CESE, pelo labirinto da inconstitucionalidade
No que se refere à CESE, é difícil compreender sua classificação como uma contribuição, dado que não há nenhuma prestação tangível que beneficie entidades tão diversas quanto aquelas que atuam.
No passado dia 23 de abril de 2024, o Tribunal Constitucional através do Acórdão n.º 338/2024 declarou que a Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (“CESE”), na parte em que prevê a sua aplicação aos centros electroprodutores com recurso a fonte renovável é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade.
Na origem desta decisão está um ato de liquidação relativa ao ano de 2019 impugnada, sem sucesso, junto da Autoridade Tributária e do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, tendo depois a empresa recorrido para o Supremo Tribunal Administrativo, onde também perdeu. No fim, o Tribunal Constitucional inverteu a decisão e acabou por dar razão à empresa, tendo sido a primeira vez que o Tribunal Constitucional se pronunciou sobre a aplicação da CESE aos produtores de energias renováveis.
A CESE foi criada em 2014, no âmbito da execução do Programa de Assistência Económica e Financeira acordado com a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional (a Troika) com o objetivo de financiar mecanismos que promovessem a sustentabilidade sistémica do setor energético e a criação de um fundo que contribuísse para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético.
A CESE nasce, assim, no Orçamento do Estado para 2014, como uma contribuição excecional (um verdadeiro tributo de crise!) sobre o ativo fixo tangível, aplicável às empresas titulares de licença de exploração de centros electroprodutores ou de licença de produção de eletricidade, concessionárias de atividades de transporte ou de distribuição de eletricidade; concessionárias de atividades de transporte, distribuição de armazenamento de gás natural e titulares de licença de distribuição local, operadores de refinação de petróleo bruto e de tratamento ou distribuição de produtos de petróleo, comerciantes grossistas de eletricidade de petróleo bruto ou de produtos de petróleo.
No entanto, a realidade das coisas e o passar do tempo vieram demonstrar que o CESE é tudo menos um tributo extraordinário. Com efeito, não só a vigência do CESE tem sido sucessivamente prorrogada, transfigurando-se num imposto de base anual, com o objetivo de reduzir os custos associados à dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional (SEN); como tem vindo a estender o seu campo de aplicação, primeiro, em 2015, para os comercializadores de gás natural e, posteriormente, em 2019, aos centros electroprodutores de energias renováveis abrangidos por regimes de remuneração garantida (com exceção dos aproveitamos hidroelétricos com capacidade instalada igual ou superior a 20 MW).
Uma das histórias mais célebres da mitologia grega é a da luta que confronta o herói ateniense Teseu e o Minotauro, um monstro tenebroso, com cabeça de touro e corpo de homem, escondido no labirinto que o rei de Creta mandara construir para o prender. Ora, ao tentar descobrir qual a natureza das CESE, nomeadamente se é um imposto, uma contribuição ou uma taxa, estamos por um lado, num labirinto tal como aquele em que se escondeu o Minotauro, em que é difícil perceber onde se está e, por outro, perante um sinistro resultado para aqueles que o enfrentam.
Tradicionalmente, os tributos públicos distinguem-se entre o imposto e a taxa, sendo que o imposto se define por ser uma prestação coativa e unilateral, dissociada de qualquer prestação do ente público, enquanto a taxa se caracteriza por ser contrapartida pelas prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo contribuinte. Por sua vez, as contribuições surgem como uma categoria intermediária de tributos públicos, a meio caminho entre a taxa e o imposto, na medida em que elas não resultam de uma troca entre o particular e o ente público, mas de uma troca entre o ente público e um grupo de particulares.
Entre as contribuições, a Lei Geral Tributária, no n.º 3 do artigo 4.º, define as “especiais” como tributos que “assentam na obtenção pelo sujeito passivo de benefícios ou aumentos de valores dos seus bens em resultado de obras públicas ou da criação e ampliação de serviços públicos ou no especial desgaste de bens públicos ocasionando pelo exercício de uma actividade…”.
No que se refere à CESE, é difícil compreender sua classificação como uma contribuição, dado que não há nenhuma prestação tangível que beneficie entidades tão diversas quanto aquelas que atuam, nomeadamente, nos setores de gás natural ou energias renováveis.
Não sendo contribuição, só poderá ser um imposto em sentido estrito, portanto, sujeito a um regime mais exigente em termos constitucionais.
A interpretação do regime da CESE já foi objeto de várias decisões do Tribunal Constitucional, que qual Teseu navegando pelo labirinto do Minotauro, já se pronunciou quer no sentido da constitucionalidade, quer da inconstitucionalidade.
Em 16 de março de 2023, o Tribunal Constitucional veio pela primeira vez admitir a inconstitucionalidade do regime, considerando que é inválida, por violação do princípio da igualdade, a norma que obriga as empresas concessionárias de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural a suportar este tributo, uma vez que, deixou de ser possível afirmar que estas empresas são presumíveis causadoras ou beneficiárias das prestações públicas que o Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE) incumbe providenciar.
No entanto, poucos meses depois, em maio de 2023, o Tribunal Constitucional teve um entendimento distinto notando que “o encargo a que a recorrente fica sujeita por via da CESE não se pode entender descontextualizado ou desproporcionado face às contrapartidas de que beneficia”. Refere ainda o Tribunal Constitucional que, caso as empresas de gás natural fossem excluídas da CESE, isso representaria um tratamento tributário desigual e injustificado entre operadores.
Já em março de 2024, o Tribunal Constitucional foi chamado a pronunciar-se sobre a aplicação da CESE aos comercializadores grossistas de petróleo bruto e de produtos de petróleo, tendo decidido pela sua inconstitucionalidade, considerando que o tributo acabou por se transformar num imposto e que a dívida tarifária da eletricidade não foi provocada pelo sector do petróleo.
O mais recente episódio foi o Acórdão n.º 338/2024, de 23 de abril de 2024, que veio declarar a inconstitucionalidade da CESE quando aplicada aos centros electroprodutores com recurso a fonte renovável por violação do princípio da igualdade. Entendeu o Tribunal Constitucional na mesma linha do acórdão de 16 de março de 2023 que, especialmente, desde que em 2018 a lei foi alterada e a maioria da receita das CESE passou a estar destinada a reduzir a dívida tarifária do setor elétrico, deixou de ser possível afirmar que as empresas detentoras de centros electroprodutores com recurso a fonte renovável podem ser considerados responsáveis pela concretização dos objetivos da CESE, e muito menos causadores ou beneficiários das prestações públicas do FSSSE. Mais entendeu o Tribunal Constitucional que a CESE se encontra descaracterizada enquanto contribuição financeira, pois, não existindo qualquer correlação entre os sujeitos passivos e os objetivos da cobrança do tributo, este traduz-se num verdadeiro imposto, e deixando de se verificar-se a presunção de que o sujeito passivo provoca ou aproveita determinadas prestações administrativas, a cobrança acaba por violar o princípio da equivalência jurídica (corolário do princípio da igualdade).
Claro que tudo isto, poderá trazer as suas consequências.
As decisões de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional sobre a aplicação da CESE têm como consequência permitir às empresas que contestaram a cobrança da contribuição (imposto!) recuperar algumas dezenas de milhões de euros que tiveram que de pagar, bem como anular os atos de liquidação da CESE impugnados que as empresas não terão de pagar.
Por outro lado, as decisões do Tribunal Constitucional abrem a porta para que as demais empresas afetadas pela CESE venham agora contestar a sua cobrança (passada e futura), quer reclamando junto da AT a revisão das liquidações pagas, quer reclamando judicialmente sobre o seu pagamento junto dos Tribunais Administrativos. A este respeito, haverá que distinguir duas situações (i) as empresas que pagaram a CESE e ainda estão em tempo para reclamar ou impugnar, poderão fazê-lo no prazo respetivo, e (ii) as empresas que pagaram a CESE, mas que já não podem reclamar ou impugnar pelo respetivo prazo já ter decorrido, poderão solicitar à AT a revisão das liquidações.
Em todo o caso, e embora as decisões do Tribunal Constitucional apenas tenham eficácia nos casos concretos que lhes deram origem, não obrigando a AT a devolver a CESE a outras empresas, nem os Tribunais Administrativos a seguirem o entendimento do TC, é expectável que as empresas utilizem os argumentos invocados pelo Tribunal Constitucional para recusar o pagamento da CESE com base na sua inconstitucionalidade, prevendo-se uma forte litigância entre as empresas afetadas e a AT.
Refira-se que, qualquer decisão judicial que contrariar os acórdãos do Tribunal Constitucional, obriga a recurso para o próprio Tribunal Constitucional promovido pelo Ministério Público, gozando de força obrigatória geral – ou seja, aplicável a todas as situações – a terceira declaração de inconstitucionalidade em três casos em que esteja em causa a mesma interpretação da norma. Este poderá, assim, ser o mote para a impugnação ou reclamação de atos de liquidação da CESE ou, para aqueles que já não estejam dentro do prazo, para revisão da liquidação junto da AT, usando os argumentos vertidos nos acórdãos para defender a ilegalidade da respetiva cobrança.
No entanto, a história da CESE poderá ser outra se, verdadeiramente inspirado pelo herói Teseu, o novo Governo tiver coragem e, sem precisar da ajuda de uma Ariadne, matar o Minotauro, que o mesmo é dizer a CESE, terminando de vez com esta contribuição extraordinária que, de extraordinária apenas tem a duração da sua vigência.
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