Julgamento do caso BES: a tese do Ministério Público versus as teses das defesas

Na primeira sessão do julgamento do BES, a juíza não se fez rogada e impôs limites para cada uma das intervenções das alegações iniciais do Ministério Público e defesas dos arguidos.

Uns 15 minutos iniciais a que se somou uma tolerância de mais dez minutos. Em jeito de discursos da cerimónia dos Óscares – cujos premiados têm tempo limitado para agradecer – a juíza presidente do coletivo de juízes não se fez rogada e impôs limites para cada uma das intervenções das alegações iniciais do Ministério Público e defesas dos arguidos que, esta terça-feira, inauguraram o julgamento do processo do Universo Espírito Santo.

Dez anos depois da queda do BES, com o arguido Ricardo Salgado acusado de 62 crimes (três entretanto prescreveram), o julgamento contou com a presença do arguido, apesar da doença de Alzheimer diagnosticada, por ordem da juíza presidente, Helena Susano. O ex-banqueiro está acusado de associação criminosa, corrupção ativa, falsificação de documento, burla qualificada e branqueamento de capitais.

O que disse o Ministério Público?

Ciente da morosidade do processo que conta com 18 arguidos singulares, sete empresas arguidas, 733 testemunhas, 135 assistentes, mais de 300 crimes, 215 volumes e uma acusação com mais de quatro mil páginas, a juíza Helena Susano dava ordem para desligar o microfone de cada vez que as alegações iniciais ultrapassassem os 15 minutos.

E o Ministério Público não fugiu à regra. A magistrada Carla Dias teve a complexa tarefa de resumir quatro mil páginas de acusação em 25 minutos. A procuradora do MP sublinhou que Salgado se apropriou do património de outras pessoas no colapso do Grupo Espírito Santo (GES), em 2014, e que exerceu o poder “de forma autocrática”.

Nas suas alegações iniciais, a procuradora recordou apenas alguns factos que constavam da acusação, assumindo que o julgamento se irá prolongar “por tempo significativo”.

“Pelo menos desde 2008 houve um constante financiamento da área não financeira do GES pelos clientes. Foram suportados pelas constantes emissões de dívida e consequente colocação junto de clientes das instituições financeiras da Espírito Santo Financial Group (ESFG). Tais propósitos foram conseguidos desde 2008 com condutas (…) a fim de iludir clientes e investidores”, referiu a magistrada do MP. Para a equipa de procuradores presente no julgamento, o objetivo é provar “que o governo do GES foi exercido de forma autocrática por Ricardo Salgado” e que o ex-banqueiro, “com o objetivo de suportar a área não financeira, poder distribuir liquidez como entendesse e constituir posições acionistas, logrou apropriar-se de património de terceiros”.

Lembrando que a “pronúncia é muito extensa, com jurisdições diversas e que a forma como os factos foram executados é, sem dúvida, complexa”, a procuradora salientou que Ricardo Salgado deu ordens a “um grupo restrito de pessoas, hoje aqui arguidas”, para que o GES se apresentasse imune em termos financeiros, apesar de a holding internacional do grupo (ESI) estar em situação de insolvência desde 2009. Segundo o Ministério Público, a derrocada do GES terá causado prejuízos superiores a 11,8 mil milhões de euros.

“Todo o programa de reestruturação do GES apresentado aos mercados assentava em pés de barro. Só em julho de 2014, segundo o levantamento feito após a saída de Ricardo Salgado, é que a administração tomou conhecimento das perdas históricas. A resolução do BES acompanhou o processo que já estava em marcha e a queda em dominó”, resumiu, acabando pouco depois as suas alegações para dar palavra aos primeiros assistentes processuais.

Além de Ricardo Salgado, estão também em julgamento outros 17 arguidos, nomeadamente Amílcar Morais Pires, Manuel Espírito Santo Silva, Isabel Almeida, Machado da Cruz, António Soares, Paulo Ferreira, Pedro Almeida Costa, Cláudia Boal Faria, Nuno Escudeiro, João Martins Pereira, Etienne Cadosch, Michel Creton, Pedro Serra e Pedro Pinto, bem como as sociedades Rio Forte Investments, Espírito Santo Irmãos, SGPS e Eurofin.

E qual a tese das defesas dos arguidos?

Os advogados dos arguidos no processo BES/GES recusaram os crimes imputados pelo Ministério Público (MP), destacando nas críticas à acusação a tese de associação criminosa aplicada a vários antigos quadros do Grupo Espírito Santo (GES).

Neste primeiro dia de julgamento foram já efetuadas as exposições introdutórias de cerca de metade dos 18 arguidos, com destaque para as intervenções dos advogados Raul Soares da Veiga, Miguel Cordovil de Matos, Rogério Alves e Paulo Saragoça da Matta, em representação dos acusados Amílcar Morais Pires, Francisco Machado da Cruz, António Soares e João Martins Pereira, respetivamente.

“Morais Pires não fez fraudes, não quis enganar ninguém. E os prémios que recebeu foram muito merecidos. Morais Pires trouxe milhões e milhões de euros para dentro do BES. Matar a galinha dos ovos de ouro é completamente absurdo. Morais Pires era o bombeiro de serviço e o MP confunde isto com ser o incendiário de serviço. Estava nas situações todas, mas não para atear e, sim, para apagar os fogos”, declarou Soares da Veiga.

Miguel Cordovil de Matos lembrou a colaboração do antigo contabilista do GES Francisco Machado da Cruz e enfatizou o seu desconhecimento de que estivesse a participar voluntariamente num suposto esquema fraudulento.

“Machado da Cruz nunca teve consciência nem intenção de participar naquilo a que o MP chama associação criminosa. Machado da Cruz foi o único arguido que reconheceu os factos relativamente às demonstrações financeiras da ESI em variadíssimas instâncias. Machado da Cruz não controlava a tesouraria, nem decidia se havia emissão de dívida ou quando”, disse o advogado.

Quanto a Rogério Alves, o advogado defendeu que António Soares, antigo membro da administração da sociedade BES Vida, se declara inocente dos 15 crimes pelos quais responde em tribunal e que não tinha informação para perceber que algo de errado se passava no GES, se nem o Banco de Portugal (BdP) detetou infrações antes de 2014.

“Se o BdP tinha esta visão tranquilizadora do BES, como é que o arguido António Soares tinha uma visão panorâmica mais completa do que esta gente?”, indagou o mandatário, argumentando que “não há nenhum indício que António Soares tenha aderido a plano nenhum (de associação criminosa). Não houve corrupção, nem passiva nem ativa. Houve prémios. E nunca quis burlar quem quer que fosse”.

Por sua vez, Paulo Saragoça da Matta recuou até à fase de instrução para criticar a evolução do processo, ao considerar que houve uma “macaqueação da instrução” e que “não existiu qualquer real comprovação judicial” da acusação do MP, nomeadamente em relação ao seu cliente, o antigo responsável de ‘compliance’ do BES, João Martins Pereira.

“A acusação é vaga, conclusiva e persecutória. E tivemos uma instrução dirigida a gosto de interesses terceiros. Quem subscreveu a acusação conta uma narrativa e vê que há um engano, mas engano não é burla. Nem aqui, nem na China. Ou o MP não soube interpretar a lei, ou dolosamente atirou um anátema. É desumano o MP fazer isto aos juízes e a nós. Isto é ingerível”, resumiu, descrevendo a acusação como “uma mão cheia de nada”.

Além destes mandatários, fizeram ainda exposições introdutórias entre as defesas dos arguidos os advogados José António Barreiros, que representa Manuel Fernando Espírito Santo, e o advogado Miguel Dias, mandatário de Isabel Almeida, restando ainda alguns advogados para falar na quarta-feira. Para essa sessão foi também programada pelo coletivo de juízes a reprodução da gravação de um interrogatório a Ricardo Salgado na fase de inquérito.

ANDRÉ KOSTERS/LUSAANDRÉ KOSTERS/LUSA

O que disse a defesa de Ricardo Salgado?

Já Adriano Squillace, advogado de Ricardo Salgado a cargo da exposição introdutória, apresentou um requerimento para que seja declarada a nulidade do início do julgamento.

Segundo a defesa do ex-banqueiro, o tribunal não pode “julgar um arguido que sofre de doença de Alzheimer só porque o nome do arguido é Ricardo Salgado e aparece nos jornais”. Assim, pediu que seja declarada a irregularidade do início do julgamento. São “manifestas as evidências de que o arguido não tem capacidade” para prestar declarações, refere no documento.

No que concerne à “persistência” do tribunal em não realizar uma perícia médica, o advogado garante que esta decisão coloca Portugal “na exata situação em que os Tribunais russos colocaram a Rússia perante o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos”.

O advogado de Ricardo Salgado voltou a explicar que o antigo presidente do BES não tem condições para estar neste julgamento e “não consegue compreender o significado deste processo, muito menos prestar declarações. A defesa já requereu por inúmeras vezes perícias”, criticou o advogado. “Este tribunal tem de verificar se o arguido tem ou não condições” para continuar a ser julgado. “O tribunal está obrigado a realizar uma perícia sob pena de nulidade”, acrescentou, sublinhando que este caso posiciona Portugal para ser condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

Este tribunal tem de verificar se o arguido tem ou não condições para continuar a ser julgado. O tribunal está obrigado a realizar uma perícia sob pena de nulidade. Este caso posiciona Portugal para ser condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos”

Adriano Squillace, advogado de Ricardo Salgado

Adriano Squillace acusou ainda a esta tarde a juíza, Helena Susano, de ser “uma lesada do BES”, uma vez que chegou a pedir escusa do caso BES, invocando ser titular de 560 ações do banco. Mas o Tribunal da Relação decidiu que isso não afetava a sua imparcialidade. “O que está aqui em causa é a falta de compreensão do arguido relativamente a este processo. E isso, a condição do arguido, tem de ser aferido”, diz o advogado de Salgado, Adriano Squilacce.

“Não está em causa a possibilidade ou não da compreensão em geral mas relativamente à excecional complexidade deste processo, diz o advogado de Salgado. O prórpio Ministério Público ignorou este facto nas alegações iniciais. A doença de Alzheimer é uma espécie de tabu neste processo”, acrescentou.

O advogado de outro dos assistentes, Henrique Prior, pediu à juíza presidente que seja nomeado um curador provisório a Ricardo Salgado. “O tribunal deve suspender o processo e nomear um curador provisório” para o ex-banqueiro, repetiu o advogado.

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