Os proscritos da Compliance

  • João Medeiros
  • 14 Março 2024

Desembocamos num paradoxo, em que medidas legislativas implementadas para assegurar a transparência, se transformam, a final, em instrumentos catalisadores da opacidade.

Em alinhamento com as tendências internacionais e muito fruto do impulso decorrente da legislação europeia, Portugal tem vindo a apetrechar-se de instrumentos legislativos tendentes à prevenção de fenómenos ligados à criminalidade económico-financeira. Apenas a título meramente exemplificativo, assim o é toda uma legislação relativa à prevenção do branqueamento de capitais e, mais recentemente, todo um pacote que visa a prevenção da corrupção. Como sempre acontece nestes casos, para dar músculo à sua implementação prática, tais medidas legislativas foram acompanhadas da criação de pesadas coimas que incidem sobre as empresas inadimplentes, acarretando ainda responsabilidades pessoais para os membros das estruturas decisórias e mesmo para os Compliance officers, encarregados de zelar pela implementação e cumprimento da lei.

Seja por consciência social, seja por obrigação legal, seja até mais ad baculum, o “estar em conformidade” veio para ficar. Todos e cada um de nós, à luz da imposição das obrigações de KYC (Know your customer), somos obrigatoriamente escrutinados em atos tão simples como pedir um financiamento bancário, concorrer a um emprego ou oferecer uma proposta de serviços de assessoria técnica.

A par do preenchimento dos inquéritos e formulários pelo próprio, um dos instrumentos, porventura o essencial, por via do qual se procura obter informações sobre o proponente Cliente/trabalhador/fornecedor são as apelidadas plataformas de Screening das quais o World Check é apenas um exemplo, aqui mencionado por ser talvez a mais conhecida plataforma do ponto de vista de KYC. Tais serviços de screening varrem o espaço da internet à procura de referências que associem indivíduos ou empresas à prática de ilícitos. As ditas referências – apelidadas eufemisticamente de findings – são buscadas no mundo digital, em toda a espécie de publicações e bases de dados. Uma das fontes de informação geradora de referências reportadas pelas plataformas de screening são as notícias dos media, recolhidas de quaisquer fontes, a mais das vezes sem preocupações de controlo de qualidade da fonte respetiva e desinteressando-se os destinatários finais da informação na filtragem do resultado.

Na dinâmica do KYC, os relatórios de screening negativos são elementos-chave – e obrigatórios, importa acrescentar – no dossier de abertura de Cliente. Para diminuir a possibilidade de influência sobre os resultados obtidos, é reduzida ao mínimo a possibilidade de intervenção humana sobre as referências alcançadas. Assim, vergados sob o peso de serem eles próprios complientes, obedecendo a protocolos rígidos em que não há margem de análise pessoal, as organizações mais reguladas bastam-se muitas vezes com a existência de um finding para liminarmente excluir o putativo Cliente, o prestador de serviços ou o candidato a trabalhador.

Uma referência feita na comunicação social acerca de uma suspeita de matérias relacionadas com criminalidade económico-financeira, uma investigação em curso nesse âmbito, é suficiente para gerar no visado um distintivo judaico que o arreda imediatamente do espectro de qualquer contratação. Isto num País onde as investigações duram, por vezes (muitas vezes, vezes demais), vários anos, no decurso dos quais, contrariando o princípio constitucional da presunção de inocência, para efeitos de findings, o visado, à revelia de qualquer condenação e contrariando o princípio constitucional de presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, vê-se a braços com uma situação – também constitucionalmente inadmissível – de quase pena de perda de direitos civis.

Uma referência feita na comunicação social acerca de uma suspeita de matérias relacionadas com criminalidade económico-financeira, uma investigação em curso nesse âmbito, é suficiente para gerar no visado um distintivo judaico que o arreda imediatamente do espectro de qualquer contratação. Isto num País onde as investigações duram, por vezes (muitas vezes, vezes demais), vários anos, no decurso dos quais, contrariando o princípio constitucional da presunção de inocência, para efeitos de findings, o visado, à revelia de qualquer condenação e contrariando o princípio constitucional de presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, vê-se a braços com uma situação – também constitucionalmente inadmissível – de quase pena de perda de direitos civis. Mas a coisa pode ser – e frequentemente é – ainda mais perversa.

É que, sendo o “direito ao esquecimento” no espaço virtual ainda uma quimera (designadamente, e todos sabemos, a grande maioria dos servidores e motores de pesquisa estão fora do espectro europeu), mesmo que o suspeito, visado, arguido ou como se lhe queira chamar, seja absolvido, não pronunciado ou simplesmente não acusado, os findings perduram e ganham vida própria. O espaço cibernético é indiferente a detalhes tipo inocência do visado e a verdade é que a notícia da absolvição, arquivamento ou não pronúncia é uma não notícia e, como tal, menos atrativa do ponto de vista da divulgação.

Também no caso de condenações o caso assume contornos em tudo semelhantes. Situações de pessoas que foram efetivamente condenadas, aqui ou noutras jurisdições, cumpriram as penas efetivas que lhes foram impostas ao abrigo da lei vigente nas respetivas jurisdições, não obstante terem acertado as suas contas com a justiça, carregam para sempre uma capitis diminutio, uma perigosidade latente, que os faz persona non grata para as instituições reguladas. Os impiedosos motores de busca são alheios aos fins das penas e conceitos como ressocialização e, como medida de higienização, os destinatários da informação demitem-se da interpretação e filtragem da mesma. Para efeito das apertadas regras de compliance, uma vez proscrito sempre proscrito: os findings são sublimes, as entidades reguladas à cautela preferem não contratar, mesmo que ao arrepio daquilo que é proclamado num sem número de instrumentos jurídicos dos quais Portugal faz parte. E tudo isto sem grandes hipóteses de controlo jurisdicional, já que a decisão de contratar ou não contratar se assume como quase discricionária.

Eis que então, não raras vezes, se entra na perversão absoluta do sistema: espartilhadas pela ditadura do parecer em detrimento do ser, conscientes que se regem por rígidos protocolos desprovidos de racionalidade e maleabilidade e, já agora, cientes que rejeitam oportunidades negociais relevantes e que o negócio/financiamento lhes escapa por entre os dedos por questões apenas nominativas, muitas vezes sucede serem as próprias entidades reguladas as primeiras a sugerir aos proscritos do compliance, como meio de ultrapassar o parecer negativo sobre a operação em virtude da existência de referências nominativas positivas, a criação de estruturas que ocultem a identidade do beneficiário, ou recurso testas de ferro para o efeito.

Desembocamos, assim, num paradoxo, em que medidas legislativas implementadas para assegurar a transparência, se transformam, a final, em instrumentos catalisadores da opacidade.

  • João Medeiros
  • Sócio da MFA Legal

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