Requalificar em vez de contratar. Formação dá “nova vida” aos trabalhadores

As competências que as empresas procuram são diferentes do que eram até aqui. Em vez de recrutar novo talento — o que nem sempre é fácil —, várias estão a apostar na requalificação dos seus quadros.

Aos 47 anos, Eva decidiu que, afinal, queria explorar novas oportunidades profissionais. Mas em vez de sair da empresa para a qual trabalhava, encontrou aí mesmo a ponte para as novas funções que desejava, sob a forma de um programa preparado para dar novas competências a profissionais com mais de 15 anos de experiência.

Numa altura em que o mundo do trabalho está em transformação e as competências que os empregadores procuram estão também a mudar, programas de qualificação e requalificação como este têm ganhado maior expressão, até porque recrutar talento novo demora cada vez mais tempo.

Mas voltemos a Eva. Há vários anos que trabalhava no BNP Paribas como gestora de operações, até que sentiu que queria experimentar outras funções. Foi, então, que se deparou com o Build to shift, um programa de nove semanas promovido pelo banco com vista a atualizar as competências dos seus quadros e dar-lhes “ferramentas práticas que podem facilitar a vida a todos”, como design thinking.

“Quando o programa foi promovido internamente, vi que tinha a minha cara“, conta Eva ao ECO. “Concorri e fui aceite.” E, depois de terminadas as nove semanas, esta profissional conseguiu dar o salto desejado e mudar de cargo.

“A mobilidade interna aumentou imenso entre as pessoas que participam neste programa“, assegura Luciana Peres, responsável pelas áreas de inclusão, diversidade e responsabilidade social no BNP Paribas. A primeira edição do Build to shift aconteceu em 2022 com um grupo de 30 participantes. Em 2023, a experiência repetiu-se. E Luciana Peres garante que o programa tem pernas para continuar.

A escassez de talentos é efetivamente um dos grandes dinamizadores de todos estes processos de requalificação.

Pedro Amorim

ManpowerGroup

Segundo a mesma, o Build to shift nasceu mais para dar apoio às “pessoas talentosas” que já estavam nas equipas, perante os novos desafios do trabalho do que por causa de dificuldades no recrutamento. Mas, no conjunto do mercado de trabalho, a escassez de profissionais que se tem sentido nos últimos anos é mesmo um dos motivos por detrás de programas como este. “A escassez de talentos é efetivamente um dos grandes dinamizadores de todos estes processos”, confirma Pedro Amorim, do ManpowerGroup.

Ao ECO, o responsável da empresa de recursos humanos adianta que, para tentar mitigar essa falta de talento, as empresas de vários setores (da banca ao retalho) estão, portanto, a “agarrar os recursos que têm e a reconvertê-los“, sendo que as competências digitais são, neste momento, as mais populares, nesses processos, em resultado da transformação tecnológica dos próprios negócios.

A Code for All (até recentemente conhecida como Academia de Código) é uma das empresas que tem ajudado os empregadores portugueses a darem essas novas competências digitais aos seus trabalhadores, através de programas de upskilling (atualização de conhecimentos, sem mudar de área profissional) e reskilling (ganho de novos conhecimentos, com mudança de funções).

João Magalhães, CEO da Code for All. Code for All

O CEO João Magalhães (na foto acima) lembra que a Code for All nasceu para requalificar pessoas que estavam sem emprego e queriam apostar na área tecnológica. Mas “rapidamente” os fundadores perceberam que também as empresas precisavam dos seus serviços. “Começamos a criar programas individualizados para as empresas“, assinala o responsável.

E faz questão de chamar a atenção para dois estudos. Por um lado, realça uma análise da consultora McKinsey que indica que “há um gap de 50 milhões de pessoas até 2030 na área da tecnologia, ou seja, não há pessoas para preencher estes postos de trabalho”. E, por outro, frisa que “recentemente o Fórum Económico Mundial publicou um estudo que dizia que mil milhões de pessoas vão ter de ser requalificadas até 2030“.

O CEO enfatiza que, perante estes números, hoje há “mais movimento no sentido de fazer as coisas (entenda-se, a requalificação) acontecerem“, não só entre as empresas, como entre os países.

Por exemplo, em Portugal foi lançado em setembro o cheque de formação digital, salienta o empresário. Em causa está uma medida dinamizada pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) que garante até 750 euros aos trabalhadores que escolham fazer formação em áreas como cibersegurança, marketing digital ou tratamento de dados.

Conforme avançou em primeira mão o ECO, até ao momento foram aprovadas 586 candidaturas, neste âmbito.

Empresas também apostam em “competências humanas”

Além das competências digitais, os programas de requalificação que estão a ser dinamizados no seio das empresas portuguesas têm como foco as chamadas competências humanas, destaca Pedro Amorim, do ManpowerGroup. Em causa estão soft skills, como a capacidade de comunicação, liderança e resolução de problemas, enumera.

Vera Rodrigues, head of people da MC (dona do Continente), confirma que, para lá das competências ditas duras, as soft skills têm ganhado importância, destacando-se a adaptabilidade e a empatia.

“As nossas carreiras vão ser cada vez mais longas. A probabilidade de mudarmos de carreira é cada vez maior. É importante puxar por essas soft skills para garantir que as pessoas conseguem transitar entre funções, que lhes garantam empregabilidade“, defende a responsável.

Estamos a passar por um momento de profunda transformação em que as empresas têm de passar do ‘talent seeking’, em que vão buscar fora, para ‘talent making’.

Vera Rodrigues

Head of people da MC

Vera Rodrigues entende também que, num momento como o atual de “profunda transformação“, as empresas têm de passar do “talent seeking” [busca de talento] para o “talent making” [construção interna de talento], apostando, então, em dar “novas vidas” aos trabalhadores com que já contam.

No caso específico da MC, foi firmada, por exemplo, uma parceria com a Code for All para dar competências de programação aos trabalhadores. A adesão a esse programa era voluntária e houve 800 inscrições, adianta.

“Não há resistência entre os trabalhadores”, garante a responsável pelos recursos humanos, que avisa que “falta em Portugal um pacto para as competências“, isto é, uma visão mais estratégia, com o Governo como “elemento acelerador”, para manter as competências da população ativa atualizadas.

Vera Rodrigues reconhece que a requalificação dos trabalhadores é, claro, positiva para o negócio, mas observa que também o é para a própria empregabilidade dos trabalhadores. “Faz parte da responsabilidade social das organizações”, concorda Pedro Amorim.

A duração média da vida de trabalho “aumentou consideravelmente”, nota o responsável do ManpowerGroup. Agora há que escolher, alerta: ou apanhamos o comboio das qualificações ou, se o perdermos, arriscamos criar um problema sério de empregabilidade. No que lhe toca, Eva garante que continuará sempre aberta a aprender.

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