Pomba Centeno “voa baixo” num BCE dominado por falcões
Nas últimas semanas, o governador do Banco de Portugal deu entrevistas ao italiano La Stampa, ao influente site Politico, ao espanhol ABC e à Bloomberg. Qual a influência de Centeno?
La Stampa, Politico, ABC e Bloomberg. Os holofotes da imprensa internacional têm batido com maior intensidade sob Mário Centeno nos últimos tempos, com o governador do Banco de Portugal a defender, em entrevistas publicadas em espanhol, italiano e inglês, uma política de subida de juros mais suave, contra a opinião de endurecimento que vai dominando o Banco Central Europeu (BCE).
Se dúvidas houvesse, Centeno confirmou aquilo que a gíria financeira chama de “pomba” – por contraposição aos “falcões”. Apesar do palco mediático que parece estar a conquistar, qual o alcance e influência da intervenção do português?
Quem é quem no conselho do BCE
O gráfico em cima é da Bloomberg Economics (acesso pago), a unidade de research da Bloomberg. Ainda que possa traduzir a realidade de uma forma simplista e possa ser uma construção subjetiva, ajuda a perceber quem é quem no conselho de governadores do BCE determina o rumo dos juros na Zona Euro.
Com a próxima reunião a estar agendada para esta quinta-feira, pode ser um guia importante para perceber as decisões que de lá saírem — e em cima da mesa está uma subida das taxas de 25 pontos base ou mais.
Sem surpresas, em linha com aquilo que são as intervenções públicas, Mário Centeno surge do lado das “pombas” (ver eixo horizontal), na mesma linha dos governadores espanhol e italiano (Pablo de Cos e Ignazio Visco, respetivamente), mas longe do grau de influência deles (ver eixo vertical).
Aliás, o governador português é apenas visto com maior poder de influência, do lado das “pombas”, do que os responsáveis máximos dos bancos centrais de Malta e Chipre (Edward Scicluna e Constantinos Herodotou).
“Por mais que nos custe, é Portugal. Não é só a dimensão. Portugal é um país que pede com maior frequência ajuda financeira”, explica o professor de Economia Monetária na Universidade do Minho Luís Aguiar-Conraria.
“O sistema financeiro português é muito pequeno e Portugal torna-se irrelevante”, acrescenta o professor de Gestão e Finanças no ISEG João Duque, que confessa, ainda assim, alguma surpresa com o grau de influência que se classifica o governador do Banco de Portugal – atrás do governador grego, Yannis Stournaras.
“Mário Centeno tem atrás de si um passado como ministro das Finanças que não parece corresponder ao que seria de esperar deste gráfico, embora a sua posição aqui seja diversa da de ministro das Finanças, e isso até possa jogar contra si nestes painéis de avaliação”, considera João Duque.
Para o docente do ISEG, a sua visão como antigo ministro pode moldar um pouco o discurso de Centeno e isso pode ter influenciado a apreciação feita numa classificação que é subjetiva.
"Por mais que nos custe, é Portugal. Não é só a dimensão. Portugal é um país que pede com maior frequência ajuda financeira.”
Embora as políticas orçamental e monetária sejam assuntos diferentes (e a independência do segundo em relação ao primeiro vem consagrado nas regras), se o facto de ser ex-ministro das Finanças e ex-presidente do Eurogrupo tem implicações, Luís Aguiar-Conraria considera que isso vai no sentido de “tirar-lhe força” no seio do conselho de governadores, “pois sugere que pode não ser independente”.
Mas o professor da Universidade do Minho argumenta que Centeno tem relevado independência do Governo. “Viu-se isso no recente aumento de 1% da Função Pública. Centeno ter criticado esse aumento é interessante, porque até vai contra o que fez enquanto era ministro”, explica.
Cada membro tem um voto, mas não valem todos o mesmo
Quando em março o BCE decidiu aumentar as taxas em 50 pontos base, num clima de turbulência com a queda do americano Silicon Valley Bank e do Credit Suisse, nem todos concordaram com esta decisão.
Centeno terá sido um dos que preferia manter os juros até que as tensões nos mercados aliviassem, mas prevaleceu a opinião dos “falcões”.
Como nos mostra o gráfico, os “falcões” estão em maior número: são 14 membros a defenderem que o aperto dos juros deve continuar para domar a inflação que continua bem acima do objetivo de 2%. Entre eles estão os governadores alemão, holandês e belga, Joachim Nagel, Klaas Knot e Pierre Wunsch, respetivamente, com maior poder de influência.
“As palavras de Centeno não colhem na maioria dos membros do BCE. Estes tendem a ter uma posição mais monetarista e em linha com o que é a defesa do seu fim, deixando para os governos, pelas políticas orçamentais, de rendimentos, fiscais e outras, a defesa das economias e das pessoas”, comenta João Duque.
As decisões no conselho são colegiais, ou seja, são tomadas em conjunto. Cada um dos 26 membros — seis membros da comissão executiva liderada por Christine Lagarde, mais os governadores dos 20 bancos centrais do Eurosistema — do conselho tem direito a um voto, mas nem todos valem o mesmo.
"As palavras de Centeno não colhem na maioria dos membros do BCE. Estes tendem a ter uma posição mais monetarista e em linha com o que é a defesa do seu fim, deixando para os governos, pelas políticas orçamentais, de rendimentos, fiscais e outras, a defesa das economias e das pessoas.”
Há um sistema de rotação – que passou a ser usado quando o número de governadores ultrapassou os 18, em 2015, aquando da entrada da Lituânia para a Zona Euro – e que confere maior poder ao grupo de países Alemanha, França, Itália, Espanha e Holanda.
Os governadores dos bancos centrais destes cinco países partilham quatro votos. Os restantes 15 dividem 11 direitos de voto. Como? Revezando-se mensalmente. A rotatividade só não se aplica à comissão executiva, com os seis membros a terem lugar permanente nas reuniões.
Segundo o calendário do BCE, o encontro agendado para 4 de maio não terá a representação de Espanha (do grupo das maiores economias), nem da Lituânia, Luxemburgo, Malta e Áustria (do outro grupo).
Relativamente a Mário Centeno, o governador português estará de “folga” nos meses de junho e julho – falhará assim as reuniões de política monetária de 15 de junho e de 27 de julho.
Tensão na banca dá asas às pombas
O que esperar para o futuro? Os falcões continuarão a voar mais alto. “Enquanto estivermos apertados pela inflação core e pela política monetária americana, o BCE vai continuar a apertar a sua política de gestão de massa monetária e das remunerações dos ativos e passivos depositados junto do BCE como forma de gestão de comportamentos e preços”, explica o economista e docente do ISEG.
Desde julho, as taxas diretoras do BCE – são três – já aumentaram em 350 pontos base para fazer regressar a taxa de inflação – que já esteve acima dos 10% e tem caído nos últimos meses — para a meta dos 2%.
Luís Aguiar-Conraria lembra que faz mais sentido aplicar a distinção entre “pombas” e “falcões” – “que nada têm de negativo ou pejorativo” – nos EUA, onde a Reserva Federal americana tem o duplo objetivo de manter a inflação baixa e garantir o pleno emprego.
“No BCE isso não existe. O único objetivo relevante é a inflação nos 2%. O que quer dizer que, quando a inflação está nos 8%, todos eles estão a falhar, sejam eles pombas e falcões”, explica.
Em todo o caso, mesmo transpondo esta dicotomia para Frankfurt, o professor da Universidade do Minho considera que se deve entender este “braço de ferro” à luz do ciclo da economia: “A capacidade de influência entre falcões e pombas tem mais a ver com o ciclo económico do que com outra coisa. Com a pandemia, a prioridade era o emprego e a manutenção da capacidade produtiva. Com a inflação a disparar, ainda mais sem o desemprego subir muito, os falcões estão a ganhar argumentos”.
Com efeito, os acontecimentos registados no setor financeiro durante março vieram colocar as coisas noutra perspetiva e “dar asas” às “pombas”: a necessidade de o aperto monetário não desestabilizar o sistema financeiro.
“As pombas podem agora dizer que é preciso ter cuidado com o setor bancário, pois já tivemos algumas corridas aos bancos e algumas falências presumivelmente influenciadas pelas taxas de juro mais altas”, argumenta Luís Aguiar-Conraria.
João Duque aponta que “a posição dos bancos ainda é confortável”. “Esperamos que as subidas de taxas não prejudiquem demais o rendimento das famílias a ponto de voltar a stressar os bancos”, acrescenta quem vê o BCE a aumentar as taxas em 25 pontos base “numa das próximas reuniões” e “talvez ainda outra dessa grandeza” durante o terceiro trimestre.
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