A Autoridade para as Condições do Trabalho e os “falsos” recibos verdes

  • Ângela Afonso
  • 5 Fevereiro 2024

Estas notificações apenas estão, na verdade, a gerar o caos nas empresas e a induzir em erro muitos prestadores de serviços, fomentando a litigância laboral.

Foi noticiado, esta sexta-feira, 2 de fevereiro, que quase 10 mil empresas foram notificadas pela Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) por terem falsos recibos verdes. Mas, em rigor, não é bem assim.

Na prática, a ACT enviou notificações às empresas que, em 2022, beneficiaram em mais de 80% dos serviços faturados por trabalhadores independentes. E os referidos trabalhadores independentes também foram notificados disso mesmo.

Na referida notificação, a ACT indica que “a dependência económica numa só entidade é um dos indicadores da existência de uma relação de trabalho por conta de outrem” e acrescenta que “a confirmar-se a existência de trabalho dependente” a empresa deve, até 16 de fevereiro deste ano, alterar o vínculo do trabalhador. Advertindo, a final, que “procederá a nova verificação (…) dando início à correspondente ação inspetiva para garantir o cumprimento da legislação em vigor”.

Não é concretamente imputada qualquer ilegalidade às empresas e, tanto quanto se sabe, a ACT não analisou qualquer caso concreto. Como a própria declara, a ação inspetiva ainda não foi realizada! As empresas estão a ser notificadas com base num mero automatismo (a que a ACT já nos habituou a propósito das alegadas centenas de contratos a termo ilegais, que, afinal, se referiam sobretudo a trabalhadores contratados a termo há muito admitidos nos quadros das empresas ou a trabalhadores reformados, com contratos a termo por imperativo legal).

Em rigor, a ACT apenas recorda que a dependência económica é um indicador de laboralidade e apela às empresas para regularizarem as situações de falso trabalho independente. Mas tal não significa que as prestações de serviços na base das notificações sejam fraudulentas ou sequer que todas ou a maioria das situações fraudulentas tenham sido abrangidas.

Com efeito, embora a existência de dependência económica seja uma característica comum nas relações laborais, não é um elemento caracterizador do contrato de trabalho, nem permite, nos termos legais, presumir a existência de um contrato de trabalho. A lei faz presumir a existência de um contrato de trabalho quando numa relação se verificam algumas características (pelo menos duas), como sejam a prestação da atividade em local determinado pelo beneficiário, com instrumentos deste, observando um horário de trabalho previamente fixado pelo beneficiário, que paga, com periodicidade, uma determinada quantia como contrapartida pela atividade prestada e em que se verifica uma integração na organização do beneficiário. A dependência económica não é, assim, sequer, um indício que a lei utilize para caracterizar uma relação como de trabalho. Pode existir contrato de trabalho sem dependência económica, se o trabalhador tiver outras fontes de rendimento; assim como dependência económica sem relação laboral. O facto de alguém faturar mais de 80% dos seus serviços a uma mesma entidade, não significa que esteja numa situação de dependência económica relativamente a esta, podendo dispor de outras fontes de rendimento.

Pelo exposto, e salvo o devido respeito, este modus operandi não é adequado a alcançar os objetivos visados. Pense-se no seguinte caso: um cliente de um artista plástico que tenha beneficiado mais de 80% da sua faturação será notificado. E isto independentemente de este artista ter desenvolvido a sua atividade com total independência, a partir do seu atelier, com os seus instrumentos de trabalho, de se ter limitado a entregar a obra encomendada e até, porventura, de ter dedicado a maior parte do seu tempo a outros clientes, mas entregue a este uma obra que representou, pelo seu especial valor, 80% da sua faturação anual!

Estas notificações apenas estão, na verdade, a gerar o caos nas empresas e a induzir em erro muitos prestadores de serviços, fomentando a litigância laboral.

O apressado envio destas notificações, ligadas à Agenda do Trabalho Digno, com dados de 2022 (e, por isso, muito provavelmente desatualizados), sem garantia de qualquer avaliação, ainda que preliminar, dos casos concretos e sem qualquer efeito útil, representa uma forma distorcida de ver e abordar o problema dos falsos recibos verdes e evidencia, uma vez mais, a forma incorreta de atuação da ACT.

  • Ângela Afonso
  • Associada sénior da área de Laboral da Cuatrecasas

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