Advogados aplaudem protesto da Ordem, mas alguns estão reticentes com a “forma”
Os advogados consideram que a ação de protesto da Ordem dos Advogados é justa e que é necessário atualizar os honorários dos oficiosos. Alguns criticam a forma como este protesto está a ser levado.
Os advogados consideram que a ação de protesto da Ordem dos Advogados (OA), que apela à não inscrição de advogados nas escalas do Sistema de Acesso ao Direito e Tribunais (SADT), é justa e que é necessário atualizar os honorários dos oficiosos. Ainda assim, alguns criticam a forma como este protesto está a ser levado pela Ordem.
Paulo Valério, sócio da VFA, considera este protesto “justo”, mas a forma e os pressupostos são “errados”. “As remunerações pagas aos 13 mil advogados inscritos no SADT são uma indignidade para a profissão e incompatíveis com uma adequada defesa dos cidadãos mais desfavorecidos. Dito isto, o sistema está moribundo e é impossível de reformar. Mesmo que o protesto tenha o efeito pretendido, os advogados passarão a receber 240 euros por um julgamento, em vez dos atuais 200. Isto à custa de um boicote ao direito de defesa dos cidadãos, no sistema de escalas”, refere.
O SADT é o sistema que permite que os cidadãos com menor poder económico tenham acesso aos tribunais para defender os seus direitos, uma vez que a justiça não pode ser negada a ninguém. Desta forma, foi criado um sistema sustentado pelo Estado que paga a advogados, os chamados advogados oficiosos, para defender estes tipos de casos.
Paulo Valério admite que não vê outra solução para o acesso ao direito senão um modelo com “vagas limitadas”, preenchidas por concurso, em que um número menor de advogados, em regime de tendencial exclusividade, receba uma “remuneração mensal digna”. “E esse sistema pode muito bem ser gerido pela Ordem”, acrescenta.
Julgo ser a única maneira de o Estado, se ainda dispuser de algum poder de império, tomar o tema em mãos, legitimado por esta posição da OA “funcionalização dos oficiosos”, de reformar o sistema, extinguir o SADT e criar um corpo paralelo ao Ministério Público – paralelo, não igual – que tenha por encargo garantir as funções que hoje cabem aos defensores oficiosos.
Já Paulo Saragoça da Matta, sócio da DLA Piper ABB, vê esta ação com “tristeza” de “quem vê a sua Ordem a ser usada como um sindicato” e a “advocacia como uma função pública ou como operariado fabril, i.e., sem responsabilidade social, com desprezo por quem carece de apoio judiciário. E a ter de continuar a sustentar e suportar o sistema, com o pagamento de quotas e a obrigatoriedade de inscrição para exercer a profissão”.
“Até às ameaças de greve, por serem ameaça e pressão, era a favor de uma luta da OA contra o Governo, pois é vergonhoso que os partidos que se aumentam anualmente, achem que um serviço tão importante como o dos defensores oficiosos possa estar 20 anos sem atualização remuneratória. Hoje, sou totalmente a favor por outra razão, que explico: porque julgo ser a única maneira de o Estado, se ainda dispuser de algum poder de império, tomar o tema em mãos, legitimado por esta posição da OA “funcionalização dos oficiosos”, de reformar o sistema, extinguir o SADT e criar um corpo paralelo ao Ministério Público – paralelo, não igual – que tenha por encargo garantir as funções que hoje cabem aos defensores oficiosos”, refere.
Saragoça da Matta considera que um advogado serve o interesse público e não o poder do Estado. “Um Advogado, com “A” maiúsculo, fazer greves, é ver os advogados oficiosos como funcionários do Estado, não como advogados. Seria como achar normal que o Parlamento ou o Governo ou o Presidente da República fizessem greves. Estes titulares destes órgãos do Estado não são funcionários, por isso não podem fazer greve; um Advogado é um privado, um Homem/Mulher que “têm a profissão mais livre que um Homem/Mulher pode ser”, por isso, por definição, nem se concebe que possa estar funcionalizado e fazer greve”, acrescenta.
Os advogados que não são pagos de forma digna pelo seu trabalho não estão a ser respeitados e por isso estão em luta. E muito bem!
Recordando que há cerca de 20 anos que o valor pago por um processo em termos médios é de cerca de 200 euros, a advogada Raquel Caniço sublinha que o custo de vida aumentou e o valor pago pelo trabalho do advogado nomeado oficiosamente manteve-se, “infelizmente”, inalterável.
“O que significa, entre outras questões, os advogados que não são pagos de forma digna pelo seu trabalho não estão a ser respeitados e por isso estão em luta. E muito bem! O esforço intelectual, a criatividade, a capacidade de gerir questões muitas vezes complexas e que tem implicação na liberdade dos cidadãos ou no exercício pleno dos seus direitos, não pode ser visto apenas como um trabalho de “espírito de missão”, como alguns querem oportunisticamente fazer crer”, nota a advogada.
Para Raquel Caniço, esta “resistência passiva” de não inscrição nas escalas urgentes nos tribunais e nas esquadras da PSP ou dos postos da GNR há muito que deveria ter ocorrido por ser tão necessária. “Sem a presença dos advogados nas diligências urgentes estas não podem ser realizadas e consequentemente há um conjunto de Direitos, Liberdades e Garantias constitucionais que não são respeitadas, uma vez que o advogado zela pelo cumprimento escrupuloso desses direitos”, acrescenta.
“Um arguido detido para ser sujeito a interrogatório judicial mediante juiz de Instrução Criminal, no prazo de 48 horas, após a detenção e se não constituir mandatário, determina que se tenha de socorrer-se da nomeação do advogado que estiver inscrito na escala para esse dia, através do SADT. Não havendo inscrição pelo advogado no SADT, não há nomeação, consequentemente não havendo nomeação, o arguido não pode ser interrogado e no fim do prazo de 48 horas a sua detenção não pode ser validada e tem de ser restituído à liberdade”, exemplifica.
É pena que uma parte da classe tenha abdicado dessas qualidades na sua própria defesa e que a Ordem se tenha transformado numa associação sindical, que procura impor-se através de ameaças de paralisação dos tribunais e da vozearia gratuita.
Questionado se considera que a Ordem poderia ter optado por outro meio para reivindicar a alteração das tabelas de honorários do SADT, Paulo Valério sublinha que os advogados sempre souberam defender os seus clientes através da sua “credibilidade”, da “justeza das suas posições” e da “força dos seus argumentos”. “É pena que uma parte da classe tenha abdicado dessas qualidades na sua própria defesa e que a Ordem se tenha transformado numa associação sindical, que procura impor-se através de ameaças de paralisação dos tribunais e da vozearia gratuita“, reflete.
O advogado considera que o caminho adotado deveria ter sido a capacidade de negociar com o Governo, mas que essa capacidade foi “dizimada” pela postura da Ordem nos últimos anos.
“Neste momento, e considerando o “estado a que isto chegou”, já não acho nada. Também seria irrelevante achar qualquer coisa. Hoje, no que respeita à OA, não se consegue que as ideias sejam aproveitadas por serem boas, pois deixou de haver diálogo. Estamos como no Parlamento: quem tem maioria absoluta… impõe, segundo uma cartilha ideológica, sem participação – ontem um membro do Conselho Geral, Ricardo Sardo, até falava em posição política, para comparar o atual “governo” da Ordem a uma Lista que se lhe opôs e perdeu nas últimas eleições. Quem nesse enquadramento atual da OA está fora do Governo, nem fica no Parlamento: está fora dele totalmente!”, assume Paulo Saragoça da Matta.
A OA abriu as candidaturas “extraordinárias” para a inscrição nas escalas do SADT em forma de protesto a passada segunda-feira, abrindo assim a possibilidade aos advogados de não se manterem inscritos nas mesmas. O prazo das candidaturas termina no próximo dia 30 de agosto, pelas 16h00. Esta ação insere-se num protesto da OA, que considera que as negociações com o Governo sobre a alteração das tabelas de honorários do SADT para o Orçamento de Estado de 2025 “não estão a decorrer com a prioridade que o assunto impõe”.
O número de advogados inscritos nas escalas reduziu até quarta-feira cerca de 90%, comparativamente com os anos anteriores. Segundo dados revelados pela OA, cerca de 60% dos municípios não tem qualquer advogado disponível para fazer escalas. Esta ação insere-se num protesto da OA, que considera que as negociações com o Governo sobre a alteração das tabelas de honorários do SADT para o Orçamento de Estado de 2025 “não estão a decorrer com a prioridade que o assunto impõe”.
No final de setembro serão abertas, novamente, inscrições para escalas e a OA espera que nessa altura já existam “condições” para que os profissionais possam voltar a inscrever-se “com uma tabela que dignifique o exercício da profissão”.
A realização do serviço de escalas depende da prévia inscrição dos advogados num sistema informático gerido pela Ordem, em que os mesmos demonstram disponibilidade para o efeito. No caso das escalas de prevenção não presenciais, os advogados, se não forem chamados para nenhum serviço, não recebem qualquer valor, “apesar de essa prevenção condicionar completamente a sua vida pessoal e profissional”.
“Os advogados poderão e deverão, individualmente, caso entendam que a remuneração atual não é proporcional aos serviços prestados, não se inscrever nas escalas presenciais e de prevenção no âmbito do SADT, dando um sinal claro ao poder político de que a advocacia não está disponível para continuar a trabalhar com os valores de uma tabela que fará este ano 20 anos”, sublinha a OA.
A Ordem queixa-se de que a tabela remuneratória dos advogados oficiosos não é atualizada há quase 20 anos. A entidade propôs ao Governo um aumento da tabela de honorários em cerca de 20%. A bastonária, Fernanda Almeida Pinheiro, já teve três reuniões com o Ministério da Justiça, mas, até este momento, ainda não foi alcançado nenhum acordo. “A Ordem dos Advogados propõe que seja inserida uma verba de cerca de 20 milhões de euros no Orçamento do Estado para 2025″, assume a bastonária.
Mas quanto recebe um oficioso?
A tabela de honorários dos advogados, estagiários e solicitadores pelos serviços que prestem no âmbito do apoio judiciário foi atualizada em janeiro. O diploma atualiza o valor da Unidade de Referência (UR) com base no índice de preços no consumidor (IPC), sem habitação, e considerando todo o território nacional entre janeiro e setembro de 2023. O aumento foi de 3,2%, o que equivale a um aumento de 0,83 cêntimos, que significa na prática que a UR passa de 25,90 para 26,73 euros.
Por cada processo que um advogado oficioso patrocina, é aplicada a tabela da UR correspondente a cada tipo de processo. Ou seja: os mais complexos correspondem a mais UR e aos mais simples correspondem unidades mais baixas. Por exemplo, se um processo corresponder a oito unidades de referência, um advogado recebe 213,84 euros.
O valor da unidade de referência aplica-se ao apoio judiciário — defesa por parte de advogados oficiosos para cidadãos com menos condições económicas — para nomeação e pagamento da compensação do advogado patrono, pagamento da compensação de advogado oficioso, nomeação e pagamento faseado da compensação de patrono e pagamento faseado da compensação do advogado oficioso.
A tabela de honorários dos advogados oficiosos não era atualizada desde 2009, tendo em 2020, 11 anos depois, o Governo efetuado um aumento de oito cêntimos. Um valor que na altura já tinha ficado aquém das expectativas, por não contemplar a inflação do ano respetivo, nem da quase uma década passada sem qualquer atualização ou reformulação dos honorários destes profissionais.
Esta ação de protesto pode levar a que dezenas de processos fiquem paralisados caso se verifique a falta de advogados oficiosos. Dados relativos a novembro do ano passado mostram que a Segurança Social recebe, em média, quase 400 pedidos diários de proteção jurídica por parte de cidadãos sem capacidade para pagar a um advogado. A maioria é aceite, mas, ainda assim, há milhares de solicitações rejeitadas todos os anos. Entre 1 de janeiro de 2018 e 30 de setembro de 2023, foram apresentados 823.659 pedidos de proteção jurídica.
Só em 2022 foram pagos pelo Estado 132,6 milhões de euros em apoio judiciário, o que representa um aumento de quase 50% nos últimos dez anos. No ano passado, foram cerca de 140 mil pessoas que recorreram a este serviço.
O ECO sabe que mais de um terço deste valor, cerca de 50 milhões de euros, foi pago pelo Ministério da Justiça em serviços de advogados oficiosos, nomeados pela Ordem dos Advogados, sendo o restante valor relativo a despesas com perícias do Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses, serviços de interpretação e tradução, atos de notariado (por exemplo, em processos de inventário) e mediação e arbitragem.
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