A jornalista viajou para Bruxelas a convite da Euronext.
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