Investimento na rede elétrica deve ser pago por promotores e consumidores

Parte do investimento na rede elétrica deverá ser pago através das tarifas da eletricidade, mas "promotores também terão de pagar o que é devido", diz líder da Associação Portuguesa de Energia.

O líder da Associação Portuguesa de Energia (APE), João Torres, acredita que os investimentos necessários nas redes elétricas, para que estas sirvam a transição energética, terão de ser repartidos entre promotores e consumidores, sendo que os fundos europeus também deverão ter um papel relevante.

João Torres é membro não executivo do conselho de administração das empresas de distribuição da EDP no Brasil e diretor da Elecpor, a Associação Portuguesa do Setor da Eletricidade, tendo sido CEO da portuguesa E-Redes por mais de uma década, até 2021. Vai estar esta terça-feira na Lisbon Energy Summit, a moderar o debate “Desbloqueando a Economia do Hidrogénio”.

Em entrevista ao Eco/Capital Verde, além de partilhar a sua visão sobre o financiamento das redes, indica que, no que diz respeito às ligações energéticas entre a Península Ibérica e Europa, “nunca como agora houve uma perceção de que é fundamental acontecer”. Vê o hidrogénio verde com um papel importante para a segurança energética e para abastecer a indústria, e diz-se expectante com as baterias que poderão ser fabricadas com base em materiais diferentes do lítio.

As redes podem ser um travão às ambições de instalação de renováveis? Que desenvolvimentos são mais urgentes e necessários?

É fundamental para a penetração das energias renováveis que tenhamos as redes prontas para receber e transportar. Aconteceu com o projeto das eólicas no início da década de 2000: a produção era no norte e o consumo é mais a sul. Foi preciso fazer este mesmo trabalho. Portanto, do ponto de vista conceptual, não há aqui nada de novo. É o mesmo trabalho: fez-se a configuração da rede, e fizeram-se os investimentos para que os parques eólicos em Trás-os-Montes pudessem vir a abastecer consumos que naturalmente não estão em Trás-os-Montes. O desafio que as redes têm é, face às novas configurações, que, por exemplo, não é nos parques solares do Alentejo que está o consumo. É preciso ter o ponto de ligação e transportar para os lugares de consumo. Este é um investimento que exige um financiamento ajustado para que possa acontecer. As redes, pela positiva, podem ser facilitadores da penetração das renováveis, mais do que um obstáculo. As obras fazem-se, estão na nossa mão. Precisamos é de encontrar um modelo de financiamento, um balanço entre o que os promotores podem colocar do seu lado, e aquilo que podemos socializar via tarifa. Espero que nos próximos anos se consiga criar esta rede. Agora, há aqui um desafio. O que se sente agora é uma pressão, um planeamento das redes que é mais complexo. Nem tudo vai sempre ao mesmo ritmo.

O ritmo do desenvolvimento das redes é suficiente para não servirem como travão?

O que se nota é que qualquer plano de investimento feito há dois anos, hoje está completamente desatualizado. Os planos de investimento são longos. O PNEC 2030 [Plano Nacional Energia e Clima] que está agora em revisão, se lermos o último, de há dois anos, parece que foi feito em 1980. É preciso acelerar, mas essa aceleração sinto que está a acontecer, o que já é uma boa notícia. Porque podíamos estar distraídos e não estarmos focados nisso. Sinto que há uma preocupação grande de os operadores de rede responderem a este desafio.

Afirmou que o modelo de financiamento é uma questão relevante. Tem uma opinião sobre que modelo poderia funcionar, qual seria equilibrado?

O nosso modelo tarifário é um modelo em que pagamos todos para que todos sejam beneficiados. Diria que faz sentido que esses investimentos se possam colocar na tarifa. Todos os outros, teremos de os colocar como condição para os promotores os fazerem. Não é muito diferente do que já acontecia de há uns anos para cá. Hoje há muito mais procura. A tarifa tem de ser protegida sob pena de levar com sobrecustos que depois sejam difíceis de aceitar, de explicar. Mas nisso, a regulação está muito atenta. Nos últimos anos começou a notar-se uma preocupação maior em aceitar colocar na tarifa investimentos que não são claramente reconhecidos como investimentos de benefícios. Alguma coisa a tarifa há-de pagar, os promotores terão de pagar aquilo que também é devido.

Acredita que a parte que caiba aos consumidores pagar, não os irá sobrecarregar?

O modelo tarifário é muito complexo. Muitas vezes, encontra-se folga em determinadas parcelas, que permitem que o regulador possa ser mais generoso noutras. O objetivo último é que a tarifa seja estável, previsível e, naturalmente, o mais reduzida possível. Temos verificado, até nos últimos anos, que há parcelas que se têm tornado negativas. Mas, dentro do objetivo último de uma certa estabilidade e previsibilidade das tarifas, há componentes que podem ser consideradas para cobrir alguns pagamentos. Dou o exemplo da mobilidade elétrica. O regulador sempre se recusou a suportar investimentos em mobilidade elétrica, porque é fácil perceber que quem tem acesso a esse benefício do veículo elétrico é uma parcela relativamente pequena dos seis milhões de consumidores. Sempre houve essa preocupação e julgo que não vai deixar de estar presente.

O eólico offshore vai exigir novas ligações de rede. A APREN [Associação Portuguesa de Energias Renováveis] veio defender que devem ser pagas pelos consumidores. Concorda? Qual seria a prática mais comum?

Dito assim, não. Diretamente não. Tem de se fazer o tal balanço. Uma parte será paga pelos consumidores, é inevitável. Mas parece-me que os promotores têm aqui também um papel, e os fundos europeus, o PRR [Plano de Recuperação e Resiliência]… é para isto que estes grandes programas de fundo servem, para fazer medidas de transformação. Tenho uma grande expectativa que grande parte dos fundos para este projeto de eólico possa vir de fundos de transformação. É essencial estabelecer o ritmo certo de se ir avançando. Estamos com o ritmo certo?

Qual é a sua opinião?

Só sei que se fosse eu a decidir perguntava isso. Quero acreditar que os decisores fizeram essa pergunta e ela está a ser respondida com o que foi apresentado [um leilão para a capacidade de 10 gigawatts (GW), iniciando nos 2 GW].

Os preços do gás desceram a mínimos de 2021. As reservas de gás na Europa estão, para já, em níveis reconfortantes. O que podemos esperar em relação aos preços da eletricidade e do gás pagos pelos consumidores em Portugal?

Um bom nível de armazenamento vai reduzir volatilidade e trazer estabilidade aos preços de mercado, sendo até de esperar alguma redução. Será maior ou menor em função da avaliação de risco por parte dos agentes de mercado, bem como da disponibilidade de fontes renováveis.

O reforço das interligações entre Portugal e Espanha, e entre a Península Ibéria e o resto da Europa, é urgente e importante?

É fundamental. A interligação entre a Península Ibérica e França quebra o conceito de ilha [energética]. E noto maior disponibilidade dos franceses do que há 35 anos, quando se começou a falar disso. E porquê? Porque a própria França precisa do conforto que os vizinhos possam dar. Depois, entre Portugal e Espanha, a partir do momento que se cria o mercado ibérico, o lado físico que suporta esse mercado tem de estar com o funcionamento pleno. Numa altura em que o solar está a aparecer em Espanha e Portugal, a certa altura há um split [divisão] entre os dois mercados, exatamente porque a interligação tem alguma limitação. Ter várias linhas acaba por incrementar a fiabilidade para podermos ter um mercado a fluir entre Portugal e Espanha. O grande salto em termos do mercado europeu são as interligações com a França. Nunca como agora ouve uma perceção de que é fundamental acontecer.

E vê possíveis problemas ao nível da segurança de abastecimento em Portugal neste contexto de transição energética?

Julgo que não. Um país que tem renováveis como temos, pode usar o hidrogénio como armazenamento para a rede elétrica, para a produção de eletricidade.

Mas esse é um processo eficiente?

Estamos a falar de segurança. Não podemos a certa altura dizer: quero tudo seguro e baratinho. Nesse sentido, temos de ter as soluções. Depois, naturalmente há temas como o gás, que vai manter um papel durante bastante mais tempo do que aqueles que alguns anunciam.

Até quando?

Não digo uma data. Acho é que pode ser prolongado com questões como a captura de carbono. Gosto de sublinhar a palavra transição. O caminho está definido e, portanto, encerrará no tempo certo.

O E3G conclui que Portugal pode acabar por tirar menos partido da produção de hidrogénio e extração de lítio do que seria o potencial máximo no caso de não criar indústria que transforme estas matérias em produtos, como baterias ou aço verde. Concorda com a visão de que sem esta indústria o hidrogénio e o lítio não são apostas muito relevantes para o país em termos económicos? Qual o uso mais indicado que podemos dar ao hidrogénio, que faz mais sentido para a economia portuguesa?

A criação de um cluster industrial está na nossa mão. O lítio é mais complexo, já se sabe. Olho para o armazenamento na expectativa de que outros materiais apareçam para além do lítio. Além de baterias de lítio, vão aparecer muitas mais. Há muitos locais onde está a ser investigado. Lítio ainda não é um tema de energia, é mais de geologia. Do hidrogénio, penso que já podemos começar a desenhar um setor com essa intervenção. Não me parece que se coloquem temas como exportação no topo da agenda. Mas que pode ser um eixo importante, pode.

Importante, em particular, em qual das suas utilizações? Pode ser injetado na rede, usado para produzir eletricidade, para a mobilidade..

Do meu ponto de vista, a injeção para a indústria é um dos temas. Armazenamento para a eletricidade é outro dos temas. Mais difícil a mobilidade, porque a mobilidade elétrica é mais fácil.

Não estamos a dar demasiada atenção a este gás (hidrogénio) sem garantias de que seja uma aposta vencedora? Refletindo sobre o nível de desenvolvimento em que estamos agora.

Uma coisa é o que se fala do hidrogénio, outra é o que está a acontecer. A boa notícia é que as pessoas com quem falo de hidrogénio, e o mesmo digo sobre eólico offshore, e que vão ser os protagonistas destas áreas, têm os pés assentes no chão. Neste caso concreto está a dar-se a importância certa.

No âmbito das iniciativas europeias, os incentivos que têm sido lançados para a proliferação de energias renováveis têm sido criticados, pelo menos em comparação com a iniciativa norte-americana Inflation Reduction Act (IRA). O interesse dos associados da APE em investir no Velho Continente diminuiu em consequência destas duas peças legislativas? Como é que estas decisões afetaram os planos das empresas?

Acho que vai convergir e vamos ter na Europa incentivos semelhantes. Para já, estamos atrás. O modelo de decisão da Europa tem inúmeras vantagens e gostamos muito da Europa por isso mesmo. São os países todos a decidir. O processo é relativamente lento porque é preciso criar muitos consensos. O que faz com que os americanos respondam muito mais rapidamente a tudo, às crises e às oportunidades. O que me parece essencial na Europa é a previsibilidade. O mérito do IRA é dar previsibilidade para 10 anos. Quando alguém investe em energia sabe que vai trabalhar num quadro regulatório e legislativo estável. É o que as empresas pedem. Que não apareça mais um decreto.

Não tem então informação que os projetos dos associados da APE estejam a deslocar-se significativamente para os Estados Unidos?

Não. O que pedem é estabilidade e previsibilidade para tomar as suas decisões.

Outra das queixas mais comuns é quanto ao licenciamento. Muitos gostariam de andar mais depressa. Queria perguntar-lhe se notam melhorias no processo de licenciamento na sequência das ultimas alterações legislativas como o Simplex, ou a Lei de Bases. Que impacto podem ter os procedimentos atuais na capacidade de Portugal potenciar a sua produção e acelerar?

A simplificação dos procedimentos ajuda. O tema mais relevante são recursos: as pessoas que temos disponíveis para trabalhar nesses temas. A DGEG tem há anos uma necessidade de recursos. Podemos simplificar. E é bom que se simplifique. Mas é preciso reforçar capacidade de resposta com pessoas. Em particular de entidades do Estado que estão alocadas a este processo.

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