Governo quer travar recurso a firmas de advogados. Mas como fica o setor?

O Governo quer reforçar do recurso aos gabinetes jurídicos do Estado, evitando o uso excessivo de assessoria jurídica externa. Que impacto terá nos escritórios de advogados?

“Reforçar o recurso aos gabinetes jurídicos do Estado, evitando o uso excessivo de assessoria jurídica externa”. Esta é uma das 31 medidas da agenda anticorrupção aprovada em junho pelo Governo. O objetivo é capacitar a assessoria jurídica dentro do Estado com menor exposição a interesses de terceiros.

Mas esta medida não é uma completa novidade. A lei já estipulava que os “estudos, pareceres, projetos e serviços de consultoria, bem como quaisquer trabalhos especializados e a representação judiciária e mandato forense, devem ser realizados por via de recursos próprios das entidades contratantes”, com algumas exceções de situações pontuais e “devidamente fundamentadas”.

Uma coisa é certa, esta medida poderá ter relevância nas contas dos escritórios de advogados em Portugal. Só nos últimos cinco anos o Estado pagou quase 45 milhões de euros a sociedades de advogados por ajustes diretos.

À Advocatus, Bruno Ferreira, managing partner da PLMJ, garante que o peso da assessoria jurídica a entidades públicas é “muito pouco relevante” na firma, uma vez que as equipas trabalham principalmente para empresas. “Neste sentido, esta intenção do Governo na prática pouco impactará o escritório”, assegura.

O líder da PLMJ alerta que este tema da assessoria a entidades públicas é “frequentemente colocado em cima da mesa”, sendo normalmente associado ao critério da despesa pública e à boa gestão dos recursos públicos. “O debate é sempre saudável, mas para ser verdadeiramente enriquecedor, é preciso ir mais além. Aquilo que julgo que todos queremos é que os melhores interesses do Estado – de todos nós – estejam, em cada situação, salvaguardados”, sublinha.

Bruno Ferreira considera que a maioria das vezes em que o Estado recorre às firmas é porque reconhece que não tem recursos internos que garantam essa defesa dos melhores interesses. “Muitas vezes nem se trata da qualidade das equipas legais internas do Estado, mas sim da exigência do assunto em questão, que implica equipas de grande dimensão e muito experientes em determinado setor ou tipo de contrato”, acrescenta. Assim, vê com dificuldade que o Estado consiga internalizar a quantidade de pessoas e o talento que a concretização desta medida exige.

“Por outro lado, hoje o nível de escrutínio e de mecanismos de controlo e compliance é tal – e bem – que a exposição a interesses de terceiros que é mencionada no pacote é algo que tem pouca ou nenhuma aderência à realidade quando falamos da melhor assessoria jurídica em Portugal”, nota.


Apesar de concordar com esta medida em concreto e que os atuais gabinetes devam ser “melhor apetrechados”, Nuno de Oliveira Garcia, sócio e responsável pela área de fiscal da Gómez-Acebo & Pombo, não está de acordo com a associação subjacente ao anúncio da medida que, desde logo, é “excessivamente genérica”.

O advogado não duvida da importância de reforçar e capacitar os gabinetes jurídicos do Estado, nem que se possa entender que o Estado depende “excessivamente” de um ou dois escritórios de advogados, apesar das restritas regras de contratação pública existentes, mas deixa um alerta. “Porém, associar recurso a assessoria jurídica externa a qualquer prática de corrupção não faz qualquer sentido”, refere.

Se é o Estado que contrata esses serviços externos, cabe ao Estado decidir como segui-los e pô-los em prática, pois a assessoria é isso mesmo, apenas assessora, não concretiza. Sendo que os prestadores de serviços jurídicos externos agirão, seguramente, de acordo com o interesse do Estado nesses casos, pois é o Estado o seu cliente”, explica o sócio da Gómez-Acebo & Pombo.

Por outro lado, Nuno de Oliveira Garcia sublinha que várias são as situações em que o recurso a assessoria externa é fundamental na medida em que a “assessoria interna – por regra a cargo de juristas e não de advogados – segue muitas vezes uma lógica necessariamente estadista e governando, não independente – desde logo por força da forte hierarquia existente na Administração – em contraste com a assessoria externa, quase sempre mais independente por natureza e, em muitos casos, mais especializada”.

Apesar de todos os anos o Estado gastar milhões de euros na contratação de sociedades de advogados, já existe um mecanismo interno, composto com cerca de 20 juristas, para esse fim, a JurisApp – Centro de Competências Jurídicas do Estado. Este serviço foi criado pelo Governo em 2017 e é composto por uma equipa que trabalha exclusivamente para o setor público, contribuindo com consultoria, assessoria e aconselhamentos jurídicos.

Fonte oficial da Vieira de Almeida (VdA) acreditam que esta medida da agenda anticorrupção é uma “boa medida” uma vez que aprofunda as opções dos últimos anos e dá sequência a passos importantes como a criação da JurisApp.

Há, como sempre houve, no setor público como no privado, transações, litígios e outras situações da gestão pública e privada que ganham em ter uma assessoria jurídica com uma intensidade e uma amplitude temática que aconselha o recurso a advogados externos. Ou seja, claro que o Estado deve evitar a contratação externa quando se trate de aconselhamento que pode ser obtido com facilidade internamente, mas não deve deixar de procurar assessoria especializada ou por qualquer razão mais apetrechada para determinadas circunstâncias ligadas à decisão pública”, referem.

Sobre se a medida em causa evita a exposição a conflito de interesses, o escritório liderado por Paula Gomes Freire defende que a advocacia já tem regras apertadas neste domínio, que as firmas têm implementado com rigor na sua atividade. “No nosso caso, não temos conhecimento de uma única situação concreta em que uma entidade pública (ou privada, já agora) tenha sentido que incumprimos os nossos deveres legais e deontológicos nesse domínio. E acreditamos que a situação no mercado não é diferente da nossa”, sublinham.

VdA, Sérvulo e Morais Leitão são campeãs nos ajustes diretos com o Estado

Nos últimos cinco anos, as entidades públicas pagaram quase 45 milhões de euros a sociedades de advogados por ajustes diretos. Desse valor, 36% “pertence” à Vieira de Almeida (VdA), segundo informação recolhida no portal BASE. No top 3 estão ainda a Sérvulo e a Morais Leitão.

O contrato que coloca a Sérvulo no ranking dos últimos cinco anos é a compra do SIRESP. A 13 de junho de 2019, o Conselho de Ministros aprovou a compra da totalidade da SIRESP S.A., depois de semanas de negociações com as duas restantes acionistas. Em causa, uma promessa do Governo de que iria controlar o SIRESP depois das falhas registadas e que dificultaram o combate às chamas nos incêndios de 2017, incluindo o de Pedrógão Grande e os incêndios de outubro desse ano. A Sérvulo patrocinava a Autoridade Nacional de Proteção Civil.

No caso da VdA, para estes valores contribuiu a assessoria ao Banco de Portugal (BdP) – com a resolução do BES e do BANIF – que garantiu ao escritório 9,3 milhões de euros. Já a Morais Leitão tem a autarquia de Cascais e a Imprensa Nacional da Casa da Moeda entre os maiores clientes no Estado.

O teto máximo para celebração de ajustes diretos relativos a prestação de serviços é de 20 mil euros, mas em muitos casos esses valores são superiores nos contratos feitos com os escritórios de advogados. Isto porque o código da contratação pública permite evitar os concursos públicos quando “a natureza das respetivas prestações, nomeadamente as inerentes a serviços de natureza intelectual, não possibilite a elaboração de especificações contratuais suficientemente precisas”.

Só este ano, o Estado já gastou cerca de quatro milhões de euros no recurso à assessoria jurídica externa. As três sociedades voltam a estar no topo, com a Sérvulo na liderança, assegurando 30% do valor.

O Orçamento do Estado para este ano, na parte que analisa os gastos em estudos, pareceres, projetos e consultadoria, onde se incluem os pareceres jurídicos e a assessoria, prevê gastar 284,4 milhões de euros, mais 38,7 milhões de euros que o previsto para 2023 (245.644.213 euros). E bem mais do que os 181.535.534 euros previstos para 2022 e quase o dobro dos 136.200.249 alocados em 2021.

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