Advogados podem invocar direito de resistência? Juristas explicam

Especialistas contactados pelo ECO admitem que este direito à resistência deve ser usado apenas em situações excepcionais, mostrando-se contra a posição do Conselho Geral e da bastonária da Ordem.

A bastonária da Ordem dos Advogados (OA), Fernanda de Almeida Pinheiro, já fez saber que vai usar do direito constitucional de resistência contra o novo regime das ordens profissionais, que é considerado pela classe “um ataque sem precedentes à profissão”.

Este foi o resultado da votação que decorreu esta terça-feira, na Assembleia Geral Extraordinária, reunida na sede da instituição, em Lisboa. “A AG deliberou ainda mandatar o Conselho Geral e a Bastonária para adotar e executar quaisquer diligências e medidas de afirmação do Estado de Direito, e de exercício do Direito de Resistência ao desvirtuamento dos atos próprios da advocacia, do mandato forense e da proteção jurídica ancorados na Constituição da República Portuguesa”, segundo comunicado da Ordem dos Advogados.

“Se for preciso fazer parar a justiça, fá-lo-emos”, disse a bastonária, à saída da reunião, mandatada pela classe que representa para exercer o direito constitucional de resistência. Uma votação que, ainda assim, reuniu cerca de 2200 profissionais da advocacia, menos de 10% do número total de advogados a exercer em Portugal, que são cerca de 38 mil (contando com estagiários).

“É literalmente com isto que nos querem deixar: uma toga para enfeitar”, diz a bastonária e o seu Conselho Geral, em comunicado divulgado à classe, dias antes da reunião. “Permitir que os atos próprios sejam praticados por não advogados; substituir cada vez mais a consulta jurídica por ferramentas de inteligência artificial; desjudicializar a justiça ao máximo e criar formas processuais que dispensem a intervenção de advogado. Todos estes assuntos estão neste momento em cima da mesa e a ganhar cada vez mais força. É hora de agirmos! Não podemos, como sucedeu no passado recente, esperar para ver o que acontece e depois tentar reverter factos consumados”, diz o mesmo comunicado.

O que é o direito à resistência?

Diz este direito à resistência, previsto no artigo 21º da Constituição da República Portuguesa, que “todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública”.

Jane Kirkby, sócia da Antas da Cunha ECIJA explica que este direito “permite que qualquer cidadão incumpra ou desobedeça uma ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias, sendo oponível tanto perante poderes públicos como perante sujeitos privados. O recurso a este instituto tanto pode resultar num comportamento de abstenção (incumprir passivamente uma ordem) como numa conduta ativa (resistência a um ato ilegítimo)”.

José Luís Moreira da Silva, sócio da SRS Legal e líder da Associação das sociedades de advogados em Portugal (ASAP) defende que o direito de resistência tem consagração constitucional no artigo 21.º, constituindo uma garantia contra ofensas dos direitos, liberdades e garantias. Pode ser exercido “contra (i) ordens violadoras desses direitos ou (ii) para repelir pela força agressões, desde que não seja possível em tempo útil recorrer à autoridade pública”. Mas deve ser “exercido no contexto constitucional, pelo que deve ser usado de forma proporcional, não excessivo, nem desnecessariamente”.

O que dizem os juristas desta medida da bastonária?

Segundo uma das especialistas contactadas pelo ECO/Advocatus, há que ter cuidado com esta medida porque “a doutrina e a jurisprudência têm vindo, nos últimos anos, a reforçar o caráter ‘excecional’ do recurso a esta figura jurídica, devendo justificar-se dentro dos limites impostos pelo princípio da proporcionalidade”, desde logo porque “a banalização e a invocação do Direito de resistência em circunstâncias não merecedoras da sua tutela colocariam em causa o princípio do Estado de Direito de Democrática, facilitando a autotutela em detrimento da sana legalidade que se espera de qualquer ordenamento jurídico”, explica Jane Kirkby.

“Assim, o direito de resistência tal como se encontra consagrado não legitima a desobediência a ordens que sejam dadas segundo os parâmetros constitucionais do Estado de Direito, devendo apenas ser utilizado nos escassos cenários em que o recurso, em tempo útil, a outras formas de tutela dos direitos potencialmente violados não se afigura como possível”, defende, apesar de, por questões de cortesia, não falar diretamente da tomada de posição da líder dos advogados. “Lembremos que, por exemplo, quando foi decretado o Estado de Emergência em 2021 os empresários da restauração ameaçaram não fechar portas invocando o Direito à resistência. Não obstante, foram várias as vozes (e bem) que se fizeram ouvir no sentido da ilegalidade do comportamento”.

José Moreira da Silva, sócio da SRS Legal e presidente da Associação das Sociedades de Advogados em Portugal, defende que “a Ordem dos Advogados (e a ASAP também) entende que o Governo e a AR terão violado os princípios constitucionalmente previstos para as Ordens Profissionais e o estatuto dos Advogados. Acontece que o TC assim não entendeu, não tendo decretado a inconstitucionalidade preventiva do decreto aprovado pela AR com essas disposições. Embora essa lei de alteração do regime das associações públicas profissionais ainda tenha de ser concretizado para cada Ordem, o que voltará a colocar a questão, eventualmente de novo junto do TC”.

E explica que esta invocação ao direito à resistência pode vir a estar limitado por alguns fatores: “trata-se de uma entidade pública e os seus órgãos são titulares da Administração Pública (autónoma), logo estão vinculados às Leis (princípio da legalidade), devendo cumprir até que um tribunal as descarte, o TC já decidiu que a lei é constitucional. Assim, qualquer violação da lei pode desencadear a responsabilidade do infrator, levando até à sua destituição. Os atos praticados podem ser considerados ilegais, com todas as consequências”, avança o advogado. .

Em conclusão, o advogado sublinha que a invocação deste direito pela OA “não nos parece ser a melhor solução, atenta a instituição em causa, parte da própria Administração Pública. Teremos um conflito institucional entre o Estado Central e parte do próprio Estado. Os tribunais e as instituições internacionais, parecem-me as melhores medidas de defesa do interesse público da profissão. Chamando a atenção para o perigo da Justiça em Portugal. Esperemos que o bom senso impere e não se chegue a situações insustentáveis para todas as partes”.

Medidas propostas pelo Conselho Geral e bastonária

  • Realização de uma carta aberta para ser subscrita por todos os advogados, dirigida ao Conselho de Ministros, ao Presidente da República e à Comissão Europeia, para reforçar a essencialidade do Advogado na defesa do Estado do Direito e dos Direitos, Liberdades e Garantias dos cidadãos, bem como para defender os atos próprios e independência da advocacia.
  • Campanha de sensibilização junto da opinião pública, nomeadamente através dos meios de comunicação social, com a mesma finalidade do ponto anterior.
  • Ação de protesto (vigília) à porta dos Tribunais, nos tribunais da cidade de cada Conselho Regional e, se possível, nos tribunais das capitais de Distrito, às segundas-feiras, às 14h, durante uma hora, com a presença da bastonária e de todos os advogados que queiram aderir ao protesto, atrasando o início das diligências processuais nesse tribunal.

  • Presença da bastonária no ato de distribuição de processos, nos tribunais da cidade de cada Conselho Regional, lavrando protesto em ata.
  • Reunir com o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a presidente do Supremo Tribunal Administrativo e a Procuradora Geral da República, para expor as medidas de protesto adotadas pela advocacia.
  • Apresentação por cada advogado, pelo menos em cinco processos em que tenha intervenção, de declaração de protesto (em requerimento escrito ou verbal), em nome próprio e em cumprimento da deliberação da Assembleia Geral dos Advogado, requerendo ao dominus do processo (Juiz ou Magistrado/a do Ministério Público) que se oficie ao Primeiro Ministro, à Ministra da Justiça e ao Presidente da República.
  • Recomendar a todos os advogados que sejam chamados em escalas de prevenção que apenas compareçam no tribunal no final do prazo de uma hora.
  • Solicitar à Provedoria da Justiça e ao Presidente da República que seja requerida a fiscalização preventiva da constitucionalidade da Lei de alteração dos Estatutos da Ordem dos Advogados.
  • Intentar ação judicial junto do TJUE, por força da violação da Diretiva (UE) 2018/958 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Junho de 2018, e sensibilização para o protesto junto das instituições congéneres da Ordem dos Advogados, a nível europeu.
  • Advertir a Ministra da Justiça que os advogados podem parar a Justiça, não comparecendo em nenhum ato urgente no âmbito do processo penal, nomeadamente em primeiro interrogatório de arguido detido, pelo tempo que se revelar necessário.
  • A AG deliberou ainda mandatar o Conselho Geral e a Bastonária para adotar e executar quaisquer diligências e medidas de afirmação do Estado de Direito, e de exercício do Direito de Resistência ao desvirtuamento dos atos próprios da advocacia, do mandato forense e da proteção jurídica ancorados na Constituição da República Portuguesa.

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