Autoridade da Concorrência arrisca perder poder de realizar buscas

TC considerou que a regra que permite as buscas e apreen­sões de e-mails feitas pela AdC, apenas com base na autorização do Ministério Público, e não do juiz, é inconstitucional.

O Tribunal Constitucional (TC) considerou recentemente que a regra que permite as buscas e apreen­sões de e-mails feitas pela Autoridade da Concorrência (AdC), apenas com base na autorização do Ministério Público e sem a intervenção de um juiz de instrução, é inconstitucional.

Num acórdão de março, a juíza conselheira concordou com o recurso interposto pela Jerónimo Martins e pelo Pingo Doce da decisão de março de 2020 da Relação de Lisboa. Uma decisão que é sobre um só caso, mas há quem alerte para o risco de alastrar aos restantes processos de práticas restritivas da concorrência, em que o caminho seguido foi o mesmo.

Advogados contactados pelo ECO/Advocatus alertam que “não é necessária uma alteração da lei para a AdC cumprir a decisão do Constitucional”. E concluem que, se esta decisão se repetir em três processos diferentes, fica em aberto a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Aí, não restará outra hipótese à AdC, que ficará obrigada a ter o aval de um juiz para apreender correio eletrónico. E mais: acham “conveniente, e urgente, alterar o Regime Jurídico da Concorrência, adequando-o àquelas decisões, sob pena de, sendo declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a AdC perder de todo qualquer poder de realizar buscas nas entidades visadas nas suas investigações, e, com isso, perder grande parte dos seus poderes de investigação”.

As empresas do grupo Jerónimo Martins contestavam as buscas e a apreensão de e-mails realizadas em fevereiro de 2017, impugnação que não tinha tido concordância nem na primeira instância, no Tribunal da Concorrência, em Santarém, nem no recurso, no Tribunal da Relação de Lisboa.

No entanto, esta situação também pode contribuir para reduzir as coimas de mais de mil milhões de euros já aplicadas pela AdC em processos que envolvem o setor da distribuição alimentar, que envolve retalhistas como o Pingo Doce, o Continente, o Auchan, o Lidl e vários fornecedores.

Por isso mesmo, no dia 7 de junho, o presidente da AdC, Nuno Cunha Rodrigues, no Parlamento, defendeu a alteração da lei da Concorrência, argumentando que tem inconsistências, e admitiu alguma apreensão com estes acórdãos que põem em causa a atividade do supervisor. O presidente da AdC admitiu que “são acórdãos que causam alguma apreensão na AdC, porque estão em causa buscas que a Autoridade fez” através de um mandado emitido pelo Ministério Público, salientando que este organismo está a apreciar “tudo isto”.

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Nuno Cunha Rodrigues, presidente da AdCHugo Amaral/ECO

O que dizem os especialistas em Concorrência?

“O problema da atuação da AdC reside na própria norma que a suportou. De facto, a norma em causa permite buscas, exames e apreensões de documentos ou extratos de escrita, sob autorização de autoridade judiciária, leia-se, do Ministério Público”, explica Nuno Morais, sócio da Pragma e responsável pela área de direito da Concorrência e EU. Mas, na Constituição, está previsto que “é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”. E esta ressalva, diz o advogado, “obriga a que qualquer tipo de mandado destinado a autorizar as buscas e apreensões seja emitido por juiz, e não pelo Ministério Público. As decisões do TC em causa, desconhecendo pormenores de cada caso além dos próprios acórdãos, parecem-me, pois, adequadas ao teor e propósito da Constituição de garantir o sigilo da correspondência”.

Mas alerta que estes acórdãos proferidos apenas produzem efeitos no respetivo processo, sendo certo “que a decisão se repetir em três processos diferentes fica em aberto a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Exatamente por este motivo, é conveniente, e urgente, alterar o Regime Jurídico da Concorrência, adequando-o àquelas decisões, sob pena de, sendo declarada a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, a AdC perder de todo qualquer poder de realizar buscas nas entidades visadas nas suas investigações, e, com isso, perder grande parte dos seus poderes de investigação”.

Gonçalo Anastácio, líder do Departamento de Concorrência e União Europeia da SRS Legal defende que “os recentes acórdãos do Tribunal constitucional não obrigam a alteração da Lei da Concorrência. Não obstante, a lei da Concorrência poderá ser ajustada para clarificação em linha com a recente jurisprudência do Tribunal Constitucional. Sara Estima Martins, sócia do mesmo departamento da SRS Legal, acrescenta que “a Lei da Concorrência dá margem à AdC para solicitar o mandado à autoridade judiciária que seja adequada, consoante o caso. Assim, pretendendo incluir nas suas buscas a correspondência eletrónica, a AdC poderia (e deveria) ter solicitado os mandados ao juiz de instrução, e não ao MP. Nesse sentido, podemos dizer que a AdC fez uma interpretação incorreta da Lei da Concorrência, tal como determinou o TC”.

Rita Vasconcelos, sócia da Cruz Vilaça Advogados sublinhou que se compreende esta decisão da juíza do TC “porque é o juiz, imparcial, que pode assegurar, no caso concreto, a adequação, a necessidade e a proporcionalidade daquele meio de obtenção de prova, face à gravidade das práticas e à indispensabilidade da diligência para o caso”. Alertando que, apesar do acórdão ser muito recente, “esta não é uma questão nova. A AdC tem vindo a ser alertada para este risco desde há vários anos. A AdC – entidade que detém um leque de poderes de investigação alargado – tem obrigação de respeitar os direitos fundamentais das empresas na realização da sua missão de assegurar a aplicação das regras de promoção e defesa da concorrência. Para cumprir o acórdão do Tribunal Constitucional não é necessário alterar a lei”, concluiu a advogada.

O sócio responsável pela área de EU e Concorrência da Sérvulo, Miguel Gorjão-Henriques, considera que uma alteração na lei é “desnecessária, inútil, não resolve o problema enorme criado pelo modo de atuação da administração da AdC, no passado e até recentemente. A alteração da lei, como sugerido pelo regulador, não vai certamente tornar legítimas buscas feitas no passado com desrespeito pela própria lei da concorrência e pela Constituição”. E diz ainda que será “mais avisado aguardar pelo normal desenvolvimento da atividade judiciária, seja com a próxima pronúncia do Tribunal Constitucional seja com a reforma do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade proferido”.

O advogado realça o facto de o TC ter vindo a ter uma prática “decisória firme e consistente”, já tendo declarado, em três ocasiões (uma delas através de formação de Plenário e há 2 anos, e duas em processos de fiscalização concreta, já este ano) que a “apreensão de correspondência eletrónica depende, entre outros fatores – e todos sabemos porque razão em Portugal é tão restritiva a possibilidade de apreensão de correspondência – de mandado judicial prévio e que é irrelevante que os emails estejam abertos ou fechados, lidos ou não lidos”.

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